Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Fome no divã

Olá, amigos.

Em um dos posts anteriores, apresentei a vocês um esquete, a vertente salafrária do teatro. Foi um texto curto que fiz fortemente inspirado na obra de Nelson Rodrigues, minha primeira e eterna influência na literatura e na dramaturgia. No entanto, com o tempo, minha passagem como dramaturgo surpreendentemente passeou por outra área, na qual eu jamais imaginaria passar quando comecei a escrever.

De repente, me vi escrevendo textos cômicos, e o que apresento hoje é aquele que eu considero o definitivo. Principalmente, por ter sido escrito para um ator que considero um dos maiores talentos da comédia brasileira. Tive o privilégio de conhecer DELANO SESSIM quando fomos colegas de cena nas aulas do Ricardo Kosovski no teatro O Tablado. Este esquete eu escrevi pra nós dois fazermos, mas ele, às voltas com os vários compromissos do ator multimídia que é, não pôde fazer.


Mesmo assim, mantive a palavra de não apresentar este texto pra nenhum outro ator. Não enxergo ninguém além dele pra fazer o personagem principal desta minha ousada incursão na comédia. Delano, aqui fica o meu aplauso, e a espera de um dia receber o privilégio de te ver fazendo este texto. E, mais ainda, a espera de que você tenha seu talento reconhecido pelo grande público!

A todos, espero que Fome no divã seja bem degustado. É um trabalho do qual me orgulho muito de ter escrito. Fiquem à vontade para comentar.


Obrigado a todos,

Vinícius Faustini


*****

FOME NO DIVÃ


Personagens

PSICANALISTA
POLCAN MACIEIRA PUDIM

Cenário
Sala do consultório de um psicanalista. Uma poltrona ao lado de uma mesinha e um divã.

PSICANALISTA (em off) – O próximo!

Ilumina-se o palco. O psicanalista está de pé, à espera do paciente.


POLCAN – Boa tarde. (cumprimenta o psicanalista)

PSICANALISTA – Boa tarde, senhor Polcan. Esteja à vontade.

Polcan está visivelmente ansioso, chega a tremer no divã. O psicanalista age naturalmente.

PSICANALISTA – Pois bem, pois bem. (senta-se na poltrona e pega uma ficha na mesinha) Senhor Polcan Macieira Pudim. Qual é o seu problema?

POLCAN – Bem, doutor, eu... eu decidi procurar a sua ajuda porque... (chora)

PSICANALISTA – Sim?

POLCAN – Ah, fala você primeiro, doutor. Eu não tô em condições de falar agora.

PSICANALISTA – Escute, senhor Polcan, numa consulta com o psicanalista, você deve falar primeiro o seu problema, para que eu avalie.

POLCAN (irritado) – Mas quem tá pagando sou eu! O senhor não conhece aquele ditado “o freguês sempre tem razão”?

PSICANALISTA (sempre calmo) – Acalme-se, senhor Polcan...

POLCAN – Minha mulher disse que o senhor ia me curar do meu problema!

PSICANALISTA – Sim, mas se eu não souber como é seu problema, não posso ajudar.

POLCAN – Está bem.

PSICANALISTA – Pode falar.

POLCAN – Bom, doutor, tudo começou por causa do meu pai.

PSICANALISTA – Como?

POLCAN – Quando minha mãe tava grávida de seis meses, numa noite ela teve desejo, sabe? Desejo de comer manga com abacate.

PSICANALISTA – E o seu pai?

POLCAN – Eram três horas da manhã, mandou a velha dormir e aí a massa desandou...

PSICANALISTA – Não entendo...

POLCAN – É, a massa desandou. Eu nasci com cara de manga chupada, nariz de castanha de caju, sou alto e magro parecendo uma cana-de-açúcar... E olha o meu nome! Onde é que o senhor já viu um cara com nome de mexerica?

PSICANALISTA – É, aliás seu nome é bem exótico: Polcan Macieira Pudim. Parece predestinado a gostar de comida. Bem, voltando... O desejo não realizado de sua mãe fez com que você sempre associasse uma parte de seu corpo com algum alimento.

POLCAN – Não é só isso, não, doutor. É em tudo! Eu só penso em comida, o tempo todo... E fico nervoso, quando fico nervoso eu começo a comer, comer, comer...

PSICANALISTA – Bem, isso é delicado. O senhor é casado?

POLCAN – Sou.

PSICANALISTA – Como é sua mulher?

POLCAN (feliz) – Ah, doutor, ela é uma uva!

PSICANALISTA – Uma uva?

POLCAN – É, os olhos dela parecem duas jabuticabas, os seios são tipo limãozinho, meu Deus, que delícia! E outra: dá mais que chuchu na serra! E tem um sabor de melão...

PSICANALISTA (estranhando, tenta mudar de assunto) – Ela trabalha?

POLCAN – Não. Quem descasca o abacaxi lá em casa sou eu.

PSICANALISTA (espantado) – Deve ser muito difícil, não?

POLCAN – É verdade, tem muito pepino pra segurar.

PSICANALISTA – A sua esposa agüenta você sempre falando em comida?

POLCAN – O meu docinho de coco agüenta, ela me ama muito! Ela sabe que a minha vida não é mamão-com-acúçar...

PSICANALISTA (muda de assunto) – E sua família?

POLCAN – Eles erguem a mão pro céu porque eu não sou kiwi.

PSICANALISTA – Kiwi?

POLCAN – Peludo por fora, fruta por dentro.

PSICANALISTA (farto) – Ah, sim... Bom, vamos mudar de assunto. Gosta de cinema?

POLCAN – Sim, sempre acompanhada de pipoca com refrigerante.

PSICANALISTA – É. Qual o seu filme favorito?

POLCAN – Tomates verdes fritos.

PSICANALISTA – É, senhor Polcan, e a ciência diz que a teoria de que desejo de grávida não realizado dá problema pro filho não é verdade...

POLCAN – Pois é, doutor. Minha vida não é sopa!

PSICANALISTA – Não mesmo, senhor Polcan. Bom, agora eu farei uma dinâmica. Eu digo uma palavra e você responde com a primeira palavra que lhe vier à cabeça relacionada ao assunto. (respira fundo) Quem sabe, assim, você consiga ao menos não pensar em comida. Posso começar?

POLCAN – Pode.

PSICANALISTA – Futebol.

POLCAN – Frango!

PSICANALISTA – Carro.

POLCAN – Cebolão!

PSICANALISTA – Ah, mas esta agora será difícil você pensar em comida. Teatro.

POLCAN – Bife!

PSICANALISTA – Cante o primeiro verso de uma música que lhe vem à cabeça agora.

POLCAN – “Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu”.

PSICANALISTA – Pelo amor de Deus, pára de pensar em comida!

POLCAN – Ô doutor, eu não consigo!

PSICANALISTA – Olha, nosso tempo acabou.

POLCAN – Já? Não deu nem pro tira-gosto.

PSICANALISTA (irritado) – Não, não deu nem pro tira-gosto.

POLCAN – Tá legal, doutor. Mas... essa conversa me deu uma fome!!!

PSICANALISTA (irônico) – Imagino.

POLCAN – Quanto é?

PSICANALISTA – Cento e cinqüenta reais.

POLCAN – Tudo isso? Salgado, hein?

PSICANALISTA – Infelizmente, o meu preço não é a gosto do freguês...

POLCAN (escrevendo no cheque) – É verdade, rapadura é doce, mas não é mole não!

PSICANALISTA (nervoso) – Por favor, senhor Polcan, vá embora! Eu já fiquei enjoado de tanto o senhor falar de comida.

POLCAN – Francamente, doutor, eu achava que o senhor tratasse melhor os seus clientes. Escuta aqui, se continuar desse jeito eu vou rebater na mesma moeda. Porque comigo é assim, pão, pão, queijo, queijo.

Sobe a música Ilegal, imoral ou engorda, cantada por Roberto Carlos, na altura do verso “será que tudo que eu gosto é ilegal, é imoral ou engorda”. As luzes se apagam.


PANO


© Copyright. Vinícius Faustini, 2005. Todos os direitos autorais reservados.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Trilha sonora

Não vivia a buscar, não corria contra o tempo. "Meu tempo passou", era o que eu ousava pensar. Mas chegou o tempo de amar, um amor com versos, com melodias, no qual não nos preocupamos em desafinar, e sim, nos deixamos cada vez mais desatinar os nossos corações.

Não quis cuidar da luz do palco que insistia em não me iluminar. O brilho do seu olhar me iluminava. E para cantar. Não o meu repertório, mas o repertório que nosso caminho a dois começava a tocar.

Dançamos ao som do acaso, esse sujeito simpático que fez a gentileza de nos apresentar. À meia-luz, em nossa calma, nosso tempo, nossa hora, começamos a compor a nossa história.

Uma história feita a quatro mãos, em lábios que beijamos, mãos que afagamos. Decidi não querer mais guardar meu mundo em mim, vi que era maravilhoso ter encontrado meu caminho no seu, caminho que hoje estamos a trilhar, de mãos dadas.

E cantarolando nossa trilha sonora, pedindo sempre bis. Pois sabemos que ainda há muito amor para ser cantado.

*****
Este texto foi declamado pela cantora Eliane Gonzaga, num projeto particular que ela fez em Vitória (capital do Espírito Santo e minha terra natal). Tive uma emoção muito grande por este privilégio que ela concedeu à minha literatura.

O salafrário que vos escreve espera ter emocionado a todos que lêem este Diário de um salafrário. Quem sabe este texto não possa escrever um pouquinho o que as quatro letras da palavra AMOR tentam dizer?

domingo, 26 de outubro de 2008

Olhos fechados

Olá, amigos.

Depois de dedicar o post anterior a um momento do salafrário arriscar passar pela poesia, hoje apresento uma outra "vertente" salafrária. Trata-se de uma parte artística que eu gosto muito, e com a qual atualmente tenho uma ligação muito forte - o TEATRO.

Recentemente, trabalhei como ator na montagem do Sonho de uma noite de São João, aqui no Rio de Janeiro. No entanto, a primeira porta que abri quando conheci as artes cênicas foi mesmo como autor.

Abaixo, apresento um esquete que escrevi em 2004. O texto foi escrito nos moldes da minha primeira influência dramatúrgia - a literatura de Nelson Rodrigues. Quero a opinião sincera de todos vocês e, caso alguém se interesse, pode fazer uma montagem deste texto. É só entrar em contato comigo pelo e-mail:

viniciusfaustini@gmail.com

Obrigado a todos pela atenção,

Vinícius Faustini.


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OLHOS FECHADOS

Personagens

Beatriz – jovem, tem uma beleza frágil. É uma mulher que foi uma pessoa muito doce, mas depois do convívio com o marido, a quem amava, tornou-se amargurada. Depois de ficar cega, além de amargurada, foi se tornando cada vez mais reprimida.

Hélio – também jovem, mas seu jeito de ser e sua expressão sempre séria fazem com que aparente mais idade. Ama a esposa, mas, no decorrer dos anos, seu amor por Beatriz tornou-se obsessivo. Os ciúmes doentios fizeram com que ele ficasse rude e, pelo receio de que um dia a esposa o abandone, é capaz de cometer as maiores atrocidades.

O cenário é a sala de estar da casa de Hélio e Beatriz. Uma sala simples, tendo uma mesa com quatro cadeiras e um sofá.

Beatriz entra em cena. Usa um vestido e anda amparada por uma bengala.

BEATRIZ (chamando) – Iara! Iara! (tempo) Onde será que ela foi? (tenta novamente) Iara! Iara! IARA! (percebe passos. Vira-se de acordo com o som de onde eles vêm) Ufa, achei que você tivesse ido embora...

Entra Hélio. Usa camisa social e calça comprida.


BEATRIZ (comovida) – Quando você não está aqui me sinto tão sozinha...

HÉLIO – Ora, Beatriz. (ela se assusta) Você sabe que nunca estará só... Você tem a mim.

BEATRIZ (frustrada) – Ah, é você... Desculpe, eu estava procurando Iara. (chama) Iara!

HÉLIO (prestativo) – Algum problema, meu bem?

BEATRIZ (hesita, sempre se esquivando dele como pode. Enfim, diz) – Nada... (tempo. Diz, vacilante) É... é só com ela... (pausa. Num rompante) São problemas de casa. Hélio, querido, você pode chamar Iara pra mim, por favor?

HÉLIO (brusco) – Iara não veio.

BEATRIZ (surpresa) – Como assim não veio?

HÉLIO (categórico) – Não veio e nunca mais virá...

BEATRIZ – O que você quer dizer com ‘nunca mais virá’?

HÉLIO – Ela não trabalha mais aqui. Mandei embora aquela relapsa.

BEATRIZ (surpresa) – Relapsa? (a defende) Que absurdo, Iara sempre tão atenciosa... Prestativa. Me ajudando em tudo, me fazendo companhia.

HÉLIO – Uma incompetente...

BEATRIZ – Mentira! Vai, pode dizer, Iara foi mandada embora porque era minha amiga... Por Deus, Hélio, será que você quer sempre me ver infeliz? (chora) Eu tinha tantos amigos, tantas pessoas com quem eu convivia...
Foi você que me afastou de todo mundo. Com essa sua preocupação doentia, essa idéia fixa de que eu estava traindo você...

HÉLIO (irritado) – Não sou nenhum louco! Você e eu sabemos muito bem que todas as minhas desconfianças tinham fundamento. Se eu não fosse atento, você já teria me abandonado há muito tempo...

BEATRIZ (em cima da fala de Hélio) – Não agüento mais essa tortura!

HÉLIO – Você sempre foi a mais bonita de todas... (afaga o rosto de Beatriz) Não tem idéia do quanto a sua presença era capaz de enervar os homens. Todos só tinham olhos para você, Beatriz...

BEATRIZ – Você sabe que já não posso mais olhar pra ninguém.. Hélio... Hélio, tem piedade. Essas discussões só me fazem mal!

HÉLIO (piedoso) – Mas, meu amor. É só você confessar. Confessar que se você não estivesse cega já teria me deixado.

BEATRIZ – Não, não, Hélio... Quantas vezes eu tenho de dizer que não!
(tempo) É o cúmulo! Demitir Iara, que há anos cuidava de mim... Que mal ela poderia fazer a você?

HÉLIO – Nenhuma pessoa é digna de estar ao seu lado, meu amor... (a abraça) Só eu conheço você bem... Só eu sei te dar carinho, atenção... Beatriz, ninguém mais do que eu te ama nesse mundo!

BEATRIZ (num rompante) – Você só me faz sofrer! Não quero mais isso pra mim! (grita) Socorro! Quero ir embora daqui! (tenta apressar o passo, mesmo com a bengala) Essa sensação horrível de ser vigiada. (grita) Socorro!

HÉLIO (triunfante) – Não adianta, minha amada... Para sempre, somos um do outro. (tira a bengala das mãos dela) Você não precisa mais disso... Te prometo, Beatriz, que serei pra sempre o seu amparo. (joga a bengala)

BEATRIZ – Hélio... (tenta com o tato encontrar sua bengala) Não. Não, você não fez isso comigo. (anda alguns passos, mas Hélio a segura pelo braço) Hélio, você está indo longe demais. (se esquivando) Devolve a minha bengala... Por favor. (Hélio a aperta) Por favor, me solta...

Hélio envolve Beatriz em seus braços.

HÉLIO (sussurrando) – Primeiro confessa...

BEATRIZ (suplicante) – Me solta...

HÉLIO – Com quem você ia fugir?

BEATRIZ (tenta se desvencilhar) – Não sei do que você está falando...

HÉLIO – Confessa!

BEATRIZ – Tá me machucando...

HÉLIO – Dói mais em mim do que em você, minha querida... Mas é para o seu bem. Quem ia te afastar de mim?

BEATRIZ – Tudo bem... Eu confesso...


Hélio se surpreende e a solta. Anda alguns passos e fica de costas para ele.


HÉLIO (triunfante) – Fala...

BEATRIZ (respira fundo) – Quem te afastou de mim foi você. Você... Com as perguntas, as acusações, as desconfianças... (chora) Um dia eu amei você, Hélio... E quando eu percebi o que você realmente é, já era tarde...

HÉLIO (em deboche) – A sua cegueira não deixou!

BEATRIZ (fica de frente para ele) – Nem com o fato de eu ter ficado cega as suas desconfianças acabaram...

HÉLIO (retruca) – Mas o meu amor aumentou!

BEATRIZ – Isso não é amor...

HÉLIO (explode) – É amor sim! Um amor intenso. Que convive com o receio de um dia possa ser desprezado. Que não suporta a idéia de perder sua amada pra um sujeito qualquer que não a ama tanto quanto ele! E foi guiado por esse amor que tomei a atitude que me deixou para sempre ligado a você...

BEATRIZ – Que atitude?

HÉLIO – Beatriz... Muitos te olhavam. Todos te olhavam! E você retribuía os olhares apaixonados, os olhares de desejo. Eu via! Eu via seus olhos cheios de promessa. De namorada ansiosa por um beijo...

BEATRIZ (num lamento) – Meus olhos...

HÉLIO – Eu enxergava o brilho dos seus olhos todas as vezes que alguém te paquerava. E aquilo me deixava amargurado. Infeliz. Até que um dia eu decidi. (firme) Você nunca mais teria olhos para outro homem!

BEATRIZ (levemente comovida) – Não compreendo...

HÉLIO (calmo, obstinado em dizer) – Aproveitei quando você estava fora de casa e peguei seu colírio na mesa de cabeceira. E troquei por uma substância química tóxica de ação lenta. (sorri) Foi o dia mais pleno da minha vida... O dia no qual eu tive certeza de que eu seria, para sempre, o dono dos seus olhos.

BEATRIZ (atônita) – Você... Foi você que me fez perder a visão. Os meus olhos... (pausa) Pra quê? Pra que eu pagasse sua dúvida com a minha cegueira?

Hélio tenta abraçá-la.


BEATRIZ (num rompante) – Tire suas mãos de mim! (vai se afastando, andando para trás)

HÉLIO – Beatriz... Não adianta fugir. Agora somos só nós dois.

BEATRIZ – Nunca! Eu não quero passar a minha vida ao lado do homem que me proibiu de enxergar. Que me condenou à escuridão... Chega, Hélio... Não vou mais ficar com os olhos fechados diante das suas atrocidades. (vira-se e vai andando em direção à coxia, sempre mexendo as mãos, como se estivesse receosa de esbarrar em alguma parede)

HÉLIO – Beatriz, aonde você vai?

BEATRIZ (parada, de costas para ele) – Vou embora. (música instrumental triste)

HÉLIO (triste) – Vai me deixar aqui sozinho?

BEATRIZ (reflete antes de dizer) – Não. Você nunca esteve, nem vai estar só. Vai estar sempre acompanhado por sua cegueira. A cegueira que fechou seus olhos fingindo ser o amor. (tempo) Adeus, Hélio.

Beatriz sai de cena. Hélio caminha até o lugar onde jogou a bengala. Tira do bolso da camisa um par de óculos escuros e os coloca. Está com o olhar de frente para a platéia. Abaixa-se, sempre mantendo a direção do olhar. Vai tocando o chão até encontrar a bengala. Levanta-se. A música sobe. A luz vai descendo, até chegar à escuridão.

PANO

© Copyright. Vinícius Faustini, 2004. Todos os direitos reservados.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Amor platônico

Amigos deste blogue,

hoje este salafrário que vos escreve arrisca apresentar uma vertente pela qual eu poucas vezes ouso passar. A POESIA. Trata-se de um poema que fiz em 2001, em meio a noites sem dormir e algumas inseguranças que passam por um rapaz de 18 anos.

Como neste espaço ando colocando minha cara de escritor a tapa, sinto-me a vontade para compartilhar este poema. Quer dizer, não é bem um poema, é mais um jorro de um coração. Qualquer coisa, culpem minha imaturidade com as palavras...


Obrigado a todos,

Vinícius Faustini


*****

AMOR PLATÔNICO

Minha amada,
Embora quase morto pela corrosão desta paixão
Uma vez mais suplico, por meio de parcas e descontínuas palavras
A minha ânsia em alimentar o meu desejo.
Mesmo através de um amor calado, persisto em dedilhar toda sua
Onipresença (ou onipotência, quem sabe...)
Romanticamente, apesar de não ser propriamente um poeta...

A minha vontade era de conseguir um dia
Ter você ao meu lado
Expor os tristes dias que fiquei abandonado pelos seus
Olhos brilhantes... mágicos...
Detalhar o fascínio de seu rosto puro...
Enxergar a alma escondida nos lábios desenhados minuciosamente...

Às vezes você me parecia tão próxima...
Do que valem as ilusões do falso poeta
Solitário
Que chama pelo seu nome
Mas não é escutado
E só consegue observar sua presença
Ansiando pela concretização de seus singelos delírios...

Desejar fazer de você a mulher mais amada do mundo
Unir seus lábios aos meus
Descansar sua beleza
Através de palavras meio que improvisadas, mas capazes de
Descrever tudo que sofri durante o tenebroso tempo no qual meu amor ficou
Umedecido pela minha impotência, pelo meu receio
Desgraçado pra não te machucar
Apaixonado, mas consciente de que não merece o seu afeto
Arranhado pela minha obscura realidade
Metrificado pela repressão de sentimentos
Odiado por servir como ácido para a pessoa amada
Retaliado por todos os lados pra esconder sua verdadeira face

E que depois de um longo exílio
Insiste em gritar sua revolta
Chorar sua carência
Mostrar a você,
Meu doce anjo
O cruel sentido dessa minha angústia
Amordaçada
Pela consciência de que
A distância pode amenizar
Minha dor
E apagar as provas
Que expõem claramente o meu

Amor platônico
Desprezado ultrajante declarado amaldiçoado
Por todas mulheres que semeiam
Amor, dor, prazer, êxtase, ternura, rancor
Ao apaixonado como eu, que, apesar de tudo,
Ama calado
E nutre sua paixão com considerável empenho
Para não ver ferido o coração de sua amada inatingível.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Agônico

Um jorro de imagens desgovernadas passa sobre minha cabeça. Em um lapso de lucidez, aponto a arma e dou um tiro certeiro no braço dele. Por mais que eu saiba que estou perto da morte, não consigo desistir de lutar. É o meu sangue, é minha honra!

Recordo toda a ação. Ele cospe no meu rosto, talvez esperando o momento certo do exorcismo, das chagas que eu trouxe para a vida dele. Que horas eram quando ele entrou aqui? Não me lembro exatamente. Só lembro que acordei de um cochilo com a campainha estridente e irritante. Tentei vencer o importuno pelo cansaço, mas ele insistia, sabia que eu estava aqui.

Levantei e fui em direção à porta, o barulho da campainha latejava na minha cabeça. À medida que ele tocava, a minha azia e aquele gosto de ovo podre subiam na minha boca. Foi o café. Eu sei que não posso tomar café, mas ele me ajuda a ficar ligado.

Abri a porta. Era ele (estou cuspindo muito sangue, acho que não vou conseguir mais me levantar). A princípio, não me esbocei nenhuma reação, tive tempo de apenas acompanhar o trajeto da bala que atingiu o meu baço. Caí no chão. Senti os braços dele me puxando. Eu estava com os olhos abertos quando ele algemou meu braço direito e minha perna esquerda na mesa.

Procurei me manter respirando, enquanto ele revirava os papéis. Eu sei, eu sei o que ele quer... Todos os textos que escrevi sobre ele. Faz tempo que ele ameaçava me apagar. Mandava eu desmentir tudo o que disse sobre ele, mas eu me mantive lá, firme, priorizando a nobre obrigação de informar a população. É mal dos escritores, morrem para não se submeterem à chantagem da bala (ai, a dor é muito forte, acho que a bala me perfurou mais fundo do que eu imaginava).

Denunciei, desbaratei! E não me arrependo de nada. Não sei como conseguir me livrar das algemas. O desgraçado não contava que eu também tivesse uma arma (será que ele já foi? ou está espreitando, vai espiar até ter a certeza de que eu morri).

Não, não. Ele ainda está aqui. Se arrastando, por conta do tiro que eu acertei no seu braço. Estou cada vez mais zonzo. Vou morrer. Estou morrendo. Em meio aos meus escritos, barbaramente assassinados por um bandido que odeia escritores. Dou um tiro que estraçalha a janela.

O barulho cambaleante dos passos dele pára de ecoar na minha cabeça. Ele se deu por satisfeito. Não deve ter encontrado os originais (estão bem guardados, numa gaveta trancafiada). Agora sim, eu posso morrer.

A noite está bonita... O brilho da lua contrasta com a escuridão do meu apartamento. É... para um escritor que não vale nada, até que não é um fim tão mau. De certa forma, condiz com as agonias e os desvarios que povoaram minha vida e escreveram meus textos.

Engraçado... Um escritor sempre narra sua própria morte no decorrer da sua obra. Eu só não contava que terminasse assassinado pelo meu próprio personagem. O sonho de um criador é morrer apunhalado por sua criatura! E eu tive esse privilégio. Agora tenho certeza de que, mesmo que me levem pra uma cova de indigentes, tive a companhia fiel da minha criação, a única pessoa que compactou com minha definhação, a única pessoa que justificou os meus delírios.

O brilho da lua foi ofuscado pelo cenário das trevas. Ou é uma nuvem ou... Ou definitivamente, acabou meu estado agônico.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Das flores de setembro

Separou uma, duas, três, uma dúzia de flores. Arranjou papel e caneta, e depois de alguns rascunhos, enfim conseguiu dizer exatamente o que gostaria de falar pra ela - bom, ao menos chegou perto, sabia que o coração dele estava tão apaixonado que não conseguia alcançar o manuscrito.

Olhou a folhinha do calendário, cantarolou aquela música que dizia que quando entrar setembro vem a boa nova. Suspirava entre sorrisos com aquele fim de mês, com aquela bela sensação de ter o coração invadido, daqueles traços de mulher que se desenharam sem pedir licença na sua alma de pretenso escritor. Para o sujeito que tinha começado o mês na companhia da solidão e das frustrações que tentava amenizar através de seus escritos, ele era outro.

Ela era a outra. A outra certeza de que o amor poderia existir, de que as desilusões não são necessariamente constantes na vida de uma pessoa. A conhecera pra se reconhecer. E ela estendara a mão dizendo "vem". Mesmo calejado por alguns sofrimentos, naquele setembro ele aceitara com um "sim" maiúsculo adentrar naquele jardim e conhecer cada flor que ela o apresentasse e o contasse enquanto o guiasse pela mão.

Lembrou-se de colocar um perfume, coisa que ele não tinha hábito de fazer - e ele achava inútil tentar se perfurmar, sabia que qualquer cheiro seria ofuscado por aquele frescor que vinha do hálito dela. Contou as flores, releu o cartão. Pegou o elevador, saiu de casa e seguiu rumo ao local do encontro.

Esperou-a um pouco, na sua mania de chegar mais cedo do que o combinado (ainda na tensão de saber se ela vinha ou não, ou se viesse não iria embora logo ao vê-lo assim tão comum, um mero apaixonado e pretenso autor). Mas, sim, ela veio.

Olhou diretamente em seu olhar, e quase se sentiu cego diante do fascínio de seus olhos claros. Riu quando percebeu que ela trazia nos lábios um sorriso. Ele se ajoelhou. Afagou as flores antes de colocá-las nas mãos dela. Sentiu que o buquê, o bilhete e até ele mesmo eram insignificantes diante de tanto que ela é.

Mas, pela primeira vez em sua vida, não quis se esconder, nem atrás das letras, nem nas paredes de sua casa. Não tinha receios. Estava lá, hipnotizado, diante da primavera que vinha na forma de musa, na imagem daquela mulher vinda das flores de setembro.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Anoitecer

O dia aos poucos foi escurecendo. Eu olhava aqueles últimos raios de sol indo embora, as luzes das ruas começando a ser acesos, um a um, para que os gatos pardos da noite não começassem a agir tão cedo diante dos sujeitos de bem que ainda trafegam pelas calçadas da cidade no chamado "horário comercial".

Meu coração anoitecia mais um pouco, acostumado com a escuridão na qual se tornava minha vida, noite após noite, naufragada naquela sensação de que nunca sou nem serei nada para qualquer pessoa, em qualquer cargo que queiram que eu ocupe. Pus as mãos no parapeito. Vi a lua começando timidamente a aparecer, hoje cheia, enchendo o azul (agora azul escuro) do mar de um tom esbranquiçado. Esbocei um sorriso, mas logo uma lágrima caiu no meu rosto, a lágrima de uma incerteza de não saber se aquele brilho podia ser para mim.

Eu permanecia entretido com aquela cena quando percebi um sopro nos meus cabelos, quase perto da minha orelha. Virei para trás, era você sorrindo. Um riso de moleca, de menina, da moça que acompanhava meu sonho e agora aparecia de verdade no meu anoitecer. Você se abraçava no meu peito, quase que se escondendo de todas as pessoas, lá, abraçada a mim, como se ver você fosse uma exclusividade minha.

"Olha..." - você apontou para cima. E, aos poucos, desenhou com suas falas, uma imagem fascinante que vivemos a dois. "Olha que imagem linda! A lua, escondida nas nuvens, iluminando essa construção velha". Voltei meu olhar para você, com certa curiosidade. Sem desfitar os olhos de mim, você comentou: "Daria uma pintura, né?".

Balancei a cabeça afirmativamente. Você levantou um pouco seu corpo frágil, se apoiando no meu pescoço, e me beijou. O brilho daquela lua parecia iluminar também minha alma, e eu, com os olhos fechados, tentava dialogar com sua alma. Inicialmente com ansiedade, mas aos poucos, eu me entregava diante da doçura que seus lábios me passavam. Eu era seu. Eu sou seu.

Abri os olhos. Você já me observava, com um sorriso sincero. Novamente me abraçou, dizendo que queria ouvir as batidas do meu coração. Aos poucos, foi se desvencilhando do meu abraço, sem baixar os olhos claros que me faziam brilhar ainda mais do que aquele luar que chegava no início da noite.

Estávamos um diante do outro, agora unidos apenas pelas pontas dos nossos dedos. Você disse: "É hora da gente se despedir, mocinho". Iam sair palavras de protesto da minha boca, quando você me interrompeu. "Agora você já tem uma musa pra te acompanhar nos seus insones suspiros da madrugada. Cuida de mim...".

Novamente se aproximou, e me ofertou um doce beijo. Não sei se foi ilusão auditiva, mas por um momento escutei um dedilhar de um piano enquanto nos beijávamos. Não importava, só tornava ainda mais especial tudo aquilo que eu sentia ao seu lado.

Quando o beijo acabou, ainda procurei mais um pouco a sua boca. Você pousou os dedos em meus lábios, e disse, serenamente. "Vai, meu gato pardo. Agora sou sua musa, sua cúmplice, sua companhia para o anoitecer".

Vi você virando as costas, e não saí de onde estava até vê-la se perdendo no horizonte. Eu anoitecia, leve, sabendo que ia me perder na madrugada, pra me encontrar no seu abraço.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Concerto

Ela dedilhou algumas notas no piano. Atento, eu acompanhava suas mãos, não pela leveza com a qual seus dedos repousavam nas teclas, sim para que eu olhasse qual era o caminho que sua delicadeza percorria durante aquela melodia que me fascinava. Estava na atenção e na tensão de prosseguir a música, os olhos com movimentos rápidos entre a partitura e o piano.

Ela seguia o curso da canção, mergulhada no seu apaixonado universo, regendo aquela história que estava me contando, naquela ordem determinada por um artista que revolucionara a música clássica séculos atrás. Meus dedos permaneciam imóveis, impotentes diante da falta de musicalidade que minhas mãos têm. Minha vocação sempre foi a prosa, e decididamente aquele não era o momento de distraí-la com uma prosa banal, amena. Seu rosto esboçou um sorriso, numa nota executada a tempo, sem desafinar. Nessa hora eu a vi menina, orgulhosa com seu feito profissional. Eu a quis com mais ternura, vontade de envolver suas mãos nas minhas e de dizer o quanto a adoro.

Ela ia, voltava, com a voracidade de quem corria atrás de um sonho. Eu permanecia lá, parado, sonhando com ela, querendo apoiar suas mãos, conduzi-las pelo caminho que a partitura ordenava. Por mais que a visse ansiosa com o final da música, mais eu ansiava por existirem outras notas, outros acordes, outras ações musicais para suas mãos. Na sua música eu repousava na certeza de que poderia estar perto dela, diante dela, olhando pra ela, sorrindo pra ela, dizendo tanta coisa pra ela.

Mas já não havia tempo. A canção acabava, ainda pude ver seu riso quando apresentou as últimas notas. Mal soltou as mãos do piano e notei, com lamento, que nós não estávamos sozinhos. Os aplausos e os gritos de “bravo” tiravam a privacidade do nosso concerto. Ela foi à frente do palco, agradeceu, e partiu rumo ao camarim. Deixando na platéia o aplauso apaixonado de quem por aqueles instantes ousou sonhar em ser a partitura que ela estivesse lendo. E pra, quem sabe, trazer através dela algumas notas de um grande amor capaz de viver na delicadeza de um piano.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Uma carta para um desconhecido

Hoje este Diário de um salafrário abre uma exceção muito especial. Este salafrário que vos escreve regularmente hoje cede espaço a uma artista muito sensível que de salafrária não tem rigorosamente nada.

Num dos posts anteriores, Juliana Flores colocou no comentário um texto de sua autoria, um poema muito bem escrito e com alta sensibilidade. Não seria justo que suas palavras ficassem apenas na seção de "Comentários" do blogue. Portanto, hoje esta pianista de Niterói escreve algumas boas linhas pro Diário de um salafrário.

Espero que seja do agrado de todos. E bem vinda, Juliana!


*****

UMA CARTA PARA UM DESCONHECIDO

Hoje acordo dos meus sonhos mais tristes que o passado apagou

Com tanta tristeza se fez minha dor

A dor de estar só,olhando,esperando,sem vontade de acordar

Digo bom dia, quando queria dizer boa noite

Digo boa noite perguntando vamos dormir?

Mas quando vejo estou só,numa cama, pensando no dia de amanhã

Sem poder te conhecer, desconhecido

E ao menos gostaria de saber de onde você vem?Por que demoras?

Vou vivendo por viver apenas esperando o dia de te conhecer.

Estranho, desconhecido.

domingo, 12 de outubro de 2008

Homem de papel

Tenho tudo na vida. Um teto bom, ajeitadinho e bem localizado para morar. Uma família que me apóia, com todos os meus deslizes e as minhas manias. Um sonho bonito, praticamente um ideal de vida que me fez sair do interior e partir pra cidade grande em busca de novos horizontes. Amo uma mulher que também me ama (sem pedir nada ou quase nada, como diz a música daquele cantor cubano).

A maioria de pessoas quando se refere a mim costuma me designar com elogios e com sorrisos. As pessoas sorriem pra mim, e eu invariavelmente gosto de sorrir para elas - sempre fui assim, um palhaço que acha que não deve chorar, pois tem medo de que o choro o obrigue a sair de cena e a ficar num canto esquecido.

Mal sabia eu que com o tempo ia estar na ânsia de que me esquecessem. Não. Eu não matei ninguém. Eu não dei nenhum golpe em milhões de brasileiros. Não descobriram uma conta bancária no exterior em meu nome.

Não passei por tristezas grandiloqüentes, capazes de fazer qualquer indivíduo surtar num piscar de olhos. O universo parece sim conspirar a meu favor, as coisas que faço geralmente recebem aplausos e comentários bem simpáticos ou tapinhas nas costas.

Então por quê? Alguém podia me explicar o motivo pelo qual estou aqui na calada da noite, no último andar do prédio onde eu moro, olhando para baixo, calculando quanto tempo dura daqui de cima até lá embaixo? “Você tem tudo na vida, menino, pra que ficar se lamuriando?”, falo para mim mesmo, alterando a voz, pra parecer uma figura patética, caquética, digna de deboche. Pra talvez assim eu ironizar esse momento de indecisão pelo qual eu tô passando agora.

Isso não é hora pra encontrar explicações! Quais justificativas podem ser maiores do que a ação que eu estou prestes a realizar? A quem uma pessoa que não acredita em nada precisa prestar contas depois de morto?

E vai ser aqui. Nos fundos do prédio mesmo. Os moradores já estão acostumados com os barulhos que acontecem nessa parte ingrata do prédio. No máximo o que vai acontecer é de uma pessoa gritar um “vamo parar com isso!”, e depois todos retornam suas atenções para o doce conforto de seus lares medíocres e de suas vidas medíocres.
Se bem que eu não sou ninguém pra falar de mediocridade. Um sujeito que sempre almejou ser valorizado, ser reconhecido. E agora permanece aqui, hesitante, distante de tudo o que aparentemente conquistou.

Bem... Acho que desde menino eu fui assim. Não aceito as limitações que tenho - limitações físicas, mentais e morais. Tudo o que consigo acho pouco, depois da conquista eu viro a página e já começo a ficar ansioso pra buscar a outra parte.

E aquele que era bicho do mato, o que não falava com ninguém, o que só sabia ficar num canto escondido com seus papéis e seu lápis e sua borracha se transformou num homem das letras. Ganhou concursos literários, ganhou uma vaga na faculdade, ganhou um bando de pessoas que acharam suas palavras interessantes, ganhou uma aceitação de uma editora, ganhou uma insônia bem acompanhada com seus personagens. Ganhou até um par de óculos.

E de repente me vejo aqui, oficialmente reconhecido por um grupo de pessoas que a opinião pública considera que suas opiniões valem mais do que as de outros. E me sento na ponta desse terraço descobrindo que tudo o que sonhei é ao mesmo tempo nada.

Palavras voam. Papéis ficam gastos. Livros perdem o valor e depois de um tempo são jogados em pilhas numa prateleira de um sebo. Minha namorada compreende o fato de eu ser um homem “casado com a literatura”. Mas não posso deixá-la na situação de “outra” diante desse vício tão prazeroso que persiste enquanto eu escrevo e que depois me faz tão mal quando jogo minhas idéias no lixo ao me deparar com páginas e páginas que são pura e simplesmente perda de tempo.

Preciso acabar logo com isso. Pra que tentar lembrar a todos que eu existo? Não sou nada além das minhas letras. E quando as letras não se encaixam e não formam frases coerentes e interessantes, não há motivo para que o autor delas resista. Alguns dizem que escrever “é dez por cento de inspiração e o restante de transpiração”. Cansei de transpirar somente com meus textos. É muito triste saber que sem eles não posso mais respirar.

É hora de respirar pela última vez. Respirar bem fundo, para ver se levo como recordação um pouco do cheiro de maresia que vem de mãos dadas com a brisa do mar. Ouço um carro, com medo do “pardal”, passando devagar na rua. Olho para cima e vejo a lua minguando, solitária, hoje sem estrelas. Olho para baixo, vejo poucas luzes acesas, e numa delas vejo a silhueta de uma mulher caindo devagar sobre o corpo de um homem.

Nada de clichês. Ninguém veio me socorrer com frases do tipo “não faz essa loucura”. Ainda não pus o pé sobre o parapeito, pois voltar atrás depois de tanto pensamento seria no mínimo lamentável.

Sou um homem escondido em meus livros. Em meus artigos. Em minhas crônicas. Em minhas resenhas. Mas não adianta procurar lá a justificativa do que eu vou fazer agora. Minha literatura é erótica demais pra acharem alguma tendência suicida.

Me aproximo do parapeito. Estendo os braços. Olho para frente. Penso na frase de Nelson Rodrigues: “Deus prefere os suicidas”. O homem de papel vai se desfazer na trajetória iniciada por seus pensamentos confusos que culminaram na sua ida rumo a um lixo nem um pouco glorioso para o autor.

E como um escritor que se preza, amanhã me tornarei apenas uma nota de jornal. Só um fato, descrito pela imprensa em um quarto de página e depois esquecido em meio às tragédias do dia-a-dia.

Sei que nenhuma letra vai me fazer desistir dessa idéia. Não vou tropeçar meu pensamento nas vírgulas. Nenhuma eventualidade vai me fazer ficar reticente. Senhoras e senhores, hoje vos apresento meu ponto final.

Antes do texto terminar, saibam que o último desejo deste livro aberto que encerra é ficar menos só no mar de letras que estou prestes a naufragar. Leiam as últimas linhas que ditarem sobre mim, eu compreendo que elas amanhã estejam obsoletas diante das novas notícias, e entendo também que o passar do tempo faça com que o fato fique amarelado.

Que a descida seja breve.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Amor próprio

Ele foi embora logo depois de me dar um beijo. Eu, ainda com hálito de sono, pedi: “Bate a porta quando sair, amor”, como eu fazia todas as vezes que acordava para vê-lo ir embora. A última imagem que vi antes de fechar os olhos foi ele saindo da porta do meu quarto, indiferente. Como ele sempre era, em especial nas manhãs de segunda.

Acordei às onze, com aquela sensação de enfado. Três anos e meio de namoro e sempre aquela rotina de ter o meu namorado apenas aos fins de semana. “Quero subir de valor na firma, meu bem. Faço isso por nós dois”, era o que ele me dizia todas as vezes que eu pedia um pouco mais de atenção.

O compromisso já trazia em mim sinais de cansaço. E dia após dia, surgia mais em mim a sensação de que ele me queria só como troféu para exibir aos colegas de trabalho – em especial ao chefe dele, um gordo, calvo e sempre com a camisa empapada de suor, que me comia com os olhos.

Lavei o rosto e ri ao pensar: “Será que ele tá comigo apenas para impressionar o chefe e eu garantir a ele um aumento de salário ou uma promoção considerável?”. Ter uma mulher gostosa por perto deve dar regalias aos homens.

O agrado a homens com namoradas, mulheres ou amantes gostosas ao menos dá a chance de vê-las sempre alegres quando se dirigem a você. Ainda mais se elas sabem que são gostosas. E eu sei que sou.

Eu me olhava no espelho, nua esperando a banheira esquentar. E me pensava mais bonita. Não é toda mulher que pode se orgulhar de ter pouco mais de um metro e setenta, esses olhos verdes que brilham ainda mais diante do sol. Passei a mão por meus seios, médios mas naturais com muito orgulho. Senti um arrepio ao me ver tocando e meu biquinho rosado endurecendo na ponta dos meus dedos. Ai... Nossa, há muito tempo eu não me sentia assim. E suspirei ao roçar de leve meus pelinhos eriçados, loiros como os meus cabelos. Meus lábios se molhando com a minha língua, saboreando cada parte desse desejo inusitado que eu tive por mim mesma. Sim, eu já tinha sido elogiada, cantada, provada, aproveitada, mas pela primeira vez eu tinha tempo para me ver e me valorizar.

Desejando e sendo desejada ao mesmo tempo. Com muita intensidade... E me vendo deliciosa. Jovem, bonita, um tesão de mulher. Delicadamente, me encaminhei para o meu banho. Mais quente do que a temperatura da água que me banhava por inteira. E era uma parte em especial do meu corpo que mais se deixava molhar.

Que se molhava através do meu toque, do meu sonho de carícias, que há alguns minutos, alguns dias, alguns meses, alguns anos (três anos e meio) me pareciam tão distantes. E eu gemia, ria de prazer, do prazer de saber o que eu quero, de me ver como mulher.

Olhava para mim, me sentia toda deliciosa com aquela água percorrendo o meu corpo e deixando minha pele cada vez mais molhada da quentura do suor e do meu desejo. Era a primeira vez em muito tempo que eu me sentia devidamente viva, vivenciando todos os meus prazeres, meus sonhos, meus desejos. Olhava para a minha imagem refletida no espelho e dizia, com jeitinho de puta: “te quero... eu quero você... hummm”.
Mais do que nunca sabendo o que eu queria – e também o que não queria. Pedia atenção, prazer, implorava por amor, por um amor pleno. E agora enfim havia o achado. Ele estava tão perto de mim, no alcance da minha vista, da carícia das minhas mãos, da sensibilidade dos meus seios, da doçura do meu sexo. Mas nunca a tinha notado.

Perdi a noção das horas. Perdi a noção de mim. Na sensação doce de que eu havia me encontrado de uma vez por todas. Saí, me enxuguei , agora “namorando” a maciez da toalha ao deslizar na maciez da minha pele. E comecei a concretizar minha vontade de absoluta de estar sozinha. De me respeitar no direito de ficar comigo mesma.

E é claro que eu devia fazer charme. Quem não faz? Escolhi meu vestido mais decotado, justo (mas que não chegava a dar a sensação de que estava apertado em mim). Depois, retirei da gaveta uma calcinha preta, de renda.

Passei um batom e fui para a porta. Prestes a passar a mão na maçaneta, tive uma idéia repentina. Subi o vestido e, com a ponta dos dedos, tirei a calcinha. Pronto. Eu me excitava ao pensar que, em breve, ia maltratar aquele que anulou minha vida por longos anos. Nenhum homem que se preze vai imaginar que a namorada se produziu toda apenas para terminar o namoro.

Desci o elevador ao lado de uma senhora, que, de rabo de olho, suspirava um ar de reprovação para mim. Devia me achar uma prostituta. Mal ela sabia que eu estava, na verdade, me livrando dos momentos que passei prostituindo meus sonhos, minhas vontades, meu amor próprio, tudo em função da carência, do medo de ficar sozinha.

O elevador desceu os seis andares até a garagem. Tive uma fugaz, mas confesso que bem saborosa situação quando o vento ameaçou levantar meu vestido, justo quando um vizinho estava vindo em minha direção. E se ele visse que eu estava sem calcinha? A iminência de estar solteira me acordava meu lado mais erótico. E essa redescoberta do meu erotismo me deixava mais louca.

Entrei no carro e parti, rumo à firma dele. Um misto de ódio, sadismo e alívio tomava conta de mim. Eu me olhava e me revia como mulher que sou, e como mulher que mereço ser cuidada.

Subi o elevador com um sujeito não tirando os olhos do meu decote, e empinei um pouco para ele notar que eu estava sem sutiã. Dei um sorriso vulgar e saí no andar onde ele trabalhava.

Passei por todas aquelas mesas, cheias de computadores e de pessoas bitoladas em fazer mais e mais rapidamente seu serviço, com apenas uma intenção: mostrar ao chefe o quanto são ágeis, dedicados e apaixonados por trabalho. E, portanto, merecem um aumento, uma promoção, um “brilhante, meu jovem” que seja.

Fui me encaminhando, fila de computadores por fila de computadores, até, enfim, achar o meu namorado. Ou melhor, meu ex-namorado. O meu algoz, o autor daquele crime, do crime de ter tornado a minha vida uma rotina, uma repetição.

Ele quase saltou da cadeira ao me ver. Vi seu susto ser, aos poucos, tomado por um ar de desejo – um desejo que eu podia ler em seus olhos.

Sentei no canto da mesa dele, de pernas cruzadas: “Temos uma coisa séria para conversar”, Descruzei minhas pernas e subi devagar meu vestido. Ele se espantou ao me surpreender sem calcinha.

Gaguejava, e seu rosto estava vermelho de vergonha, olhando para os lados, talvez se certificando de que só ele tinha me notado. Aproximou seu rosto do meu, e perguntou, pálido: “Agora?”

“ – Sim”. Passei o dedo por seu nariz e fui descendo, descendo por seu corpo, repetindo bem baixinho... “ – Agora, agora...”. Ele cada vez mais constrangido, já notando um ou outro colega de trabalho que ficava atento à nossa conversa.

Segurou minha mão. Num impulso, tentei conduzi-la até meus seios. Ele sempre foi muito previsível, eu já sabia a reação dele. E naquela segunda-feira, ele fez como o meu roteiro maquiavélico imaginava:

“ Chega! O que é que você está pensando, hein? Não tô à disposição do seu tesão o tempo todo. Eu estou em horário de trabalho”.

Levantei a voz.

“ O que é que VOCÊ está pensando de mim, seu... Que eu sou sua putinha de luxo, que você pode dar uma ou duas trepadas em troca de você estar do meu lado quando eu acordar? Não sou tão desesperada assim, meu corpo mostra que eu mereço coisa melhor”.

Ele me puxou pelo braço, e disse, entre dentes:

“As pessoas...”.

Continuei no mesmo tom de voz:

“ As pessoas devem estar pensando que vim aqui te seduzir. Não é isso, inclusive que você pensou de mim, seu cachorro?” – fui para o corredor. E eu me sentindo cada vez mais teatral – “A namorada do sujeito vem toda produzida, bem maquiada, com cabelos soltos...” – e fui chamando mais atenção – “Com uma roupinha bem justa... Sim! Para seduzir esse gatão” – dei uma mordida na orelha dele, que não sabia para onde olhar, ou onde se esconder.

“ E, com um detalhe, mas que não vou contar pra vocês”. – pausei. Olhei para aqueles homens e aquelas mulheres (quer dizer, não dava bem para distinguir, todos eles eram idênticos!), todos atônitos diante de mim. E decidi: “Não, não vou contar”.

Olhei para um rapaz que tinha lá seus 20 anos, e disse: “Vem cá”. Ele, ainda meio atônito, me obedeceu, e foi. E, sussurrando, confessei: “Tô sem calcinha”. Quase ri ao ver aquele cara com o tesão escondido em um monte de pastas que carregava. Acho que criei uma fantasia bem erótica na cabeça do garoto.

Foi o suficiente pra deixar o meu “namoradinho” furioso. Era hilária a expressão dele, o rosto fechado pela raiva. Mas minha crueldade passou dos limites. Fiz um gesto para que ele parasse, e disse:

“ Não precisa vir até aqui, meu amor. Não é segredo pra ninguém o que vim fazer no seu trabalho. Quero que todo mundo saiba” - respirei fundo, e disse, categórica: “Tá tudo terminado entre nós”.

Aquilo pegou de surpresa. E antes que ele dissesse qualquer palavra, prossegui:

“ E antes que você novamente pergunte. É agora. Agora sim. A partir de agora, nós não temos mais nada. Acabou. Acabou”.

O andar inteiro ficou em silêncio. Olhei as expressões dos colegas de trabalho dele. Um por um. As mulheres, algumas entendendo minha crueldade e escondendo o riso, outras, mais recatadas, mas deslumbradas ao ver aquilo tudo, poucas me recriminando com o olhar (e talvez me taxando como “vagabunda” ou coisa parecida) e uma gorda tentando fingir que não via, que nada estava acontecendo.

Os homens, os mais jovens, cochichavam, pude ouvir até um “por essa tesuda eu me humilhava até o fim”, e não sabiam se riam com a proximidade de debochar do colega de trabalho (um rapaz exemplar em todas as suas atividades, e ainda por cima com uma namorada gostosona – o que ele era até aquele minuto) ou com o jeito sensual e superior que eu tinha. Os mais velhos suavam, de nervoso ou de êxtase, e permaneciam com as faces intactas, perplexas.

Perplexo como ficou ele, até o momento em que virei as costas. Mal comecei a esperar o elevador e ele chegou. Ajoelhou-se diante de mim, gritando “não”. Sem olhar para ele, ouvi toda aquela ladainha – de que eu não podia deixá-lo sozinho, de que ele estava planejando nosso futuro, de que estava perto da chance dele...

“ – Arruma outra bonequinha pra você exibir como troféu, porque eu já enchi” – ele começou a beijar meus pés – “E pára. Ficar feito um cachorrinho pidão não vai me fazer mudar de opinião. Vai, volta pro seu trabalho. O seu futuro te espera! Eu é que decidi não te esperar”.

Ele se levantou, e notei que ia dizer alguma coisa para mim, mas prontamente o interrompi:

“ – O elevador chegou. Depois deixo suas coisas que ficaram lá em casa na portaria do seu prédio, viu?”.

Ainda pude ver a cara de amargura dele antes de a porta do elevador fechar. Eu até não me sentia tão culpada mesmo ao saber que tinha deixado um homem “arruinado”.
Antes da porta fechar, ainda pude ouvir alguns coros dissonantes da situação que eu acabara de proporcionar àquela firma. Ouvi algumas vozes femininas que diziam “mas que vagabunda”, “você não merecia isso”, outras masculinas que diziam “mulher é foda”, “isso é que dá dar liberdade”.

O elevador chegou ao térreo. Peguei o carro e voltei novamente para casa. Liguei o rádio e voltei cantarolando, sorridente. Como acho que nunca havia sido antes. Estacionei o carro e subi o elevador até o meu andar.

Não resisti a voltar a me olhar no espelho do elevador. Puxei um pouco a alça do vestido e fiquei me deliciando com o bico do meu seio.

Abri a porta de casa. Desliguei meu celular. Meu computador. O telefone fixo. Fui me despindo de pé, na frente do espelho grande do meu quarto. Fiquei nua, novamente só pra mim.

Comecei a fazer as carícias que mais me excitam, me olhando e me seduzindo no meu reflexo do espelho. Hummm... Mais do que solidão. Mais do que prazer solitário. A partir daquele instante, o sentimento que me dominava era o de que eu me sentia plena para viver meu amor próprio.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Insônia

Sonhou com ela de novo. Acordou desesperado, mas ao olhar pros lados já se lembrou que ela foi embora alguns dias atrás. Olhou o relógio que marcava três e pouco da manhã e lamentou que iria ficar novamente com insônia. Seus horários permaneciam confusos desde o tempo em que estava com ela. De início gostava de ter essa falta de sono, podia vê-la adormecida, suspirando de sono e de sonhos. Quando muito, dava um jeito de fazer com que ela se abraçasse ao seu pescoço, para ouvir seu ressonar mais de perto.

Agora a madrugada era um suplício. Com o silêncio dela, vinha a lembrança deixada na cabeceira. A flor num copo de geléia e o bilhete à sua frente. “É melhor eu ir embora. Não fica triste comigo”. Criou coragem pra sair da cama, não queria mais recordar aquela cena. Ela já tinha ido embora mesmo, não seria a lembrança da cena que alteraria o desfecho que ela escreveu para a situação.

Olhou pela janela. Viu a rua adormecida. Não tinha nada de relevante acontecendo. Lamentou o mal de estar sozinho na hora de trocar o dia pela noite: esse marasmo ao qual a rotina castiga a melhor parte do dia.

Olhou para dentro de casa. Viu os livros empilhados, alguns discos em cima da caixa de som, a televisão e o aparelho de DVD. Pensou em ver um filme ou ouvir uma música, mas se lembrou que estava sob o efeito da “lei do silêncio”, e nenhum dos vizinhos precisava compartilhar a sua solidão.

Ligou a lâmpada de cabeceira. Escreveu algumas palavras. Logo percebeu que estava escrevendo destinado a ela, e riscou tudo, pois não queria que a sua arte de autor fosse mera reprodutora dos casos que aconteciam em sua vida.

Foi até a cozinha. Encheu o copo de água. Bebeu calmamente. Olhou para a pia. Viu o espaço dos talheres. Pegou uma faca de pão e colocou na direção do seu pulso esquerdo. Tremeu um pouco, mas falou para si mesmo: “sim”. Estava prestes a se cortar definitivamente quando jogou a faca para o outro lado. Teve medo de morrer. Não por alguma covardia. No último segundo no limiar da vida com a morte, pensou que ninguém ia notar sua ausência.

Abriu a gaveta. Viu uma foto dela. Ela sorrindo, abraçada a uma árvore. Sua discriminação auditiva recordou o riso dela. Leve, suave, dizendo: “tira uma foto minha aqui, vai, amor”. E ela abriu o sorriso, com um ar de criança. Jogou a foto para um lado.

Veio outra foto. Dos dois. Ela com a máquina na mão. Os rostos lado a lado. Sorrisos. “A gente vai ficar com cara amassada”, ela advertia. A lembrança que vinha de leve no seu coração, como uma brisa passando por seus cabelos.

Deixou a foto cair no chão. Achou uma dos dois no Corcovado, ambos suados da caminhada que fizeram até chegar ao pé do Cristo Redentor. “Promessa” de agradecimento pelo primeiro ano de namoro comemorado naquele dia. Ela se lembrava que os dois selaram o primeiro beijo por volta das três da tarde, num encontro marcado uns dias depois de se conhecerem naquela festa. Os dois saíram de lá de baixo por volta da uma e meia da tarde num sol escaldante, às vezes amenizado pela grande quantidade de árvores do trajeto. Em algumas delas o casal parou pra se beijar. Um abraço bem doce, uns sussurros de amor no ouvido, beijos bem quentes e a vontade louca de esquecer o mundo pra que ficassem lado a lado, somente sentindo um ao outro, esquecendo os carros e as pessoas que caminhavam por lá. Mas a promessa era chegar pelo menos até as três lá em cima. As tentações deixadas de lado por um momento especial a dois. Promessa cumprida para os próximos anos se lembrarem. E os dois conseguiram chegar lá em cima, fascinados como dois turistas em lua-de-mel. A cidade ficava pequena diante do amor dos dois.

Afagou o rosto dela na fotografia, e chorou. Sofreu na certeza de que ela já fora embora, mas persistia nas suas noites de insônia. Ela se instalava, parecia uma companheira fiel e sedenta do seu sono. Das suas lembranças. Do seu remorso.

Achou indigno o que estava prestes a fazer, mas aquilo era um rito de passagem. Um dos passos mais decisivos pro sepultamento dela em seu coração. Foi até a cozinha. Pegou um palito de fósforo, jogou sobre as fotografias e as viu serem tragadas pelo fogo, lentamente.

Uma tristeza subiu por todo o sangue. E o pior de tudo é que ela posava de mulher misericordiosa que foi embora deixando apenas um bilhete de despedida para evitar que o namoradinho sofresse, ou para que visse o sujeito que ela dispensava chorando diante dos seus olhos. Ou, na verdade, poupando-se de qualquer possibilidade de ceder ou recomeçar.

Ligou o computador. Abriu mais um arquivo de fotos dela. Ela sorrindo, de calcinha e sutiã, na cama deles. Ela de costas, com o bumbum empinado e colocando o dedo na boca com ar de safada. Ela inteiramente nua, com as pernas abertas e os dedos próximos aos seus pêlos pubianos. Ela olhando pra câmera com a boca em seu pau. Ela com os seios de fora. O bumbum dela em close. Uma, duas, inúmeras, várias. O sabor da intimidade com ela ainda estava na sua boca, mais do que nunca ele lutava para tirar de vez o gosto dela, antes que o que sentia apodrecesse sua alma.

Só enterraria de uma vez o amor que ainda insistia em ficar no seu coração depois daquele passo. Do ódio. De não ter em hipótese alguma chance de voltarem a ser amigos. Aquele amor era muito belo pra um dia retroceder em uma amizade. Se era o fim, aquele relacionamento devia acabar por completo.

Colocou todas as fotos íntimas numa pasta especial. Fotos dela nua ou em todas as posições sexuais que a câmera havia flagrado dos dias de desejo que seus corpos sentiram. Não se preocupou em embaçar o rosto dela, aquilo ficaria mais sórdido ainda. Mandou o e-mail para o endereço de contato de uma conhecida página eletrônica pornográfica. Em breve, tarados de todo o mundo ficariam cúmplices da intimidade deles.

Desligou o computador. Bebeu um copo de água. E voltou a dormir, com a consciência plena de que não mais teria a companhia dela nas noites de insônia.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Suspiros da madrugada

E você dormia. No sono mais doce que o luar era capaz de irradiar sobre seu rosto calmo. Não... Por favor, não, não acorde! Não quero quebrar a magia desse contínuo amor que persisto em nutrir, embora eu reconheça sua alma inatingível.

Perdão por dialogar até altas horas com a maciez do seu repouso. Não desejo ferir os sonhos de adolescente contidos no seu sorriso, nos seus gestos, na sua face, que agora tem um instantâneo rubor alegre. Provavelmente vem de um fugaz sentimento de paixão subconsciente.

Sigo silenciosamente acompanhando cada minúcia do seu descanso, no receio de que minha presença ou minhas palavras acabem por mergulhar você nos mais profundos pesadelos. Seria doloroso demais para mim conhecer a realidade da impotência do meu delírio amoroso, revelados por meus parcos suspiros da madrugada.

Por um momento, penso em reter seus cabelos nas minhas mãos, talvez buscando desenlaçar qualquer vestígio desse amor platônico, extremo na sua devoção e hesitante em sua conduta. Mas prefiro que o sonho de lirismo dos loucos continue acalentando seus singelos devaneios, e perpetuem a sua doçura, sempre tão inocente.

Meu olhar desliza por todos os pormenores do seu rosto. Sei, sei que está próximo do seu despertar, por isso amo com mais intensidade cada seqüência dos seus sonhos. Na espera de que nunca mais a sua imagem venha a ser apagada da minha memória. E na insistência até que, um dia, eu possa, eu consiga adentrar na calmaria dos mares do seu amor...

sábado, 4 de outubro de 2008

Silêncio de um minuto

Criei um pouco de coragem para vê-la pela janela. Eu sabia que aqueles passos significavam os últimos dela na minha vida. Não, eu não me importava dela não olhar pra cima, talvez fosse melhor assim, eu não ia suportar um semblante de raiva ou de tristeza vindo do rosto que eu beijei, do rosto que eu amei por tanto tempo.

Atravessou a rua e seguiu, num caminho que minha vista já não a alcançaria mais. Logo meus pensamentos se dissiparam na chuva que começava a cair de uma nuvem negra, tão negra quanto a que começava a fazer parte da minha vida desde que ela foi embora.

Ela foi como todas as coisas que eu tive. Uma beleza, um lampejo de vida, que eu deixei morrer em meus braços, asfixiada por minhas próprias limitações, por meus defeitos, por meus deslizes. Uma vida inteira pela frente, jogada fora assim, impunemente, que eu passava a relembrar com todos os clichês de sujeito abandonado.

Minha vista ficou turva por uns instantes. Agora eu via a silhueta das pessoas ao longe, e em meio a elas aparecia ela a um palmo da minha frente, dizendo todas as ofensas possíveis e que eu, calado, resignado, ouvia de cabeça baixa. Tentei dizer qualquer coisa, mesmo a mais sincera das verdades - a de que eu não a mereço, nunca a mereci - mas as palavras se calaram.

Mal estar. Senti metade do meu corpo amparada pelo meu parapeito. Com dificuldade saí da janela e fui me amparar na cama, com cuidado pra não me sujar. Se bem que eu já estava sujo, com a alma apodrecida por mim mesmo.

Vi um corpo de mulher, adormecido. Rezei para que fosse ela, mas quando virei a moça, notei ser um rosto completamente diferente. Busquei seus lábios, mas eles estavam arroxeados, imóveis. Percebi sua nudez, parecia bela, apesar de tudo o que acontecera nos últimos instantes, mas não era a nudez que eu queria para mim.

Busquei apoio em sua mão, mas ela já estava estática. Fria. Com a mesma frieza que eu transmitira ao meu coração depois que a mulher que passara pela rua saiu assim, ao mesmo tempo tão calma e tão infeliz. Levantei com dificuldade, cambaleei do quarto até a sala.

Cada passo era uma dificuldade, alguns recomendariam que eu tivesse parado e descansado. Mas não. Fazia parte daquele ritual. Eu precisava daquilo. Daquele trajeto. Olhei para os discos revirados. Para os livros fora de lugar. Para os objetos quebrados tomando conta do piso da sala. Eu estava descalço, mas não fazia diferença receber aqueles cortes. Seria melhor, minha dor iria para lugares diferentes.

Apoiei os braços na parede e vi que a deixei manchada. Cheguei na cozinha, me segurando nas cadeiras e na mesa. Com as mãos trêmulas, abri a geladeira. Bebi o fim de uma latinha de cerveja. Última concessão de prazer para um momento inteiro de dor.

Procurei em meio aos produtos de limpeza e, enfim, achei o que queria. Fiz o caminho de volta. Repensando em toda minha vida. Na minha vida com ela. Nas realidades mais bonitas que tivemos. Na sensação da carícia das mãos dela arrepiando o meu corpo. No meu desejo se perdendo e se achando ao lado do desejo dela. Na voz dela, baixinho, sussurrando delícias amorosas no meu ouvido. No sabor de seus lábios quando encontravam os meus. Nas noites que passamos em claro. Nos dias que eu gostava de acordar antes dela, só para vê-la adormecida, sonhando, cansada do acalanto que tivemos durante uma noite de amor. Aquele silêncio doce, quebrado apenas nas vezes em que ela suspirava, dengosa de sono, amparada no meu ombro.

Ganhei a visão do quarto. O retrato de tudo o que eu tinha feito com nossa vida, com nossos sonhos, agora transformados nesse pensamento que eu levo comigo, cravado na minha retina. Imagens que na noite anterior me serviram como prazer, um prazer momentâneo que a sedução pode causar a fracos como eu. Mas que, no raiar do dia, se mostravam como realmente são - uma realidade podre.

O cheiro do sexo apodrecido. A nudez da garota que eu conheci não me lembro aonde e que eu desconhecia a identidade. O vermelho cor de sangue que insistia em sair do seio dela, mesmo com sua face já estática e adormecida para sempre. O vermelho que inundava o lençol e sangrava meu coração.

Ai! Enfim, comecei a doer não só no peito, não só naquela dor interna. Voltou a doer minha perna, a perna que ela fulminou por engano. O choro ou até mesmo a misericórdia que eu não mereci causaram o erro dela. Ou talvez ela quisesse que eu estivesse vivo para ver isso tudo. Ela fez o certo. Matou o objeto que despertou o desejo alheio, e me faz viver mais um pouco para refletir sobre o erro que cometi. Este erro letal para nossas vidas.

Se foi assim que ela desejou, que assim seja, meu amor. Já acendi uma vela para a moça. Ela não tem culpa pelo que eu fiz com a gente. Agora me deito ao lado dela. Com a faca, vou cortar um e depois o outro pulso. Sei que você não vai derramar mais lágrimas por mim. Mas ao menos me reserve o silêncio de um minuto.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Gatos pardos

É madrugada. Meu horário especial. É nela que eu suspiro meus sonhos, é nela que sou um gato pardo, miando minhas vontades, minhas certezas, minhas incertezas. Nesta parte do dia todos dormem, a noite também. E eu velo acordado, acordando meus sonhos, em busca de algum acaso que me faça deixar de lado o tédio do dia.

O porteiro já se acostumou, no máximo levanta os olhos e volta a dormir, pois já sabe que eu vou abrir o portão eletrônico sem a menor cerimônia. A companhia de luz ainda não consertou a luminosidade daquele poste. Melhor assim, não estou com vontade de ser visto com tanta clareza.

A cidade adormece, e assim fica melhor espiá-la em todos os seus detalhes, suas rugas de expressão ou de idade ou de acidentes de percurso. A madrugada não traz aquele calor infernal do sol de meio-dia. E aquele cheiro de maresia já me entorpece e gruda na minha pele trazendo o friozinho gostoso que minha solidão se apressou a mostrar pra mim desde sempre. Não nasci pra ser cuidado. Nasci pra cuidar de alguém. De cuidar dos outros. De cuidar da vida dos meus companheiros anônimos. Companheiros de madrugada, das ruas, do anoitecer, do silêncio notívago.

Vislumbro a praia. Nessa hora ela está com uma natureza mais condizente com a dela, pode ser vista com todos os seus detalhes e toda a carícia que ela faz à alma da cidade. Coitada, tão perdida em meio a aquela poluição do cotidiano, reduzida a mera figurante de uma paisagem tomada por ônibus, carros, transeuntes e camelôs.

“Oi, bem!”. Sou surpreendido por ela. Faço sinal de positivo com a cabeça. “Tá afim? Ai, ninguém quer foder de madrugada, tô ficando preocupada, sabia? Essa cidade tá com abstinência sexual”. A puta suspira no meu ombro, e depois mostra a bolsinha com alguns trocados e um estojo de maquiagem.

Digo que estou sem dinheiro. “Porra, tu nunca tem dinheiro? Pois devia! Sabia que nesse horário que tu anda por aqui tem muito bandido? Imagina se um deles te aborda e você não tem grana. Vai sobrar pra você...”. Ela abre a blusa. “Tô com tesão hoje. Chupa meus peitinhos, vai?”. Ela sorri pra mim. “São gostosos, né? É a parte do meu corpo que eu mais gosto, e que me deixa mais excitadinha”.

Meu rosto cai nos seios dela. Começo a lamber, primeiro um e depois o outro, sem o menor pudor das pessoas que possam nos ver. Ela começa a gemer devagarinho. A ponta da língua lambe minha orelha, suas mãos acariciam meu rosto. “Hummm... Você é gostoso! Chupa eles, vai...”. Sugo com vontade, eles cabem inteiros na minha boca. Vejo a mão dela descer pela saia pra ela se acariciar. “Olha, só não faço você entrar em mim porque não coloco pau nela de graça. Mas me chupa mais, faz carinho neles, faz... Hummm”.

Dou beijos na sua orelha. Minhas mãos afagam seus seios. Por um momento, sinto carinho de apaixonado por ela. E é bom sentir isso. Deslizo por sua barriga, suas costas, depois vou descendo por seu bumbum. Ela se acaricia com mais intensidade, ela olha para as poucas estrelas do céu. Alguns sussurros. Ela vai gemendo mais forte. Lambe meu rosto e diz: “Eu vou gozar”. Desço meu rosto novamente em seus seios, e chupo primeiro o da esquerda e depois o da direita, cheio de vontade. Ela dá alguns sobressaltos, um gemido mais forte, um grito e cai sobre mim.

Num primeiro instante, ela parece desmaiada, e eu aproveito para beijar seu rosto adormecido no meu ombro. A observo com carinho quase de pai. Somos duas solidões nesse mundo de loucos.

Ela se desvencilha do meu corpo. Fecha novamente a blusa e se levanta. Pega o estojinho, passa alguma coisa nas pálpebras e um pó no rosto. Ao colocar de novo o estojo na bolsa, percebe que esqueceu de passar o batom. Passa com minúcia. Seus movimentos são mais mecânicos, ela parece querer mostrar para mim que o que ela fez ou faz é uma coisa corriqueira.

“Querido, tenho de voltar lá. Sabe como é, não posso deixar de ganhar”. Balanço a cabeça afirmativamente, viro as costas para ela. Vou atravessar a rua, mas ouço a voz dela gritando “Espera”.

Viro para ela. Ela levanta a saia, deixando à mostra a calcinha minúscula e vermelha. Com as pontas dos dedos, a calcinha sai de seu corpo. Em uma fração de segundos, vejo seus pêlos pubianos de cor castanha. Ela estende a calcinha. “Toma”. Minha primeira reação é de espanto. “Presente meu. Gozei gostoso, quero que você lembre dessa noite. Não é qualquer um que me faz gozar só de me tocar”.

Pego a calcinha, a cheiro e dou um sorriso safado. Ela propõe: “Sempre que quiser, eu tô aqui. Dependendo de como foi a noite, qualquer dia eu dou pra você de graça. Não é caridade não, é por tesão mesmo”.

Nos olhamos em silêncio por alguns instantes que parecem eternidades. Ela suspira, em lamento. “Bom... então tchau, né?”. Meu olhar desvia para o relógio digital. São vinte pras quatro da manhã. Ela vira as costas para mim.

De noite todos os gatos são pardos. Mas de madrugada podemos agir de formas como não agiríamos em qualquer situação de dia-a-dia. A escuridão esconde sentimentos que em qualquer outro horário ficariam muito claros nas nossas almas.

A imagem da puta se perde no meu horizonte. Vou me encaminhando para outras ruas. Apresento a elas todos os sentimentos e sonhos que escondo. Sou um gato pardo, ao mesmo tempo protegido pela névoa da escuridão, e ao mesmo tempo gritando meus desejos à minha amante mais fiel: a madrugada.