Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Dia de ronda

Passa das duas da manhã. Ainda tenho mais dez minutos pra ficar olhando aquele quarteirão de merda que não tinha nada de emocionante acontecendo. Justo naquela área ninguém decidia ser contraventor, nenhum morador de rua decidia disputar um pedaço do lixo com outro. Nem mesmo um bêbado para perturbar a ordem noturna passava por aqueles lados. Eu queria que ao menos um casal de namorados se agarrasse numa parte escura da calçada, nem que fosse pra me masturbar um pouquinho e ir pra casa imaginando passar a mão na gostosa.

Lembro que vou chegar em casa e continuar sem sono até o dia amanhecer quando bateram na porta de seu vidro. É o guarda que fará a ronda no meu lugar. Acho que minha cara não é das melhores, porque o Vieira ficou bem constrangido.

Vou pro meu carro, atravesso algumas ruas e já estou quase em casa quando noto que tinha esquecido uns papéis na DP. Saco. Dou meia volta e sigo rumo ao distrito, parece que só o meu carro que guia naquela hora. Sim, sei que sou muito solitário, mas o resto do mundo faz questão de dizer isso, todo mundo combinou inclusive de não dar uma esticada na noitada.

Passo a porta e começo a ouvir uns barulhos meio estranhos pra delegacia, mas bastante familiares para outros lugares mais libidinosos. Chega o Neves, abotoando a farda, e diz, empolgado:

“Aí, cara, chegou na hora certa. Batida em boate de strip! O dono aliciava menor de idade, e a gente aproveitou pra trazer umas putinhas. Aí, já viu...” - abriu um sorriso nojento - “A carne é fraca, a autoridade é muita e o pau é grande. Madrugada, todo mundo sozinho aqui e longe de mulher, a gente ta fazendo fila com elas”.

“Caralho, vocês descem cada vez mais baixo” - eu respondo, reprovador.

“Ah, esqueci que tu é o monge da DP. Merece mesmo ficar fazendo ronda em quarteirão de condomínio de luxo” - ele diz, e por uns instantes penso que o pior é que ele está coberto de razão.

“Deixa de cagar pela boca. A sala do departamento virou motel também ou posso entrar lá?”

“Relaxa, lá ta tranqüilo”.

Passo por outras salas, acabo espiando algumas cenas. Paro exatamente numa garota. Loira de um oxigenado tão forte que dependendo da luz parecia que estava de cabelo branco. Está só de calcinha fio dental, vermelha, e pela fisionomia não parece querer o que o policial pede. Ela o empurra, mas ele é mais forte e a domina. Entreabro a porta e tiro a minha dúvida:

“Não! Eu não quero! Me larga!”

Num instinto, eu grito:

“Larga a moça!”

Ele mal vira e já sente a força do meu soco. Acerto em cheio no seu nariz, garantia de que ele ficará desacordado por algum tempo.

Vou em direção a ela, que cobre os seios com as mãos e chora copiosamente. Desabotôo a farda, e ela fica em pânico, achando que eu vou ser mais um a aproveitar dela. Talvez eu tivesse batido no colega porque ele estava dando em cima da puta que eu estava afim.

Estendo a farda e a entrego. Ela fica espantada, e eu digo.

“Veste”.

Ela cobre o corpo. Parece mais intrigada do que assustada.

“Vem. Eu não vou te fazer nada”.

Envolvo minha mão na sua cintura, e vamos juntos para o departamento. No caminho podemos ouvir os gemidos da orgia que virou o distrito naquela noite, e ela chora ainda mais. Pelos sussurros, algumas das garotas estavam gostando.

Deixo ela sentar numa cadeira. Busco um copo de água, que ela bebe entre soluços. Permaneço em silêncio, deixando que ela esvaziasse o copo. Só então abro a boca:

“Nome?”

“Ana Clara” - corrige abruptamente - “Helena!”.

“Ana Clara ou Helena?”.

“Não... É que Helena é meu nome artístico”.

“Sei”. Agora eu percebo a garota. Tem um rosto fino, de traços delicados, em perfeita harmonia com os olhos castanhos e tristes. A maneira como segura a farda não impede que eu vislumbre o volume dos seios pequenos. A calcinha não é suficiente para esconder os pêlos alourados, e as coxas firmes parecem me convidar ao prazer. Mas será que ela irá querer um policial desiludido com a profissão?

Ela levanta o rosto e começa a contar sua vida pra mim. Tinha saído de Santo Antônio de Pádua, interior do estado, onde trabalhava como vendedora de loja, para abraçar o sonho de ser atriz da Globo no Rio de Janeiro. Fez testes para novelas em várias emissoras, tentou fazer comerciais, filmes e perambulou por várias agências sem o menor sucesso. Com 22 anos e sem a menor perspectiva de vida, leu em um jornal que a boate Erotique precisava de dançarinas.

Acabou indo lá como um trabalho interino, iria dançar por um tempo. Mas o sonho de atriz ficou passo a passo mais distante, e precisava de dinheiro. Aí começou a fazer programas. Ressaltou:

“Mas eu trabalho mais tirando a roupa no palco”.

“Mora na boate mesmo?”

“Não, não. Alugo um quarto na Lapa”. Puta que pariu, e eu reclamando do meu conjugado em Copacabana.

“Meu colega me disse que a Erotique tava aliciando menores, e que algumas prostitutas estavam envolvidas nisso. Você tem alguma coisa a ver? Sabe de algum aliciamento?”.

Desespera-se.

“Não! Eu não sei de nada!” - ajoelha-se aos meus pés - “Eu já falei que não sei de nada, por favor, acredita em mim” - levanta-se novamente - “Eu juro! Não me faz nada” - e fica com o ombro no meu peito, voltando a chorar.

Levanto o rosto dela.

“Eu acredito em você”.

Helena sorri entre lágrimas e me dá um abraço de agradecimento. Não se importa que seus seios nus estejam de encontro com a minha camisa. Roço os lábios em sua testa e afago seus cabelos, dizendo que “passou”. Seguro a sua mão:

“Vou te levar pra casa”.

É fácil passar despercebido, os policiais estão entretidos com o que os corpos das outras putas oferecem. Seguimos rumo à Lapa.

Não trocamos uma palavra durante o trajeto, que dura pouco mais de 15 minutos. O silêncio é interrompido perto da Rua do Lavradio, com a voz dela:

“É aqui”.

Estaciono. Helena abre a porta do carro e anda em direção a um casarão. Fico observando seus passos, e ela anda com dificuldade, um dos saltos está quebrado. Ela se preparava para entrar quando decide virar para trás. Tira os dois saltos e vai descalça até o meu carro. Apóia os braços na porta e fala:

“Sobe...”.

Hesito. Sim, eu tava com tesão, ela era uma delícia, mas, sei lá, chorou em meus braços e agora queria me levar pro quarto dela! Coisa estranha... Helena completou:

“Pra eu te entregar a sua farda”.

Esboço um sorriso, me achando um ridículo. E vou com ela. Acompanho Helena pelos degraus da pensão, até chegarmos no primeiro andar. Seguimos pelo corredor, passamos por uma senhora gorda sentada numa cadeira perto da escada.

A moça passa a chave e temos a visão do quarto, no qual cabe somente uma cama e um armário. Heloísa fecha a porta do quarto. Um letreiro do motel que fica em frente brilha o cubículo. Ela acende a luz, vai em direção ao guarda-roupa e tira da gaveta duas peças. Estica o pescoço para fora do armário e me pergunta:

“Vem cá, você é sempre assim?”

“Assim como?”

“Com esse jeito todo envergonhado”.

Permaneço calado. Por um espelho, vejo os movimentos de Helena. Ela tira a farda e joga na cama. Em seguida, tira a calcinha e a deixa no chão. Põe um short e depois uma blusa fina. Passa o trinco na porta do armário e olha para mim.

“Ainda não me respondeu...”.

“Não respondi?”

Suspira. “Você é sempre assim, envergonhado?”.

Pausa. Trocamos um olhar. Baixo a vista.

“Não sei. Por quê?”

“Ah, os seus colegas no distrito devem ter abusado das meninas” - coloca minhas mãos nas suas costelas - “E você não. Bateu no que tentou me agarrar, me emprestou a farda e ainda me trouxe pra casa”.

E eu cada vez mais excitado olhando aquela boca linda. Mas sem pestanejar, digo:

“É vergonha sim. Vergonha na cara”.

Helena ri. A blusa não consegue esconder os bicos dos seios.

“Preciso ir” - desconverso

Eu vou em direção à porta mas sou interrompido pela mão dela no meu braço.

“Sua farda. E aqui o meu cartão. Pra quando precisar...” - dá um sorriso assanhado. Parece já estar melhor do susto.

Visto a farda e coloco o cartão num dos bolsos da calça. Ela brinca:

“Não esquece aí no bolso! Sua mulher pode achar, seu guarda!”.

“Não sou casado” - esse assunto me irrita sempre, é bom puxar outra conversa - “Você vai voltar pra boate?”.

Ela abaixa a cabeça. Volta a olhar pra mim e diz, com lamento:

“Só pra pedir as contas. Não faz mal. Agora não sou tão novinha, não falta no Rio de Janeiro sujeito que precise de garota como eu”.

Ela vai em direção à porta. Passa o trinco e a abre para mim.

“Não precisa se preocupar, tá? Com minha experiência, o meu corpo fica mais valorizado. Eu me viro”.

Balanço a cabeça positivamente. Ando pelo corredor, desço as escadas e saio da pensão em direção ao meu carro. Ouço um grito e olho para a pensão. É ela:

“Obrigada”.

Sorrio e vou para o carro, agora rumo a Copacabana. Começo aquele trajeto e a lembrança de Helena me faz ficar menos sozinho. Acho que vou passar a madrugada lendo seu cartão, recordando o corpo que vi primeiro na delegacia e depois pelo espelho do armário dela. Talvez eles me façam ficar menos só também amanhã, vão me acompanhar nos meus pensamentos durante mais uma ronda insuportavelmente chata naquele quarteirão que não acontece nada.

Mais dez minutos e já chego em casa. Estaciono o carro na garagem. Subo o elevador. Abro a porta de casa. Tomo um pouco de leite e deito na cama. Leio o cartão de Helena, ainda com o nome da boate Erotique e com um número de celular. Eu devia ter perguntado quanto ela cobra por programa. Afinal, não é todo dia que eu me sinto menos só depois de um dia de ronda.

domingo, 28 de setembro de 2008

Qualquer uma

Observo a minuciosa leveza de cada um dos seus gestos. Respondes à minha ânsia com um sorriso ameno, cúmplice, nesses lábios tão belos e tão harmoniosos com as suas feições. Eu me aproximo, sou levado pelo efeito do fascínio que se apodera de tua face.

Dialogo por alguns instantes com seus olhos enigmáticos. Talvez procurando decifrar a razão de conseguires me entorpecer apenas com um simples carinho. Suspiras, dengosa... Teu olhar realça a compaixão desesperada que me corrói a cada suplício, a cada saudade de todas as vidas que me trazes toda vez que entra por aquela porta.

Minhas mãos se conduzem por teus caminhos tortuosos, nos quais te descubro mais um pouco e me descubro ainda mais. Acalentado por tuas concessões aos meus carinhos, vou sentindo vagarosamente o perfume de tua alma se espalhar por todos os meus sonhos.

Deslizo a mão por teus pulsos. Tocas meu rosto com teus lábios. Enlaço-te em meus braços, desabotoando carinhosamente o seu vestido. Sinto tuas unhas cravando em minhas costas, e me deito na cama, na nossa cama, aguardando que meus olhos possam conhecer tua nudez.

E vens. Passo lentamente a boca por teu pescoço. Acaricio o colo e aceitas passivamente meus lábios a beijar teus seios. Perdida entre teus suspiros, não és capaz de notar meu desejo a contemplar a delicadeza da sua cintura.
Sigo em meu afeto noturno, sob a luz da madrugada, com meus dedos a passearem por tuas coxas, em teu riso ansioso por mais do que um toque. Estás entregue a mim, me pedes, me sonhas, queres que eu sonhe contigo.

Conduzes minha busca pela paz de teu corpo. A paz que tanto procurei, nas noites mal dormidas, mas que agora é uma insônia bem acompanhada. E eu me sinto dentro de ti, no conforto que só teus braços podem abrigar, no delírio que só tua febre sabe abrandar, no amor que só de ouvir teu nome sorri a minha felicidade.

E me apego à tua voz a me dizer baixinho... “eu te amo.... eu te amo”... Para que meus devaneios não sumam quando, de costas para mim, passares o zíper em um vestido barato, curto.

Pois sei que, ao tornares a me olhar, terás um outro rosto, uma outra voz, um outro nome. Em vez de carinhos, estenderás a mão à altura do meu peito. Caminharei alguns passos até minha cabeceira, sacarei uma ou duas notas da minha carteira, e te entregarei na mão que abres diante de mim.

Ainda farei menção de um afago em teus lábios, mas me repreenderás com um “na boca, não”, seguido de um mascar de chiclete. Darei um suspiro, te entregarei, e, com ar de indiferença, te verei batendo a porta. Embora tenha dormido com qualquer uma, meu coração sabe que passaste a noite comigo.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Desencantamento

Digitei umas três ou quatro palavras a mais do texto. Reli o parágrafo, na tentativa de achar a seqüência da minha narrativa. Continuei achando uma merda. Sou da safra de escritores que acham que a escrita pura mesmo é fugir das cômodas palavras que vêm através do relato de um acontecimento. Beber das fontes baratas de conversas com amigos ou de alguma situação que presenciaram é trabalho pra jornalistas, e o jornalismo a todo minuto me deprime - no papel ou no computador, a safra de “escrevedores do cotidiano” perde a qualidade a cada semestre de universidade.

E eu arcava com os ônus da minha crença. Sentado em frente à tela do computador, prosseguia ali, repensando em como sairia daquela arapuca textual na qual meu conto se intrometeu. Não cabiam situações, reviravoltas, nem aquelas regrinhas que, por míseros trocados, mostram que “qualquer um” pode escrever bem.

Mesmo descrente de que iria encontrar alguma novidade pro texto - ou talvez por precisar encontrar novos rostos, nessa minha tentativa incessante de enxergar a alma das pessoas - decidi andar um pouco. Saí de casa e fui em direção ao metrô, decidido a realizar uma vontade de menino. Desde bem criança eu tinha vontade de parar em todas as estações. Para um moleque criado em Botafogo que, quando adulto, se mudou para Copacabana, ainda faltava uma trajetória inteira de rostos e de caminhos a serem percorridos.

Comecei pela primeira estação da Zona Sul. Ainda vinham alguns gatos pingados, com suas ansiedades, seus sorrisos, seus rostos sem movimentar um gesto de alegria. Aos poucos, o trem começou a realizar suas funções habituais da rotatividade dos passageiros.

E foi assim que ouvi o “próxima estação, Largo do Machado” que vi a chegada dela no meu vagão. O relance da casualidade do olhar subitamente era substituído pela primeira e fascinante impressão. Não tinha qualquer traço de maquiagem, por isso o batom avermelhado saltava em seu rosto. A beleza existia, sim, mas não chegava a ser um artigo de destaque. O corpo se escondia num vestido grande e decotado. Seus cabelos, soltos e morenos, pareciam saídos do banho.

Ela sentou-se justamente em frente aos meus olhos. Notei seus gestos, a delicadeza ao evitar que os cabelos chegassem aos seus olhos, o cruzar das pernas com a preocupação de que não deixasse a “roupa de baixo” à mostra. Eu a enxergava com carinho, desenhando carícias em uma pessoa que eu havia descoberto em meio a tantas idas e vindas do metrô, e que fulminantemente inspirara toda a minha ânsia por escrever, por dizer a ela, por falar dela, por falar com ela.

Ela me olhou. Primeiro de maneira natural, como quem nota a existência de uma pessoa na cadeira que fica diante dos seus olhos. Virou os olhos de lado, e a cabeça fez um movimento suave para a esquerda. Esboçou um sorriso, mas seus lábios tornaram a ficar sérios por alguma preocupação.

Permaneci calado sem falar com ela. Às vezes desviava o olhar, com receio de que ela se sentisse ofendida ou me achasse ousado demais para estar ali notando tão detalhadamente sua presença. Ao notar seu olhar com mais cuidado, percebi os olhos fundos, busquei dialogar com eles por alguns momentos, mas logo abaixei os olhos, por receio de que as palavras deles me revelassem algo que pudesse desfazer o fascínio iniciado na estação do Largo do Machado.

Eu comecei a criá-la em meu sonho de escritor. Nós nos olhávamos e eu arriscava desvendar alguma pista que seu olhar, seu sorriso ou seu jeito de ser pudesse me trazer. Fui seguindo o caminho para encontrá-la, para conhecê-la, para contar a história de uma moça tão doce que passou pelos meus olhos num vagão de metrô e que depois de ser apresentado a ela eu jamais iria perdê-la. Eu continuaria lá, nesse deleite de trocarmos confidências em silêncio - ou melhor, no nosso silêncio.

Ela sorriu para mim, um sorriso largo, lindo, de menina. Decidi me levantar para falar com ela, para saber se eu adivinhara o que sua alma me apresentava naqueles minutos de convivência. Fui abordá-la quando seu sorriso se tornou um sobressalto ao ouvir o comando de “próxima estação, Saens Peña”. Ela me olhou com um lamento, disse um “tchau” sem som e saiu do vagão. Só então que notei a barulheira dos diálogos das pessoas, a correria, a placa da estação, as escadas...

Fiquei ali. Sem saber dela. Sem conhecer quem era ela, do que ela gostava, com o que ela sonhava. E mais uma vez voltaria para casa, entregue a um devaneio que um dia, quem sabe, prestaria para escrever um conto.

O apito de que as portas se fechariam em instantes me despertou. Não, meu amor, eu não ia te perder. E decidi isso ao ver que seus passos não estavam no meu alcance quando, no passo anterior, ela subiu o primeiro degrau da escada.

Subi os degraus da escada com mais pressa. Ela saiu do metrô e andou calmamente. No trajeto, tive vontade de dizer alguma coisa, de contar os sentimentos que passaram como um jorro desde que a vi. Do momento que minha alma como escritor e, com o passar das estações, também de minha alma de homem, passaram a precisar dela.

Andamos algumas quadras. Ela chegou diante da porta de um prédio. Ia adentrar no portão quando, ao virar-se, notou minha presença. Sorriu. Sorrimos. Respirei fundo, ia dizer alguma coisa para ela, quando sua voz me interrompeu.

“Olha...” - mexeu rapidamente na bolsa - “eu sou casada e amo o meu marido e os meus filhos” - sacou um cartão e me entregou - “A gente pode se encontrar no lugar que você quiser, gostei de você e pelo seu olhar, percebi que ficou atraído por mim” - lamentou-se - “Sei que isso que eu faço deve ser doença, mas o que posso fazer se me sinto bem também na companhia de outros homens. Mas, olha... Alguém pode nos ver. Aqui não. Aqui não”.

Ainda pude vê-la retirando o anel da bolsa e colocando em sua mão esquerda. Guardei o cartão no bolso e fui em direção ao metrô, com o fascínio que outrora senti diante do nosso silêncio quebrado, assim, de maneira tão brutal, pelo desencantamento da fala e das esmagadoras situações corriqueiras.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Primeira página

– Entendeu, Atílio? O bandido fazendo o diabo com a menina e os pais dela ali, só acompanhando o estuprador fazendo o serviço!- a euforia de Otto Caldeira crescia à medida que ele detalhava o crime que tinha acabado de cobrir. Era a primeira vez em dez anos como repórter que conseguia uma notícia digna de destaque, e se aproveitava de seu entusiasmo pra convencer Atílio, o editor-chefe, a fazer a reportagem saltar para as primeiras páginas do jornal.

Atílio hesitou um pouco, mas, no fim, deu o veredicto:

– Amanhã, Otto, a sua matéria vai pra rua...- e completou- Esse povo gosta mesmo é de um escândalo!

Otto riu concordando com a frase do editor, e saiu da sala, na certeza de que estava prestes a saborear o gosto da fama propiciada pela perversão alheia. “ Criminoso bom é o que dá primeira página.”- pensou, entre um e outro gole de café.

Na manhã seguinte, o jornal estampou nas bancas a manchete, em letras garrafais:
MENINA ESTUPRADA SACIA TARAS SEXUAIS DOS PAIS

A matéria descrevia a denúncia de um estupro sofrido por uma menina de quinze anos, na presença dos pais da jovem, que tinham acompanhado a cena sem esboçar reação, como se estivessem saciando um desejo reprimido.

A barbaridade do estupro virou motivo de discussão popular, vendendo milhares de exemplares e consagrando Otto Caldeira como um dos melhores repórteres investigativos da cidade.

Três dias depois do estouro da notícia, Otto preparava-se para cobrir a denúncia de um homicídio quando o contínuo chegou com o recado:

– Tem uma mulher te esperando lá embaixo.

– Tô saindo pra trabalhar!- respondeu.

O contínuo insistiu:

– Mas a mulher falou que é urgente, e disse que só vai embora depois de falar com você...

Caldeira hesitou: – Tá bem, eu vou descer.

E desceu as escadas, resmungando:

– Se for mulher pra me encher a paciência, cubro de porrada! – sentia-se supremo em sua virilidade após sua repentina ascensão no jornal.

Parou na porta ao ver a moça, que perguntou:

– Foi você que escreveu sobre a menina estuprada?

– Sim.- respondeu Otto.

– Muito prazer, meu nome é Lílian- e ela estendeu a mão, colocando um sorriso vulgar nos lábios. Tinha um rosto bem delineado, realçado por cabelos loiros. Um generoso decote mostrava os seios pequenos, e suas belas pernas eram expostas pela saia curta.

Sem disfarçar a minúcia com que olhava Lílian, o repórter retribuiu estendendo a mão.

– Podemos conversar em outro lugar?- indagou a loira.

Otto concordou, tomou o braço da moça e seguiu de braço dado com ela até chegarem a um boteco.

– Acho que agora podemos conversar.- sorriu o jornalista, depois de ter pedido um expresso.

O garçom trouxe a xícara de café para Caldeira.

Ela declarou:

– Bem, confesso que não sou muito vidrada em ler página policial, mas quando me contaram da menina estuprada, eu não tive como resistir.

– Continue, por favor.- pediu Otto, intrigado.

– O fascínio daquele ato, você pode ter certeza que foi causado pela notícia.- pousou a mão sobre a mão dele, e prosseguiu: – Eu fiquei apaixonada, de maneira repentina...- seus olhos brilhavam. – Sim, apaixonada por aquele desvario. A menina pura, frágil, acompanhando atônita a destruição de sua alma... Aniquilada pela perversão dos pais...- Lílian demonstrava-se comovida com o destino da vítima.

Otto se via interessado diante da moça, que tirou um lenço da bolsa e escondeu um pouco o rosto, para secar as lágrimas que caíam.

– E eu posso ajudá-la em alguma coisa?- sussurrou o jornalista, ao perceber que a moça já recuperava a cor das faces.

– Sim.- o rosto de Lílian foi novamente invadido por um sorriso vulgar.

Suavemente, entrelaçou seus dedos com os dedos de Otto, e revelou:

– Desde aquele dia eu não durmo, penso apenas nas suas palavras, ‘estuprada sacia taras sexuais dos pais’, não consigo mais controlar o meu desejo... A cada dia me alimento mais da ânsia de me entregar ao sabor da tara, do terror... E só você, com suas palavras, é capaz de entender o meu suplício. É por isso que eu vim pedir a sua ajuda. Para ser estuprada.

O repórter engasgou com o café, mas procurou defender-se na frieza de um jornalista policial para disfarçar seu espanto diante da loira, que repetia, ardente:

– Um estupro. Eu quero ser possuída. Possuída, ao menos por um instante.

– Como?- foi a única coisa que Caldeira conseguiu balbuciar.

Com naturalidade, ela perguntou:

– Por que o espanto? Você já me estuprou com suas palavras no jornal. E eu delirei de prazer à medida que elas me violentavam. Falta apenas você concretizar o nosso crime.- suspirou – Ah, vai ser tão bom te sentir novamente dentro de mim!

Ele pulou da cadeira: – Olha, moça, é melhor eu ir embora antes que eu vire a mão na sua cara!- deixou uma nota de dois reais sobre a mesa e saiu do boteco.

– Espera!- gritou Lílian tentando correndo atrás do jornalista, que apertou o passo, seguindo atordoado pelas ruas.

Enfim, ela conseguiu alcançá-lo, puxando Caldeira até um beco tomado por latões de lixo.

– Escuta...- pediu Lílian.

Num repelão, Otto disse:

– Tô me lixando pras suas perversões, madame!

– Não é perversão.- afirmou Lílian: – Você não entende? Eu quero ser desejada...- e protestou: – Ora, eu sou uma mulher que merece um crime sexual!

– Dona Lílian, de uma vez por todas, me deixa em paz!- fez menção de ir embora, mas foi novamente interceptado pela moça.

– Você quer dizer que eu...- suas lágrimas começaram a rolar – ... que eu não sou digna de um estupro. Eu não sou bonita?- gemeu, ainda suplicante, enquanto descia a blusa, exibindo a doce imagem do bico do seu seio, cor-de-rosa.

Pediu, em tom infantil: – Toca. Toca no meu seio...- como se estivesse hipnotizado, Otto tocou o bico pequeno e rijo do seio da moça, que ficava mais bela ao implorar: – Diz que ele é bonito... diz...

– Bonito...- ele atendia com carinho ao pedido da mulher, e sentia-se puro ao enxergar o alívio nos olhos de Lílian. Ela conduziu a mão que tateava seu seio, percorrendo-a por seu colo, trazendo-a ao pescoço para que, enfim, pudesse ser beijada por seus lábios, num erotismo quase poético.

Aos poucos, Caldeira se via dominado por um amor pela fatalidade ao perceber que Lílian abria um sorriso cada vez mais apaixonado.

Enquanto contemplava o delírio da moça, Otto experimentava um misto de receio em acabar com sua fama por conta de um desvario, e de deleite, ao imaginar-se violentando Lílian.

Colocou a cabeça da loira entre suas mãos e limitou-se a dizer:

– Eu não sou médico pra tentar resolver as suas taras sexuais.- e partiu, deixando Lílian estática à espera de um delírio que não seria realizado.

Em pouco mais de um mês, Lílian parecia já ter se acostumado com a frustração de seu sonho. Triste, passou a se esmerar no seu trabalho como secretária, decidida a não se deixar levar mais por ilusões.

Certa noite, enquanto retornava do trabalho para sua casa, a loira seguia pela rua deserta quando, próximo a um terreno baldio, foi empurrada e atirada no chão de terra molhada pelo esgoto.

Debatia-se entre gritos de socorro, tentando se levantar, mas não tinha forças para conter a mão que apertava seu pulso e deslizava por seu corpo com volúpia, rasgando sua blusa e atacando seus seios. Tinha nojo ao sentir a mão que abria suas pernas e passava os dedos entre seus pêlos pubianos. Dor e prazer envolviam a moça, que escancarava seu gozo à medida que o estuprador a agredia.

Extasiada com a realização plena do seu desejo, Lílian mal notou quando o homem, depois do fato consumado, levantou-se e foi andando pelas redondezas até que, afinal, achou um telefone público, de onde ligou para a redação de um jornal deixando o recado:

– Estou ligando pra anunciar a ocorrência de um novo estupro.- e, ao escutar o redator de plantão, o sujeito declarou, numa alegria incontida:

– O autor do estupro? Foi Otto Caldeira!- desligou o telefone e ficou perto do local do crime, na inebriante espera pela chegada da Imprensa que o consagraria como notícia de primeira página.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Testamento

Sei que o que estou iniciando não é nenhuma obra de arte, não possui a mesma imponência de um texto de Machado de Assis, nem almeja ter a densidade de um Augusto dos Anjos. Por isso, espero que você, que por alguma obra do acaso tem em suas mãos esses escritos de um pobre otário que lhe dirige a palavra o trate apenas como um testamento. Exatamente, um testamento. Ou epitáfio, como o leitor achar melhor...

Amor... palavra simples, quatro letras, duas vogais, duas consoantes, duas sílabas, capazes de dilacerar um mísero coração e definhar um mortal apaixonado. Me lembro dela... minha amada...

Bela, desejada... Eu sei que todos os homens cobiçavam o seu corpo, o contorno de seus seios, a rigidez de suas pernas, a cintura convidativa... mas não era só isso que eu notava...

Foi nesse momento, com quase 20 anos, que eu descobri... eu era diferente. Sim! Eu era diferente de todos os outros homens no mundo... Nessa idade, eles viram a noite em festas, onde impera o êxtase absoluto, o orgasmo da liberdade momentânea... escolhem as mulheres como se não passassem de uma carne de açougue. No auge da loucura, ainda pode-se ouvir: “ – Eu vou no contra- filé da loira!” ou “ – Essa garota é um filé mignon delicioso...” Eles falam assim... eu não... Como um falso poeta, romântico inveterado, me deixo por um segundo ser seduzido por uma moça...

Era assim com ela... passava dias e noites sonhando... desenhava os traços do seu rosto, procurava de todas as maneiras encontrar a magia do brilho dos seus olhos, dormia acalantado por aquele sorriso escancarado que, embora eu soubesse que não era endereçado para mim, me contagiava com uma paz suave, doce... como era maravilhosa a sensação dela ao meu lado, sussurrando no meu ouvido, bem baixinho: “ – Eu te amo... eu te amo... eu te amo... eu te amo...”

Quando ela me fez descobrir que eu podia amar, o mais nobre e mais singelo sentimento que possa existir entre duas pessoas, também descobri o meu mortal defeito: a falta de coragem...

Durante dias... meses... anos... séculos... milênios... a amei... Sofria, não nego, afirmo enquanto puder... mas a lucidez da presença dela... o sorriso enigmático, sedutor... os olhos (de que cor eles eram? Não sei... Aliás, pouco me importava em saber... só apareciam para mim o brilho, que de tão forte seria capaz de deixar qualquer um cego...)... a boca, com os lábios carnudos, mágicos... ah, quantos homens se debateram para que lhes fosse concedido o desejo de sentir aqueles lábios apaixonantes... nenhuma fortuna compensaria aquele único instante de euforia proporcionado por aquele beijo saboroso, macio...

Tenho a certeza absoluta de que muitas pessoas que tomem conhecimento desses papéis desnecessários, cujo conteúdo prima pela ‘água com açúcar’ (e sinceramente, peço perdão a todos por não ter conseguido melhor forma, ou menos pior, de abrir o meu triste coração...), são insensíveis a esses tipos de sentimentos. Por isso, aqui coloco o seguinte aviso: se você não acredita no amor, ou afirma que ele não passa de uma simples bobagem e que ninguém sofre mais desse mal, por gentileza, rasgue esses papéis, queime-os e jogue-os no lixo, pois o relato deixado nas próximas linhas é escrito com o coração...

Preferiu continuar? Olha, não foi por falta de aviso...

Todo o tempo que a amei, fui, sem sombra de dúvida, o pior dos românticos: aquele que ama calado. Não por vontade, quem sabe por vocação... O sentimento nutrido por ela me corroia um pouco a cada dia... não conseguia mais dormir... meus pensamentos eram povoados por sua imagem, imaculada, na minha retina cansada (eu sei que esta frase não é nada original... é letra da música Lábios que beijei, mas não encontrei outra maneira de dizer isso, afinal de contas, são quase três horas da madrugada de um Domingo do mês de Junho...)...

Ah, que vontade de olhá-la, expor a ela, olhos nos olhos (título de música de Chico Buarque, mas essa ressalva não merece ser levada a sério nesse momento...), todos os meus sentimentos! Dizer com todas as letras que eu a amava... que só saberia viver enquanto ela estivesse viva... que conseguia enxergar um pouco da sua alma... seria capaz de preparar uma noite repleta de estrelas tão brilhantes quanto o sorriso dela... buscaria decifrar o enigma dos seus olhos...

E diria como era a deliciosa sensação de estar amando uma pessoa... dizer que o meu coração palpitava gritando pelo seu nome... juro, meu amor, minha querida... não, não juraria ser o maior apaixonado do mundo... mas você não tinha idéia do quanto eu ia tentar...

Eu conseguia escutar o meu coração... ele chamava, implorava pelo seu nome... as batidas pareciam música para os meus ouvidos, e eu ali, me martirizando, perguntando a razão para não conseguir forças de falar tudo o que está presente agora nessa mísera folha de papel, possuidora de uma brutal e corrosiva insensibilidade e falta de expressão, não conseguindo sequer deixar a marca da lágrima que acaba de cair do meu rosto e as tantas que já jorraram e que ainda estão por jorrar após tudo o que aconteceu...

Pensando bem... de que importa todo esse desabafo... esse desatino, essa abertura impiedosa do meu coração, dilacerado a sangue frio pela faca da covardia, da timidez, do ‘amor platônico’, segundo os historiadores e os psicólogos (seres da pior espécie, frios ao ponto de não assumirem sua loucura, seus desvarios...). Não, nenhuma dessas palavras tem mais valor...

Meu amor, quando eu me lembro daquela fatídica tarde... você saindo da Igreja, com a pureza estampada na brancura do seu vestido de noiva, na meiguice do seu sorriso, que parecia ter um brilho mais intenso naquele momento (penso nisso pois me vem à cabeça tudo o que aconteceu...), sinto exatamente o cheiro das flores que enfeitavam a sua grinalda... guardo até hoje toda aquela tarde...

Ao ver que não participava, não merecia participar da sua alegria, nunca estaria marcado na sua história, senti o tamanho da minha inutilidade... aquilo martelava na minha cabeça... não... não era possível... parecia cruel demais que para a pessoa que eu mais idolatrei em toda a minha vida... a quem entreguei a minha alma... não saberia... nunca iria saber... nem imaginaria... o quanto eu conseguia amar...
Perdão... perdão, minha amada! Não era minha intenção estar marcado dessa forma na sua história... mas quando percebi como você estava radiante, não hesitei um só momento em cravar aquele punhal no meio do seu coração... senti uma alegria inexplicável... pela primeira e última vez estaria próximo a você... eu escutava com veneração o seu coração sendo lentamente dilacerado... o sangue vermelho derramado no vestido branco me servia como bebida... bebi seu sangue e senti, enfim, o gosto inesquecível do amor... esse amor vermelho, voraz... dentre todos os homens que lhe cobiçaram, apenas eu provei a sua alma, enxerguei a sua candura, nutri toda a paz que você destilava com sua existência...

Fui julgado ontem, condenado a ser fuzilado, rotulado de psicopata, pervertido por toda a imprensa e pela sociedade... Mas a opinião deles não me importa... Só você é capaz de saber realmente como eu sou... Talvez eles não entendam esse meu testamento... estão certos... como eu ressaltei no início, não sou nenhum Machado de Assis... esse epitáfio se tornou uma singela prova do tamanho do amor que eu senti por você, e que jamais será enterrado pelas futuras gerações...

*****
Este texto teve o privilégio de, no ano de 2004, ser publicado na página eletrônica Portal Literal. Devo esta honra a um grande amigo, ídolo e (pasmem!) declarado fã, o poeta Omar Salomão - um talentoso artista da minha geração.

sábado, 20 de setembro de 2008

Acalanto

A madrugada adentra e acalenta ainda mais seu sono tão puro. Numa ânsia incontida, num esgar de amor desesperado, sigo dialogando com seu cansaço, com seus sonhos. Sei que enquanto você dorme, por alguns instantes não poderei causar dor alguma aos seus olhos. Eles estão fechados, imunes a qualquer dose de realidade.

Contemplo suas mãos finas, afagando-as com meu singelo olhar de poeta (ao menos em alma...). Seu rosto mantém a figura que dedilhei em meus esboços, em meus escritos. Esse rosto que aprendi a amar mesmo entre lágrimas derramadas.

Por vezes penso em apagar qualquer vestígio desse amor condenado ao esquecimento, ao grito abafado... Mas agora sussurro para seu delírio escutar, busco provas concretas de que posso me livrar dessa adoração obsessiva. Quero lutar rispidamente contra as correntes que ligam minha alma ao seu coração.

Mas de repente te escuto. Escuto seu pedido de socorro. Suas lágrimas pressentem o iminente terror de um pesadelo. Seguro suas mãos trêmulas, e prometo, com ternura, que não vou sair de perto de você.

Acaricio a sua face, amenizando a dor do sonho ruim. Você me agradece com um sorriso de alívio, um sorriso capaz de secar sua tristeza. Passo silenciosamente a mão sobre seus cabelos, acalmando a revolução de seus delírios.

Pouso silenciosamente sua cabeça sobre o travesseiro. E você dorme! Dorme... Dorme à medida que embalo seu repouso, no acalanto emocionado de quem, enfim, foi capaz de enxergar a alma da pessoa amada.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Cúmplices

Olhou para o relógio, que marcava duas da manhã. O coração doía ao virar para o lado e notar que estava sozinho, que era sozinho, e que, mais uma vez, ia dormir sozinho. Ligou a televisão, e, dentre os canais, achou um que exibia um filme erótico. Começou a se masturbar com uma cena de sexo (num chuveiro, o fetiche que mais lhe dava prazer), na sensação de que a atriz loira e americana que gemia estava sussurrando por ele.

Depois de um ou dois sussurros do prazer que sentia ao menos por aquele instante, foi em direção ao banheiro. Olhou para o rosto no espelho, reparou a barba de dois dias e as olheiras que acompanhavam sua insônia. Procurava acreditar no amor ainda, apesar de tanto tempo só.

Doía mais de noite, quando o silêncio da cidade parecia mais fúnebre. Mas era a noite que sempre o acompanhava. Foi até a janela, olhou os carros estacionados, a banca de jornal e as lojas fechadas, a rua deserta. Direcionou o olhar em um apartamento. Reparou que havia uma mulher olhando para a rua. Esperou que ela olhasse para ele. Acenou, como se fosse um “boa noite”. Ela respondeu com um aceno triste.

Ele foi acordado com o pouco sol que anunciava o dia. Mais um dia solitário e monótono de escritor esquecido por leitores e editoras. Tentou escrever algumas linhas do romance que ansiava por fazer, mas a carência cada vez mais aguda deixava seu romantismo pendendo para a sexualidade – uma sexualidade quase barata.

Olhou novamente para a janela da mulher. Esperou meia hora, e se frustrou porque só pôde ver as cortinas fechadas. Passou o dia dentro de casa, mais um dia dentro de casa, inquieto, sem conseguir ler, nem escrever e, principalmente, estava com vergonha de deitar na cama para cochilar em plena tarde de terça-feira. Sim, se achava um vagabundo, mas ao menos queria ter pra si mesmo um pouco de dignidade. E também não tinha sono, não queria ter sono. Queria dialogar no olhar com aquela mulher.

Anoiteceu. A base de café e de alguns biscoitos, ele continuava de vigília em sua janela, esperando a mulher. E no fim da noite ela veio. Os dois se olharam por uns instantes. Ela sorriu ao revê-lo. O sorriso dela era a única coisa que podia ver com clareza no meio da escuridão do apartamento dela – e ainda assim graças ao auxílio da luz do poste que iluminava a rua. Ela mandou um beijo, e se foi. E mais uma vez ele teve de recorrer à companhia de um filme erótico para saciar sua carência.
Por outras madrugadas seguiram o mesmo ritual de “paquera”. Eram conhecidos e fascinados pelos olhares que trocavam. Até um dia. O relógio marcava duas da madrugada, o horário de sempre.

Com o olhar, ele conseguiu acompanhar os passos dela em direção a um canto do quarto. E o sorriso se alargou quando a viu acender a luz do abajur. Ela riu e mandou um beijo. Deu dois passos para trás, e fez com que ele notasse que ela estava de roupão, um roupão vermelho até a altura do joelho.

Com um sorriso carinhoso, ela passou a ponta dos dedos no colo, e deu a ele a visão linda de seu seio pequeno e rosado. Deslizou a outra mão pelo corpo e, com dois movimentos, deixou cair o roupão para que ele a visse. Para que a enxergasse nua.

Nua com cabelos à altura dos ombros, imaginou como seria o olhar dela (será de desejo? de êxtase? de tara? não importava a dúvida naquele momento), e a via tocar com os dedos os bicos durinhos. Ela sorria ao, com suavidade, passar a mão por cima dos pêlos pubianos, e dançava, ao som do desejo que sabia que dava a aquele vizinho que conhecia de janela. Ele a queria. Ela o queria. E o chamou. Com o indicador, fez um sinal o chamando para ir até ela. Em seguida, mostrou com os dedos o número de seu apartamento: cinco, zero, dois.

O porteiro se espantou ao ver um homem em plena madrugada fazer visita à moradora do 502, mas ao ouvir a confirmação dela, ele subiu. O coração batendo com ansiedade e o corpo ardendo na vontade de possuir sua cúmplice de tantas madrugadas.

Olhou-a de cima a baixo. Ela em sua camisola transparente... apenas. Notaram-se, viram-se, beijaram-se. E, de comum acordo, decidiram parar por ali. Eram cúmplices de um desejo muito grande, e não queriam perdê-lo nunca mais.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Cuida de mim

“ E na ânsia desesperada por encontrar o seu amado, Cecília disse...”- Augusto parou de escrever, a seqüência do conto não chegava. Repetia: - Ela disse... ela disse...- e se perguntou: - Mas ela disse o quê?

Releu o que tinha escrito até o momento e, insatisfeito com o texto e rasgou as folhas. Gritava no apartamento:

– Que grande escritor você saiu, Augusto! Mais de três horas rascunhando feito um louco e não sai uma linha que preste!

Acendeu um cigarro e debruçou-se na janela do seu conjugado na Rua Santa Clara, esquina com a Nossa Senhora de Copacabana. Sorriu ao apreciar a imagem da praia, que expunha sua beleza de Princesinha do Mar para os boêmios que lotavam as boates e os bares da orla. Em seguida, observou o movimento da esquina, na qual, àquela hora, passavam pouquíssimos carros. Esticou o olhar para a sua direita e olhou o Cristo Redentor, no alto, de braços abertos, com um brilho intenso que contrastava com a escuridão da madrugada.

Já não pensava mais em Cecília, a personagem do conto que tinha acabado de abandonar. Queria por um instante esquecer no piano as bobagens de amor que iria dizer, feito Tom Jobim nos versos de Lígia, e deixar de lado o teor apaixonado dos seus textos. Desde que tinha se separado da esposa, também Lígia, como na canção do Tom, suas leves histórias de amor cederam espaço para a escrita pesada das tramas de amor não correspondido. Dois anos depois do fim do casamento, Augusto não suportava mais a melancolia das suas palavras e, naquela madrugada, decidiu acabar com a tristeza e com a solidão que o dominava cada vez que finalizava um conto.

Arrumou-se rapidamente, pegou o elevador, e saiu do prédio em direção à Avenida Atlântica. Foi caminhando pelo calçadão e, aos poucos, voltou a saborear a companhia da sua solidão. Sentou-se no banco do Posto Seis, ao lado da estátua do Carlos Drummond de Andrade. Ria enquanto a brisa passava por seu rosto, e cantarolava Eu e a brisa, do Johnny Alf. Estava tão displicente que mal percebeu a moça que havia sentado ao seu lado.

– Copacabana me acalma...- balbuciou a mulher, com a voz de quem estava chorando.

Augusto olhou para ela, que estava de perfil. Admirou o rosto jovem e triste, com os olhos brilhando. Suas lágrimas eram refletidas pelo nada romântico brilho do posto de luz, e respondeu:

– É, me acalma também... Sabe, eu queria ter a mesma sorte do Drummond, que fica aqui o dia inteiro sentado, com um livro nas mãos, olhando os vários tipos... De dia, os banhistas, os camelôs, os gringos indo pra praia. E de noite, os mendigos, as prostitutas... Copacabana nunca dorme. Sofre de insônia, como eu...

Ela olhou para seu rosto, e abriu um sorriso.

– Você tem um sorriso lindo... Não devia chorar.- disse Augusto.

A moça afagou seu rosto, e disse, num suspiro:

– Diz isso, mas o que sabe sobre mim?

Augusto sorriu:

– Não sei nem seu nome...

– Aline.

Ele estendeu a mão, cumprimentando:

– Prazer, meu nome é Augusto... Me conta, o que te faz chorar?

Aline olhou para o mar e começou a contar:

– Eu... eu comecei a sair com um homem, um amigo da coluna social.- riu triste.- Bem, eu o conhecia de vista, coisa de duas ou três festas, sabe?- Augusto balançou a cabeça afirmativamente. Ela seguiu- Um dia, numa festa aí no Copacabana Palace, a gente se apresentou e marcou encontro. Foi o primeiro de muitos, em um mês. Até que...- interrompeu e chorou.

Augusto segurou sua mão e disse:

– Se não quiser mais falar, eu entendo...

– Não, agora eu vou até o fim. Aí eu descobri que ele tinha negócios com uma casa noturna de São Paulo, que tinha acompanhantes de luxo.- a voz embargou.- E descobri que ele ia me levar pra ser uma dessas.

Tentando conter o espanto, Augusto perguntou:

– Faz muito tempo que aconteceu isso?

– Dois meses. E ele só me persegue, me manda cartas, mensagens por telefone, fala que eu vou ganhar muito dinheiro, que sou garota de dois mil reais pra cima, que não adianta eu fugir, que ele vai me levar pra São Paulo.- as lágrimas recomeçaram a cair de seus olhos castanhos. E enfim, desabafou:- Não agüento mais!

Num rompante, levantou-se e foi andando em direção ao mar, andando a passos largos na areia. Augusto gritou:

– Aline, espera!

Ela não lhe deu ouvidos, continuou no rumo do mar, que àquela hora tinha poucas ondas. Estava prestes a mergulhar, quando Augusto segurou seu braço:

– O que você vai fazer?

– O que eu devia ter feito há dois meses! Entrar nesse mar, pra nunca mais voltar.- sorria, radiante.- Esquecer o meu preço, esquecer a alta sociedade e esquecer que eu existi! Me solta!

– Não, você não vai a lugar nenhum.- disse, puxando Aline para a areia.- Isso não é motivo pra você querer acabar com a sua vida...

Ela retrucou, numa raiva desesperada:

– Não importa se eu tenho ou não motivo. Importa é que eu não vou sofrer nunca mais!- se desvencilhou do braço dele, mas tropeçou num buraco e caiu na areia.

Augusto a segurou pelos braços. Ela se debatia, decidida:

– Me larga! Por piedade, me deixa morrer, acabar com isso...

– Escuta aqui... Eu tenho mais motivos que você pra querer me atirar nesse mar. Há dois anos sou divorciado e não esqueço a minha mulher, sou um escritor fracassado, incapaz de escrever um texto decente, fumo, bebo e peno pra sustentar o aluguel de um conjugado na Santa Clara. Acha pouco?

Aline respondeu, furiosa:

– Não pense que suas palavras me comovem, escritor. Por mais que você me conte dos seus fracassos, nada me convence a mudar de idéia. Augusto, você mal me conhece, por que insiste tanto em me segurar?

Ele suspirou e, por fim, confessou:

– Acontece que eu...- baixou a cabeça por alguns segundos, e confessou.- Eu me apaixonei por você.

Ela parou de se debater e olhou, atônita. Ele continuou:

– E eu não posso deixar que a primeira paixão que eu consigo sentir, depois de dois anos atormentado pela lembrança da Lígia, se perca num mar.

A moça disse, com ironia:

– Não sou digna do coração de um escritor.

– Eu te amo e quero te amar!- ele implorava.

– Você e os riquinhos depravados que disseram que eu valho dois mil reais.- revidou Aline, ácida.

Augusto gritou, por fim:

– Eu te amo!

Estavam frente a frente. E ela o encarava, desafiadora:

– Ama? Então prova...

Augusto segurou sua mão, olhou para os seus olhos, e disse:

– Olha... eu posso até tentar iludir com palavras, mas, ele não mente...- e colocou a mão dela para sentir seu coração.

Aline se desarmou. Não pensava mais em se jogar no mar. Diante do gesto de Augusto, havia esquecido todas as mágoas. Abraçou-o, e os dois deram um beijo longo e romântico.

– Nunca nenhum homem fez isso por mim...- ela balbuciou, comovida. Seus cabelos eram quase que afagados pela brisa.

Os dois se deitaram na areia, entregues à paixão, e se amaram, entre sussurros, carinhos e beijos desprovidos de qualquer vulgaridade. E ficaram ali, abraçados, contemplando a madrugada, até serem vencidos pelo sono.

Quando Augusto acordou, surpreendido pelos fracos raios de sol, não viu mais o rosto de Aline. Por um momento, pensou que tinha sido apenas um vulto feliz de mulher, como na música do Caetano Veloso.

Seu pensamento logo foi desmentido quando ele encontrou ao seu lado os sapatos dela e um bilhete:

Augusto,
Despeço-me, antes que você abra os olhos, e todo o amor alimentado durante a nossa noite seja esfarelado por um bocejo. Deixo para você as minhas sinceras palavras, e os meus sapatos.Cuida de mim...
Da sua apaixonada,
Aline.



Augusto levantou-se, e foi andando pelo calçadão. Leve.

*****
Este conto eu escrevi para o concurso de contos do caderno Prosa & Verso, do jornal O Globo.

domingo, 14 de setembro de 2008

Tempo real

Acordou com o som tocando Onde anda você. Lembrou que iria voltar a sair na noite vazia, buscando razão para sua boemia, como sempre. Logo ele, que nunca foi boêmio... Mas não se importou tanto, o gosto fugaz dos beijos que provou não tinham sido suficientes para tirar dele o sabor da solidão.

Ligou o computador. Pôs no som o disco Vida noturna. Não ia ousar fazer letra como o Aldir, só queria ficar acompanhado de boas letras de música. Começou a digitar algumas letras no editor de texto. Sempre achou que as mulheres preferiam suas palavras à sua pessoa, e se apegava a cada frase que terminava. Debochava do botão que apaga o texto, frustrado porque não existe este recurso no mundo real.

Interfonou, e solicitou que o porteiro colocasse o jornal no elevador. Ao abrir a porta, uma senhora de idade comentou que ele estava abatido, e que devia ter mais disposição, disposição ao menos para descer e pegar o jornal na portaria. Ele agradeceu a preocupação.

Leu a primeira página, passou com os olhos as notícias do primeiro caderno. Pulou a parte de economia, leu algumas reportagens do caderno de esportes. Olhou com mais atenção a seção de cultura, que trazia uma entrevista bombástica, na qual um diretor de teatro cultuado pela classe pretensiosa da cidade dizia mais algumas babaquices que não iam acrescentar nada a coisa alguma.

Abriu a janela. Sentiu o ar que vinha pela maresia. Viu o Cristo Redentor, sempre imperando, uma presença indispensável. Lembrou da sua vida como rapaz sério, e, inusitadamente, riu. Parecia distante aquela história.

Voltou para o computador. Achou o texto horrível, mas decidiu engavetar para alguma ocasião em que a inspiração não viesse. Sempre teve temor por um bloqueio criativo, mas temia ainda mais um momento em que seus textos estivessem em “piloto automático”. No mundo do dinheiro e da obrigatoriedade em se produzir coisas novas, se sentia um obsoleto apaixonado por escrever – embora, ao terminar qualquer texto, automaticamente tivesse raiva e achasse o que escreveu extremamente descartável.

Novamente foi para a janela. Novamente sentiu o ar da maresia. Novamente viu a imponência do Cristo Redentor. E decidiu observar as pessoas que passavam. Sempre gostou de olhar os “transeuntes” (palavra que o avô dizia e que ele achou da primeira vez que era um palavrão).

Já conhecia todos os personagens de Copacabana. O bêbado da rua, que não faz nada além de andar de um lado para o outro, o idoso que aposta no jogo do bicho, o luxo da senhora que olha para a boutique ao lado do lixo de miséria da pedinte que olha para suas jóias. Jovens e nem tão jovens correndo para o trabalho, a garota até bonita com roupas minúsculas e com ar de que varou a madrugada dando prazer para algum turista... Gostava de imaginar a rotina de cada um, o que cada um deles fazia em determinadas situações.

Só não conseguiu definir aquela moça. Não parecia em nada com qualquer um de seus típicos vizinhos de vida. Trazia um encanto no modo de andar. A candura dos seus gestos se confundia com a leveza de seu rosto. Uma face tão bela e tão fina, que o fez fechar os olhos, para ver se o guardava em sua memória.

Respirou fundo, e teve um sopro de realidade: não podia mais viver sem aquele rosto. Estava fascinado por ela. Um fascínio ao primeiro instante. Sim, ela poderia não saber nunca, ele até gostava da idéia. Afinal, era um sentimento dele mesmo, um desejo, um amor que só ele poderia ter. E não precisaria explicar para ninguém. Nem para ela, que provavelmente o chamaria de louco e o desprezaria sem qualquer dó.

Despertou do devaneio e viu que a moça já se aproximava da esquina da rua. Mas o tempo dela era diferente. Os outros pedestres andavam de maneira afoita, atrasados para alguma coisa que ele e ela desconheciam. A sensação dele era de que o relógio custava a andar, com o ponteiro seguindo lentamente os passos dela.

Quanto mais a seguia com o olhar, mais sentia que ela era apenas dele. Só ele conseguia contemplar a suavidade daquela moça. Sim, não a conhecia. Mas aquele momento fazia parte apenas do mundo deles dois.

Queria que aquele momento fosse interminável. Por isso ficou nervoso quando a viu se aproximar do cruzamento. Tinha consciência de que aquela lembrança se perderia em meio ao barulho de carros e de pessoas da cidade.

Trêmulo, desceu as escadas do prédio e ganhou a rua, afoito. Por um instante, viu o tempo dela correr. Ela corria com receio de que o sinal voltasse a ficar vermelho. Ele parou, com os olhos prestes a lacrimejar. Não era mulher para uma aparição fugaz em sua vida.

Percebeu que o tempo dela voltava a ficar suave, e não hesitou em acelerar seu tempo para ficar em compasso com ela. Atravessou a rua, ignorando seu descompasso com as regras de trânsito.

Num relance, o brilho enigmático daquela moça ocupou sua visão. Ele estacou, rendido ao colorido que ela dava para sua vida apenas com uma brisa que vinha pelo seu olhar. Tentou também escutar o que ela dizia, mas o som de sua voz foi abafado por uma estridente e inoportuna buzina.

A sensação de ser empurrado, jogado, não o incomodou quando viu estrelas. Sabia que uma das estrelas seria ela. Ao abrir os olhos, viu, em meio a tantos rostos e a tantos gritos, a face dela, silenciosamente dizendo que estava tudo bem. Ele esboçou um sorriso, levando a imagem dela para sempre, no momento em que fechou os olhos pela última vez.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

90 minutos

Tiro a camisa do armário. Assim que eu a vestir começarei a minha transformação. Passarei a ser mais um, um dos muitos que representa uma paixão, um ideal, uma sensação... Ou, em termos mais técnicos, um dos muitos a representar 11 jogadores que vão correr atrás de uma bola. Saio de casa, caminho alheio às provocações de torcedores adversários, sorrio aos que aderem e incentivam minha nova face.

É sempre assim. Todo domingo eu deixo de estar só e me torno “mais um”. Uma situação que acontece pouco a pouco. Adentro o vagão do metrô, me sento num lugar vazio, e calmamente vou esperando que o povo chegue. Passa uma estação, chegam mais dois com a mesma camisa que eu. Sorrio. Vem mais um, mais outro, mais aquele outro, até ter uma boa quantidade de pessoas que seguem o mesmo ideal que eu.

Na mudança da linha 1 para a linha 2, os primeiros gritos da torcida aparecem. A ansiedade para que venha de uma vez a baldeação do metrô fica ainda maior quando o cântico ganha mais corpo, deixa de ser formado por gritos esporádicos pelo meu time para se tornar aquela canção que a torcida e que a imprensa promoveram a hino décadas atrás.

Uma pessoa faz sinal de positivo. Retribuo beijando o escudo da minha camisa. Enfim, chega a estação onde vamos descer. Aquela multidão sorridente, esperançosa, cantando, gritando, sorrindo.

Milhares de pessoas deixarão de existir por 90 minutos (fora os acréscimos e o intervalo). Assim que passarem os ingressos pela roleta, eles vão deixar do lado de fora suas dores, suas amarguras, o aluguel que venceu, o casamento que vai mal, a penúria, as culpas e as desculpas que encontraram pra cada uma das situações que eles vivem neste momento.

Meu ingresso passa pela catraca. De uma vez por todas está de lado tudo que me incomoda nesta vida. Não preciso mais ser tímido. Deixo de lado minha figura solitária de corpo e alma. Saem de cena as preocupações habituais e as eventuais. Centenas, milhares de pessoas deixam de ser “eu” para só se referirem a elas mesmas como “nós”.

Agora a vida depende de 11 pessoas. De 22 chuteiras. Das duas mãos do goleiro, essa posição ingrata, escolhida para abafar o êxtase maior desta disputa, ele que cala uma torcida e dá o suspiro de alívio à outra. Do árbitro e de seus assistentes, que com seus erros podem sacrificar meses de trabalho, tornando um resultado injusto aos olhos do povo.

Chego à arquibancada. Estou no mesmo lugar de sempre, o mítico lugar que me faz companhia desde os primeiros jogos no estádio. Entôo os gritos que as torcidas “organizadas” cantam, a plenos pulmões e na companhia de bumbos (tocados perfeitamente ou não). Minha mente de uma vez por todas está limpa. Minhas direções estão centradas para o que vai acontecer naquele palco que tem tapete de grama.

O placar eletrônico dá seus primeiros sinais de vida. Um torcedor comenta o que o radinho de pilha denunciou. Outro lamenta a ausência de um jogador. Um velhinho diz que bons tempos eram os anteriores, que o time de hoje não é nem sombra daquele que outrora defendeu as nossas cores. Aquele que tem uma faixa na cabeça extravasa dizendo que sai preso se o resultado de hoje não for uma vitória. O de camiseta comenta que o árbitro escalado já nos prejudicou em outras oportunidades. Um leva fé, e faz as contas lendo a classificação do campeonato.

O auto-falante anuncia as escalações dos clubes. A torcida aplaude jogador por jogador, grita os nomes daqueles aos quais todos nós entregamos nosso sentimento, nossa razão de euforia, nossa vontade de matar ou de morrer, nossa vontade de extravasar sentimentos de amor e ódio. Alguns deles têm cantos próprios, e agradecem à torcida quando são homenageados pelo coral. Por um coral que, apesar de não estar com chuteiras em campo, segue atento a tudo o que acontece na partida.

Entra em campo a equipe adversária. Vaias, hostilidades, ofensas. Tudo para amedrontar aqueles que podem fazer nossa tropa cair no campo de batalha. Por mais que os analistas de futebol digam que eles sejam superiores a nós, todos eles são desprezados pela torcida. O goleiro vira mero “frangueiro”, a zaga vira “peneira”, o meio-de-campo é composto por “perebas” e o ataque é formado por um bando de “perna-de-pau”.

Vai começar o jogo. O mundo se resume às próximas horas vividas no estádio. Somos o povo! E queremos a “alegria do povo” definida no dicionário em uma palavra só: FUTEBOL. Começou. Primeira jogada mal sucedida, a torcida uníssona grita “uuuhhh”, com direito a eu fazer meu “solo” nesse coro, mandando o autor do lance ir para um lugar não muito agradável.

Eu, o contido, o educado, o gentil, o cavalheiro, me transformo. Viro o ansioso. Quero a vitória. Exijo o gol. Almejo o meu sonho de ver a minha paixão culminar na grande felicidade de ver a bola passando pela rede.

Distribuo palavrões com a zaga que deixou o jogador adversário chutar e quase fazer o gol, com o juiz que não marcou uma falta clara para nós, com o artilheiro que não faz gol há semanas e mantém o tabu depois desse chute bisonho cara a cara com o goleiro. Peço, imploro para que os representantes da minha alegria corram, batalhem, lutem, mostrem raça e principalmente pontaria nos passes e nos chutes.

O time persiste na defensiva, acuado, e dá chutões para o alto ou para onde o nariz aponta. Eu berro, com um copo de refrigerante na mão - mas, apesar de ser proibida bebida alcoólica nos estádios, continuo embriagado de vontade de voltar pra casa com a vida em paz.

Intervalo. E eu sou mais um. Em meio a todos aqueles que vestidos com a camisa das mesmas cores e com o mesmo estampado que a minha camisa tem, eu permaneço ansioso. Descontando minha raiva no ouvido dos pobres torcedores que tiveram a infeliz coincidência de ver o jogo próximo de mim.

Com eles eu não preciso ser o que sou diante dos olhares discriminativos da sociedade. Sou desbocado e falo em tons que minha voz jamais chegaria na minha rotina. Converso com eles como se fôssemos velhos conhecidos - e somos, afinal, torcer pelo mesmo time acaba fazendo com que eu tenha milhões de amigos unidos para apoiar a equipe ou para xingar quando os jogadores não conseguem ir bem durante o jogo.

Os times voltam do intervalo. Vai começar o segundo tempo. O último quadro antes do juízo final. Desse juízo que tem sua graciosidade - que nem sempre o mais forte, o superior, ou o mais favorecido financeiramente se torna o vitorioso no final.

O treinador fez boas alterações. Colocou o time mais ofensivo. Esse jogador não pode nunca ficar no banco. São os comentários que os companheiros dizem depois dos primeiros minutos de segunda etapa.

A bola cruza na nossa área. O zagueiro salva em cima da linha. Apreensão ao extremo, e medo de que todo aquele sonho vivido nas horas mais recentes caia por terra através de um pé de um jogador que não veste a mesma camisa que a nossa. O jogo permanece truncado. Boas defesas de ambos os goleiros. Um jogador nosso cai na área. Pênalti claro, mas que passa batido nos olhares do árbitro. E o coro, em uníssono, entoa outro grito: “Ladrão, ladrão”, agora com variados “solos” com ofensas à sua virilidade ou à pobre mãe do juiz.

O cronômetro vai passando. O locutor diz que o jogo está bom, uma bela partida de ambas as equipes. Milhares de pessoas de ambos os lados sofrem a agonia que passa o confronto entre 22 jogadores. Alguns deles que jogam bola, outros que brigam com a bola, outros que brigam com os outros, e até os que brigam entre eles.

O nosso camisa 10 pega a bola na intermediária. Passa pelo zagueiro e deixa o atacante cara a cara com o goleiro. Uma puxada para a direita e o arqueiro deles fica imóvel no chão. Com toda a calma, o atacante coloca a bola por cima do goleiro batido. E a palavra que tem três letras ecoa em uma das partes da torcida: GOL!

Uma palavra pequena e decisiva. Ela que define quem venceu e quem perdeu. E a poucos minutos do fim, o gol veio do nosso lado. Euforia, sorrisos, gritos, cantos de alegria e também de provocação ao adversário.

E apreensão pelos minutos finais. O juiz deu muitos minutos de acréscimo. O time tá recuado, cada vez mais acuado, praticamente tem 11 jogadores na pequena área. O zagueiro prende a bola, passa pro lateral, que consegue cavar uma falta. O jogo continua, a partida fica nervosa, um time querendo evitar o suspiro de alívio do adversário, o outro não querendo em hipótese alguma que saia de campo derrotado.

Mas não adianta. É fim de jogo. Vencemos! Os jogadores vêm para o nosso lado. Eles são nossos heróis, e vibram junto com aqueles tantos que vieram ao campo para zelar por eles, por seu bem estar e por suas boas jogadas... Na nossa torcida, só abraços, sorrisos, felicidades.

E uma ida para casa cantando, assobiando em glória. Todos ostentando a camisa que simboliza o time que saiu de campo vitorioso. Em calma todos saem do estádio. Desço a rampa do estádio. Passo pelo portão. Lá reencontro a companhia da minha solidão.

Ela vai me levar para casa. Cuidar de mim. Apresentar de novo cada nuance de meu dia-a-dia, tão difícil, tão confuso, tão triste. Tão só. Mas sabendo que no próximo domingo vou estar bem acompanhado. Lado a lado com as várias solidões que durante 90 minutos ansiarão por uma alegria repentina e por algo que amenize a ausência de felicidade no dia-a-dia.

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Obrigado a todos os que vêm prestigiando meu "início" de blogue. Mas não se enganem: ainda há muito o que se contar no Diário de um salafrário.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Ato

Última ação de impacto. Segue uma trilha musical retumbante. As luzes são apagadas todas de uma vez. Aplausos, às vezes seguidos de gritos de alegria. Basta alguns instantes para aquele que me deu a vida por pouco mais de uma hora já volte a ter a sua identidade, o seu cotidiano, seus amigos, sua família, seu carro, seu bicho de estimação, seus vícios, seus sonhos, suas alegrias, seus dissabores.

Ele recebe os amigos no camarim, ganha presentes, felicitações por mais um dia bem sucedido de crítica e público. Toma uma água, reclama que hoje está com a garganta seca por causa do ar condicionado, veste-se e vai embora.

Ele é metódico. Minhas roupas são devidamente colocadas num cabide, um eventual adereço deixado na bancada do camarim (fazendo companhia à guimba de cigarro que ele acabou de fumar para deixar de lado o estresse que sentiu nessa uma hora e meia estafante na inglória luta de entreter a platéia de um teatro lotado - se bem que isso também acontece em dias de casa vazia).

Posso ver a pessoa da limpeza recolhendo os papéis de bala esquecidos nas cadeiras. Outra pessoa varre o chão e lustra cada cadeira. Depois de um sinal de positivo para cima, alguém vai desligando as luzes do teatro passo a passo. Primeiro sai o lustre que fica imponente no teto. Em seguida, as luzes que ajudam a iluminar cada uma das laterais. Por fim, ouço as portas sendo fechadas.

Nas próximas horas permaneço trancado em um camarim. O traje, os objetos de cena, o cenário, todos me fazem companhia, espremidos no quartinho que dão para a minha história, para a minha vida. Será que sou tão desimportante a ponto de guardarem minha vida em um cubículo? Qual foi o interesse de me darem vida? Meramente fazer um bando de pessoas rirem num programinha de fim de semana, num passatempo antes da pizza?

Não tenho hora para rir. Não posso chorar quando tenho vontade. Não tenho direito a transgredir as regras, a tomar um porre, furar o sinal vermelho, matar ou morrer quando bem entender. Não posso decidir entre ser marginal ou ser herói.

É triste precisar do outro para viver. Precisar que alguém me empreste seu corpo, seus traços, seus gestos, sua voz para que eu viva ao menos por alguns momentos do dia. E para que eu viva de quinta a domingo, ou, com muita sorte, com sessões extras aos sábados.

Que horas são? Colocaram a música ambiente! Acenderam as luzes do público! As portas abriram e veio aquele burburinho de gente chegando. Do outro lado do pano, já veio o rapaz da técnica para colocar o cenário na parte de trás do palco. O contra-regra coloca meticulosamente os objetos de cena. O operador de luz ajeita os últimos retoques antes de tudo começar. O operador de som aperta o primeiro sinal.

Ele chega, já maquiado. Calmamente coloca as roupas que me caracterizam. Agora tenho uma face, alguns sinais característicos, tenho uma roupa extravagante, e estou prestes a viver novamente a situação das noites anteriores. Toca o segundo sinal.

Eu respiro fundo através da respiração dele. Ele faz exercícios de voz para que eu seja ouvido pelos espectadores que deixaram de lado suas rotinas para viverem comigo a minha história. Ele caminha até a coxia. O diretor manda colocar os anúncios dos patrocínios.

Toca um sinal. Outro. As luzes da platéia se apagam lentamente. Outro sinal. Vou voltar a viver. Por algumas horas, minha vida vai estar num tablado, significando risos ou choros naqueles que quiseram assistir à minha trajetória.

Nada melhor para um personagem do que ver toda sua vida existindo diante dos olhares curiosos que esperam abrir o pano. Já tocou a música que abre o espetáculo. Merda pra você que me interpreta, amigo. E obrigado por mais uma vez emprestar sua vida para recriar a minha história...

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Senhoras e senhores, este é o post de estréia do blogue Diário de um salafrário. Por favor, desliguem seus celulares e que tenhamos um bom espetáculo.