Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Na farmácia

Esquete feita para ser apresentada no teatro O Tablado.

*****

Personagens
BALCONISTA 1
BALCONISTA 2
DONA GERTRUDES
ENFERMEIRA
GERENTE

A cena se passa numa farmácia. A Enfermeira entra em cena, dando apoio a uma senhora, que anda com dificuldade. O Balconista se prontifica.

BALCONISTA 1 (gentil) – Boa tarde. Em que posso ajudá-las?

DONA GERTRUDES (à Enfermeira) – Eu quero o meu mingau!

ENFERMEIRA – Shhh... Calma, dona Gertrudes. Estamos numa farmácia...

DONA GERTRUDES – Não interessa! Eu quero o meu mingau, copeiro. E com muita aveia!

ENFERMEIRA – Dona Gertrudes, ele não é copeiro. Ele é balconista da farmácia. (a ele, sem graça) Bem, o senhor desculpe...

BALCONISTA 1 – Correto... Eu compreendo. (tempo) O que a senhora deseja?

ENFERMEIRA – Bem, senhor... A minha paciente já está muito debilitada. Além das (vai apertando a dona Gertrudes, que geme a cada beliscão) dores no pescoço, no braço, na bacia, na barriga...

DONA GERTRUDES (interrompe, brusca) – Pára! Não precisa demonstrar as minhas dores pro moço...

ENFERMEIRA – Bem... O senhor vê o estado dela.

BALCONISTA 1 – Sim... Posso imaginar.

ENFERMEIRA – Pois bem... Além das dores, a dona Gertrudes tem narinas muito sensíveis e, por mais que se troque duas vezes por dia as fronhas do seu travesseiro, ela sempre passa o dia espirrando.

DONA GERTRUDES (protesta) – Isso não é verda... (espirra) Verdade (espirra) Eu tenho uma (espirra) saúde de (espirra) garota (espirra duas vezes).

ENFERMEIRA – Como você vê! (pausa) E o médico recomendou que ela use um travesseiro especial.

(Sugestão: ela pode seguir espirrando enquanto a Enfermeira fala)

BALCONISTA 1 – A senhora...

ENFERMEIRA (interrompe, se insinuando) – Senhorita.

BALCONISTA 1 (percebe e fica sem graça) – Senhorita... (tempo) Nós temos aqui um travesseiro sob medida para sua paciente. É o mais novo travesseiro anti-alérgico lançado no momento.

DONA GERTRUDES – O quê? (desesperada) Minha filha, vamos embora! Rápido, rápido!

ENFERMEIRA – O que houve, dona Gertrudes?

DONA GERTRUDES – Eu quero ir embora daqui! Esse homem é louco!

ENFERMEIRA – Acalme-se, dona Gertrudes...

BALCONISTA 1 – Algum problema?

ENFERMEIRA – Eu não sei...

Dona Gertrudes vai ficando ofegante.

ENFERMEIRA (revirando os bolsos) – Sua bombinha... Sua bombinha!

Dá a bombinha à dona Gertrudes, que se alivia.

DONA GERTRUDES – Aaaah... Já!

BALCONISTA 1 – A senhora está melhor?...

DONA GERTRUDES – Queria que eu morresse, né, seu assassino? (tenta partir para cima dele) Pensa que eu não percebi que existe um complô seu com esta garota! Vocês me matam e levam meu dinheiro!

ENFERMEIRA – Dona Gertrudes, pare com isso!

BALCONISTA 1 – Epa, sou um homem direito!

DONA GERTRUDES – Conheço muito bem seu tipo! Um homicida que se disfarça de farmacêutico só para atacar pessoas indefesas... Socorro! Estão tentando me matar! Socorro!

Balconista 2 entra em cena.

BALCONISTA 2 – Mas o que é que está acontecendo aqui?

DONA GERTRUDES – Oh, ainda bem! Uma menina que parece ter bom coração!

BALCONISTA 2 (ao Balconista 1) – Do que é que ela está falando?

BALCONISTA 1 – Eu sei lá!

DONA GERTRUDES – Confessa, seu assassino! Confessa! (à Balconista 2) Minha filha, este sujeito estava querendo me matar...

ENFERMEIRA – Dona Gertrudes, pare com isso!

DONA GERTRUDES – Pensa que eu não sei do plano diabólico de vocês?

ENFERMEIRA – Não tem plano nenhum, dona Gertrudes! (à Balconista 2) A senhorita não me leve a mal, mas ela está caducando...

BALCONISTA 2 – Alguém pode me explicar?

BALCONISTA 1 – Olha, foi o seguinte. Esta senhora...

ENFERMEIRA – Senhorita!

BALCONISTA 1 – Senhorita. Ela veio fazer um pedido e aí veio esta velha...

DONA GERTRUDES – Velha é a vovozinha!

BALCONISTA 2 – Tá, tá, deixa! (ao Balconista 1) Deixa que eu atendo ela...

BALCONISTA 1 – Mas, mas...

BALCONISTA 2 – Você é muito mal educado, só sabe assustar as pessoas!

BALCONISTA 1 – Pior você que ta querendo ganhar o cliente só pra ganhar o título de funcionária do mês!

DONA GERTRUDES – Ei, vem cá! Eu não tenho o dia inteiro!

ENFERMEIRA (repreendendo) – Dona Gertrudes!

DONA GERTRUDES – Mas eu quero o meu mingau!

ENFERMEIRA – Dona Gertrudes!

BALCONISTA 2 – Senhora, estou aqui para atendê-la...

BALCONISTA 1 – Ah, é assim, é?

DONA GERTRUDES – Vai embora, seu nazista!

BALCONISTA 1 – Olha aqui! Vocês tão ferindo a minha dignidade! Eu vou chamar o gerente... (sai)

BALCONISTA 2 – Bem, as senhoras desculpem. Espero que isto não se repita.

ENFERMEIRA – Posso fazer o pedido?

BALCONISTA 2 – Pois não.

DONA GERTRUDES – Lá vamos nós de novo...

ENFERMEIRA – A minha paciente já está muito debilitada. Além das (vai apertando a dona Gertrudes, que geme a cada beliscão) dores no pescoço, no braço, na bacia, na barriga...

DONA GERTRUDES (interrompe, brusca) – Pára! Eu já falei que não precisa demonstrar minhas dores pra elas!

BALCONISTA 2 – E a senhora tem a receita do remédio?

ENFERMEIRA – Mas não é remédio pra dor que eu vim comprar aqui. É que a dona Gertrudes tem narinas muito sensíveis e, mesmo sendo trocadas duas vezes por dia as fronhas do seu travesseiro, ela sempre passa o dia espirrando.

DONA GERTRUDES (protesta) – Eu já falei que (espirra) é mentira (espirra), eu tenho uma (espirra) saúde (espirra duas vezes) de ferro (espirra três vezes).

ENFERMEIRA – O médico recomendou que ela use um travesseiro especial.

(Sugestão: ela pode seguir espirrando enquanto a Enfermeira fala)

BALCONISTA 2 – Ah, claro! Meu Deus, uma coisa tão simples e o meu colega de trabalho fazendo este escândalo!

DONA GERTRUDES – Ele é um criminoso!

BALCONISTA 2 – Dona...

DONA GERTRUDES – Gertrudes, minha filha!

BALCONISTA 2 – Dona Gertrudes, cá entre nós... Ele está assim porque a nossa gerente está prestes a mandá-lo embora.

DONA GERTRUDES – Ah, sim? Bom, com razão, é um incompetente e criminoso!

BALCONISTA 2 – Certo, mas aqui eu tenho produto especial pra senhora, dona Gertrudes! Um travesseiro que é anti-alérgico!

DONA GERTRUDES – Oh! (faz menção de desmaiar)

ENFERMEIRA – Está se sentindo bem, dona Gertrudes?

BALCONISTA 2 – O que houve?

DONA GERTRUDES – Cínica! Você também é cúmplice!

BALCONISTA 2 – Eu não estou entendendo!

DONA GERTRUDES – Vocês são todos uns genocidas! Querem exterminar a minoria da população!

BALCONISTA 2 – Claro que não, dona Gertrudes...

ENFERMEIRA – Dona Gertrudes, isto não tem graça!

DONA GERTRUDES – Não tem graça porque o plano diabólico de vocês não está dando certo!

BALCONISTA 2 – Eu...

DONA GERTRUDES – Seus facínoras! Querem me derrubar! Mas eu sou esperta! Dura na queda!

BALCONISTA 2 – Mas o que é isso?

DONA GERTRUDES – E você, garotinha! Se faz de minha amiga, mas quer é preparar o meu caixão!

BALCONISTA 2 – Não, eu...

ENFERMEIRA – Não leve a mal, por favor!

DONA GERTRUDES – Não precisa justificar! Eu sei de tudo... Até tu, Brutus, filho meu?

BALCONISTA 2 – Eu não estou entendendo...

ENFERMEIRA – Acho que está na hora do seu remédio, dona Gertrudes!

DONA GERTRUDES – Fica longe de mim, sua... Sua criminosa! Sei muito bem que você colocou arsênico no meu remédio!

ENFERMEIRA – Dona Gertrudes... Assim, a senhora também me ofende!

DONA GERTRUDES – Em que mundo nós estamos? Jovens querendo matar uma velhinha indefesa!

ENFERMEIRA – Não, dona Gertrudes...

DONA GERTRUDES – É sim! E da pior forma!

BALCONISTA 2 – Ai, não estou me sentindo bem...

DONA GERTRUDES – Usando o pretexto de que eu sou alérgica! Assassinas! Genocidas! Suas, suas... paquidermes!

ENFERMEIRA (gagueja) – Do-do-dona Ger-tru... (desata a chorar)

BALCONISTA 2 – A senhora aceita um calmante?

ENFERMEIRA – Dois!

DONA GERTRUDES – Tomara que tome um calmante envenenado...

Entram o Balconista 1 e a Gerente.

BALCONISTA 1 – Foi ela! Foi essa velha nojenta que me chamou de bandido!

DONA GERTRUDES – Me respeita! Nojenta posso até ser, mas velha é a vovozinha!

A Enfermeira tenta disfarçar as lágrimas e esboça um sorriso insinuante pro Balconista 1.

GERENTE – Senhora... Desculpe a indelicadeza do meu funcionário...

DONA GERTRUDES – Se ele não for sumariamente despedido, não ponho mais os pés nesta espelunca!

GERENTE – Um momento, senhora... O que ele fez de errado?

DONA GERTRUDES – Meu filho... É que eu, além das minhas dores... eu tenho (espirra) muita (espirra) aler... (espirra) gia. E eu queria um (espirra) travesseiro (espirra) pra me (espirra) fazer (espirra três vezes) passar o dia bem.

GERENTE – Correto.

DONA GERTRUDES – E este (espirra) delinqüente (espirra) em vez de (espirra) me dar um (espirra) remédio (espirra) disse que ia colocar uma arma pra me matar.

GERENTE (ao Balconista) – É verdade isso?

DONA GERTRUDES – É sim! (ao Balconista) Confessa, seu nazista! Se você é homem, revele seus planos megalomaníacos para exterminar os alérgicos de todo mundo.

BALCONISTA 1 – Mas eu não fiz nada!

DONA GERTRUDES – Covarde! Só porque eu sou indefesa!

BALCONISTA 1 (quase chorando) – Eu sou inocente!

DONA GERTRUDES – Genocida de marca maior! Confesse, exterminador! Seu Schwarzenegger!

GERENTE – Por favor, a senhora se acalme... Eu mesmo trago a solução para seu problema.

DONA GERTRUDES – Ah, obrigada, filhinha. Deus lhe abençoe!

GERENTE (pega um travesseiro) – Aqui está o mais eficaz travesseiro ANTI-ALÉRGICO...

DONA GERTRUDES (se desespera) – Aaaah! Socorro! Eles são uma quadrilha! Querem me matar!

Dona Gertrudes sai correndo desesperada, pedindo socorro. Os quatro ficam sem entender nada.

PANO

terça-feira, 18 de novembro de 2008

No compasso

Mais um esquete, feito para amigos do teatro O Tablado.

*****

Personagens
MARLENE
SHEILA
CARLA
PAULA
FRED

Cenário
Sala de academia de dança. Palco nu, só uma cadeira no cenário, da qual Fred observa as atrizes.


As luzes se acendem. Fred já está em cena, sentado e virado para um dos lados do palco.

FRED (numa autoridade afeminada) – Meninas! Vamos, vamos, já é hora, é hora, a hora do ensaio!

As atrizes vão entrando, afobadas e atrapalhadas, de acordo com suas personalidades. Fred se levanta.

FRED – Rápido, meninas! Ó, o tempo tá passando! Isso, gente... Antes, um breve alongamento... (Fala os nomes e elas vão ficando a postos) Marlene, Sheila, Carla... Paula. Paulinha, sempre deslumbrante, adoro você, querida. (bate palmas) Agora, agora, cada uma arranja seu espaço pra gente fazer um alongamentozinho básico... Só pra aquecer, meninas!

MARLENE – Ah, não vai rolar uma musiquinha?

FRED – Claro que vai, Marlene... Na hora do ensaio. Afinal, boba, estamos num mu-si-cal (ri, debochado, e Paula ri). Bem, chega de papo! Relax, meninas, relax. (vai fazendo e falando e as atrizes, aos trancos e barrancos, vão seguindo) Braços ao longo do corpo! Inspira... Expira... Calmamente... Entra em contato com a sua respiração... Agora levanta os braços, espreguiça... Pra direita, pra esquerda... Bem relax... Isso! Agora que todinhas estão bem relax vamos recapitular a marcação deste número...

CARLA – Fred...

FRED (suspira) – Fala, minha filha...

CARLA – É... o que você achou do último ensaio?

FRED – Do último ensaio...

SHEILA – É, bicha. A gente tava um arraso, fala a verdade!

FRED – Sheilinha... É... Meninas... Posso ser sincera?

Elas, em coro, dizem SIM.

FRED – Uma merda. (as atrizes discutem. Carla se afasta, triste e quase chorando). Silêncio... Calma... Ei, ei, (grita, autoritário) olha a balbúrdia!

Todas se calam.

FRED (desconstruindo) – Ai, vou te contar, odeio ter que fazer esse gênero de macho!

PAULA – Olha, Fredinho tem razão... Vocês estavam uma merda...

As três voam em cima de Paula, mas ele se interpõe.

FRED – Gente... Em vez de vocês brigarem... Não SUPOOORTO briguinhas entre si... Vamos ensaiar?

PAULA – É a melhor coisa que a gente faz...

SHEILA – Enxerida!

MARLENE – Vai ser em playback?

FRED – A música é em playback, mas... Marlene... e as outras três... O que vale é o sentimento, a coreografia... Lembrem-se, quando estiverem em cena, deslumbrantes. A voz... É apenas um complemento do que o corpo sente. Meninas, dêem voz ao que vocês estão sentindo! Às suas marcas!

Elas se preparam. Cada uma se concentra à sua maneira.

FRED (berra) Val! The music!

Toca uma música brega. As atrizes dançam num ritmo coreografado. Fred intervém várias vezes no decorrer da música.

FRED – Sheila, desliza... Suave! Marlene, não perde a marcação! Paulinha, meu amor, não quebra na bacia! Carla, solta esse corpo! (Carla sai do compasso. Ele se irrita) Chega! Pára esta música!

PAULA (a Carla) – Sua burra, errou a coreografia!

MARLENE – Ai, eu não consigo acompanhar!

SHEILA – Fred, é... (demonstra) Norte, Sul, Norte, Leste, Oeste, Norte, Sul?

CARLA – Ué, mas eu achava que era (demonstra) Norte, Sul, Leste, Norte, Oeste, Sul...

FRED – Ai, eu não acredito! Além de atrizes elas são bússolas!

SHEILA – Bússola é a puta que o pariu!

PAULA – Quieta....

FRED – Ai... Meus sais!

PAULA – Fredinho... Quer que a gente dê um time?

FRED – Não... Eu já estou recuperado!

CARLA – Então como é?

FRED – Primeiro, em seus lugares...

Todas ficam nas suas marcas.

FRED – Agora, the music aí na técnica!

Solta a música.

FRED – Sorri e vai! (elas tentam repetir) Direita, para frente, um, dois. Dois para trás. Esquerda, vai! Um... Dois, rebola esse quadril! Um, dois! Não quebra na bacia! Mexe pra esquerda, mexe pra direita, rodopio... Em cento e oitenta. Mão na bundinha, direita, esquerda. Volta. Continua. (pára de dançar) Agora quero ver vocês. Dançando! Cantando! No compasso da música! Bota um sorriso nessa cara! O musical é leve. Descontraído. A platéia tem que querer dançar junta!

Fred levanta-se. Observa uma a uma, da direita para a esquerda. A música fica de fundo.

FRED – Sheila! Desentorta esta coluna! Menina, isso é um perigo pra uma escoliose!

SHEILA – Ai, isso é contagioso?

FRED (trincando o lábio)– Não... Relax e continua... (canta a música. Observa Paula) Paula. Olha só. (Paula observa) Bracinho lá pra frente, dobra e solta. Frente, dobra e solta.

PAULA – Ah, Fredinho, eu acho que direita, frente e solta fica muito melhor esteticamente.

FRED – Cala a boca! O coreógrafo desta porra sou eu!

PAULA (resmunga) – Ai, Fredinho...

FRED – Continua, você consegue... (observa Marlene) Marlene... Ritmo, ritmo, ritmo... Deixa seu corpo ser guiado pela música...

MARLENE (pára) – Ai, tô de saco cheio! Eu não sou bailarina! Eu sou cantora! E com muito talento. Fique sabendo que o diretor, em pessoa, me convidou pra essa peça!

FRED (debochado) – A-CRE-DI-TO... Seus dotes artísticos saltam aos olhos... E por pouco não saltam do top... (observa Carla) Não, não... Primeiro rebola, depois rebola com a mão na cintura...

CARLA – Mas é isso que eu tenho feito...

FRED – Não é. Você é uma negação.

CARLA (quase chorando) – Não sou não...

FRED – Tão leve quanto um pedregulho!

CARLA – Me respeita...

FRED – Minha filha. Me diz sinceramente... Você sabe ouvir?

CARLA (gaguejando) – Sei...

FRED – É, mas eu acho que não sabe! E como o coreógrafo aqui sou eu, minha palavra supera a sua! (berra) Parou! Parou! Parou!

Corta a música.

FRED – Parou... (às atrizes) Meninas, por favor, aqui.

Elas se sentam no chão. Fred fica sentado na cadeira.

FRED – Eu... enquanto eu via vocês ensaiando o número. Eu refleti muito sobre os passos, sobre como vocês estão lidando com os compassos que a música exige... Eu sei que a música é difícil...

SHEILA – Muito...

MARLENE – Impossível...

CARLA – Minuciosa...

PAULA – Pra mim é fácil! (sorri com desdém para as outras) Eu até queria sugerir, se você deixar, Fredinho, umas novas performances para a minha personagem. Eu acho que ela está muito apagada, os passos muito comuns com os delas...

FRED (cortando) – Chega, Paulinha... Eu... Eu adoro você, te acho muito dez! Mas, você e uma bolhinha fumegante da Companhia de Gás têm o mesmo peso em cena.

As outras caem na gargalhada.


FRED – E é pra não ter que lidar com essas bolhinhas que eu decidi... Decidi dispensar vocês...

PAULA – É... Até que esse número é trabalhoso, mas os outros...

FRED – Dispensar vocês da peça!

Todas se espantam, saem várias perguntas.

FRED – Eu não sei mentir! Vocês são muito ruins! Muito ruins!

SHEILA – E a gente, como é que fica?

CARLA – Eu tô contando com esse dinheiro!

MARLENE – Faz o seguinte, me coloca só como cantora que eu dou conta!

PAULA – Você tem outros planos, né, Fredinho?

FRED – O número acabou! A peça não vai ter mais o número das quatro vedetes loucas para amar.

Todas perguntam NÃO?

SHEILA – Peraí, bicha, quem decide isso não é você. É o diretor!

FRED – Não seja por isso, amiga... (saca o celular) Alô. Ricky. É o Fred, paixão. Olha, me deu uma luz, resolvi mudar tudo. Tira a cena das “quatro vedetes loucas pra amar”, o babado é o número da “bicha loira livre”. O que acha? Tenho carta branca? Obrigado, Ricky, és um doce. (desliga o celular. Fala para elas) Pronto. Vocês estão COR-TA-DAS.

CARLA – E agora?

FRED – Agora, fiquem aí, e vejam o meu número. Vejam o que é incorporar a música. (grita) Técnica! Aquela! Solta the music!

Sobe I want to be free, interpretada por Freddy Mercury. Fred faz performances caricatas conforme a música. As atrizes só assistem, enquanto as luzes se apagam.

PANO

© Copyright. Vinícius Faustini, 2005. Todos os direitos reservados.

sábado, 15 de novembro de 2008

Dignidade

Nova reverência a Nelson Rodrigues - citando nomes de personagens de suas peças e de seus contos, e usando uma doença que ele usou em algumas de suas histórias. Texto também publicado no zine O Onanista Pós-Moderno.

*****
Osvaldo decidiu sair mais cedo do expediente naquela Segunda- feira. Estava cansado do seu trabalho em uma das muitas repartições públicas existentes no país. “ – Não, depois de Domingo ninguém vem reclamar de patrão, fazer denúncia ou o diabo. Estão todos entorpecidos pela feijoada, pelo futebol e pelo zoológico.”- pensava, rindo, debochando dos humildes que apareciam durante a semana em seu local de trabalho.

Colocou seu paletó, que serviu como escudo para encobrir a camisa ridícula listrada e empapada pelo suor azedo, e seguiu pelo corredor.

Terminou de arrumar sua mesa, seguiu o rumo do elevador (a repartição ficava num prédio velho do Centro, no 12o andar). Quando estava prestes a sair, ouviu uma voz: “ – Seu Osvaldo?” Ficou estático, com aquele ar de “lá se vai o meu fim de tarde”. Ficou na dúvida se atendia ou se não atendia a voz. “ – Seu Osvaldo?”- foi chamado de novo. Com ar de lamentação, virou-se.

Era dona Flávia, sua secretária. “ – O senhor já vai?” A dona Flávia devia ter seus quase 30 anos, mas era estritamente cadavérica. “ – O rosto dela parece um joelho!”- palavras de um colega de repartição de Osvaldo, um sujeito alto, com barriga e barba por fazer, que completava: “ – mas apesar disso, é digna de um estupro...”

“ – Preciso muito falar com o senhor...”- suplicava a moça. Osvaldo, meio a contragosto, concordou em atendê-la. Foram até a sala dele, que mandou a secretária sentar-se.

“ – Pois não?”- disse com sua inconfundível voz de araponga rouca.

“ – Seu Osvaldo, eu queria te pedir um favor... um favor assim, de pai pra filha...”- dizia a moça, constrangida.

“ – Se estiver ao meu alcance...”- respondeu o homem, não parando de olhar a magreza da mulher, que tinha os olhos esbugalhados e o nariz pontudo, ainda mais realçados pelo rosto fino e feio, com a boca cheia de dentes tortos, o corpo parecendo uma tábua (mal tinha seios...) e as pernas muito finas.

“ – Eu... eu... seu Osvaldo, eu queria pedir licença uns dias. Sabe por quê? É o meu noivo... sim, o meu noivo, ele tá com aquela doença...”

Não compreendeu e perguntou: “ – Aquela doença? Do que a senhora está falando, dona Flávia?”

Ela só sabia gemer baixinho: “ – Aquela... aquela...”

O homem pulou da cadeira, com raiva: “ – Ora, dona Flávia, francamente, a senhora está muito insolente! Eu estava aqui, pronto para ir embora, para aproveitar o resto da tarde com a minha esposa... sim, porque eu tenho esposa. Esposa, filhos... sou pai de família, prezo a dignidade das pessoas. Não sou como os outros que trabalham aqui, um bando de desocupados que querem discutir sobre a vida dos outros e rir da desgraça alheia. Escute, eu sou uma pessoa séria! Não admito que num começo de semana uma subordinada venha me interromper por conta de seus problemas particulares. Onde já se viu, uma pessoa que quer trazer assuntos pessoais para dentro de seu local de trabalho? Realmente, eu não esperava uma atitude dessas por parte da senhora!”

Ela ficou atônita, olhando para o patrão (ou colega, em repartição pública todos são colegas, todos são patrões...). Não sabia qual deveria ser sua reação. De repente, uma lágrima escorreu por seu rosto, junto com aquela vontade louca de chorar convulsivamente.

Osvaldo, a princípio, não esboçou nenhum movimento perante o choro de dona Flávia. Apenas contemplava a visão da moça chorando, com um misto de pena e nojo: “ – Quando ela chora, a face de defunta fica mais realçada... é praticamente uma aberração da Natureza...”- tirou um lenço do bolso esquerdo do paletó e entregou à moça para que ela enxugasse as lágrimas. Perguntou, como se fosse um tiro: “ – Qual é a doença do seu noivo?”

Flávia, já mais calma, soltou o nome da enfermidade do noivo como se tivesse cuspido uma comida estragada: “ – Lepra!”

Aquela palavra tomou de surpresa o Osvaldo, soava como se uma rajada de metralhadora estivesse perfurando o seu peito... esperava qualquer doença, menos a lepra... lepra... lepra... a palavra martelava em sua cabeça... lepra... seu pai havia morrido com a mesma doença... lepra... sua esposa parecia ter sintomas da mesma doença... lepra... olhava para a feiúra da secretária e vinha a imagem dela cuspindo o nome... lepra...

A secretária completou: “ – É uma doença muito triste... ele tá nos últimos dias, se definhando...”- chorou- “ – já não tem mais dedos em nenhuma das duas mãos...”- e explicou- “ – eu quis contar porque eu sei que o senhor é um homem correto, digno, puro, se eu fosse falar com algum outro da repartição eu ia virar piada... mas o senhor é diferente, não é, seu Osvaldo?”

Ele mal conseguia ouví-la, em meio aos ecos ensurdecedores que insistiam em repetir a nojenta palavra lepra... Olhou-a no fundo dos olhos... lepra estavam estampados neles... súbito passou a olhá-la de uma forma estranha. Fez a proposta:

“ – Olha, podemos fazer o seguinte... amanhã, às duas da tarde, eu pego meu carro e nós vamos ver o seu noivo... ele já foi a algum médico?”

“ – Já. O médico não deu muito tempo de vida para ele...”

“ – Pois bem. A senhora me leva até o seu noivo e nós vemos o que podemos fazer por ele, correto?”

Ela balançou a cabeça positivamente e mostrou o sorriso de dentes tortos e muito amarelados e foi para sua mesa. Osvaldo, enfim, pôde sair. Foi até sua casa atordoado... novamente a palavra lepra rondava seu pensamento... “ – Será que sou um predestinado? Só pode ser praga a minha vida estar cercada de leprosos por todos os lados...”- não conseguia dormir. Se debatia na cama, desesperado: “ – Sou eu... o próximo leproso sou eu...”- lembrava-se da figura do pai no leito de morte- “ ... ela me persegue... vai me definhar...”

Foi trabalhar no outro dia. Escutava as reclamações dos empregados sem se importar muito com o que aqueles desgraçados com a vida estavam dizendo... estava ansioso, afinal, em horas estaria frente a frente com um leproso... tentava desenhar o rapaz... sem dedos nas duas mãos...

Dona Flávia o chamou. Os dois foram até o local. A secretária mostrou o noivo... estava lá a imagem, a triste imagem do leproso... sem dedos... podre... fétido... enfaixado e ensangüentado na cama... se contorcia... se corroía... se definhava... Osvaldo olhava atentamente todos os movimentos do moço... lembrava-se da esposa... do pai...

Súbito, virou-se para Flávia, que possuía um ar de desespero ao contemplar o noivo leproso... Osvaldo olhou a secretária... olhou o noivo, gemendo na cama... deu um tapa na face da moça, que em sua feiúra se afogava em lágrimas... tomou-a pelos braços e jogou-a na cama, ao lado do rapaz...

Ele estava fora de si... arrancou rapidamente as roupas da secretária e a estuprou... na cama... na mesma cama em que estava o leproso... o rosto de Osvaldo demonstrava uma satisfação imensa... absurda... doentia... enquanto estuprava dona Flávia as vozes se confundiam em sua cabeça: “ – Lepra... digna de um estupro... lepra... digna de um estupro...”- sentia uma euforia tomando conta do seu ser... e ela estava imóvel... aceitava passivamente o seu leproso e o seu estuprador na mesma cama...

Depois do ato, a euforia de Osvaldo cedeu espaço ao arrependimento. Olhava para a secretária, magra e nua, deitada ao lado do rapaz, um leproso sem dedos. Tinha asco dele mesmo. Olhou-se no espelho, e enquanto dilacerava sua garganta com um canivete, dizia, com ar de deboche e ódio visceral ao mesmo tempo: “ – Vê aonde o seu moralismo asqueroso foi parar? O senhor não é um homem... não é um pai de família... não é um marido exemplar... nesse momento você abandonou os seus princípios... a partir de agora, você não passa de um desgraçado... mais um ser desprezível... incapaz de encontrar em seus rostos um vestígio do que seja a palavra dignidade... Não há como fugir... a sua lepra já está exposta... impregnada em todas as suas atitudes... E seu castigo será se corroer, se definhar perante todos, exibindo com ares de satisfação a sua alegria sórdida de estar condenado a ser mais um leproso...”

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

A plenitude da alma

Conto publicado originalmente no zine O Onanista Pós-Moderno. Mais um com influência na literatura "rodrigueana".

Como sempre costumava fazer nos fins de tarde, Edgar entrou no cemitério em busca de um enterro. Sabe-se lá por qual razão, o rapaz adorava o ritual de freqüentar cemitérios para assistir ao ‘sepultamento alheio’, como dizia, em tom de deboche, o seu colega de trabalho, Mascarenhas, um quarentão viúvo, gordo e que suava nas mãos.

Apesar de saber que era rotulado de doido, Edgar insistia em afirmar, com a soberania de um profeta, a felicidade que sentia ao acompanhar um enterro: “ – A pessoa vive, sorri, chora, e no seu último suspiro é, enfim, homenageada com um cortejo... reparem, amigos, nada comove tanto quanto um cortejo fúnebre, seja o morto um indigente ou um homem famoso... no dia em que acabarem os cortejos, o mundo apodrecerá na insensibilidade dos cadáveres que foram privados da pureza existente num enterro digno...”

Perambulou pelo cemitério até que encostou numa árvore para olhar um enterro... o defunto, um velho de 75 anos chamado Onório Palhares, esperava apenas o término do discurso declamado por Doutor Quintanilha, um advogado amigo seu (o leitor repare a aceitação do óbvio: todo defunto possui um amigo advogado...), que numa cólera incontida, declamava: “ – Onório foi um homem como poucos! Bom pai, bom marido, bom profissional, bom colega... honestidade e fidelidade foram suas principais virtudes, que ninguém jamais ousou contestar!”- e batendo no peito, tomado pela emoção, encerrou: “ – tenho orgulho de dizer que o Palhares... meu amigo... nunca teve amantes! Nunca teve amantes!”

Observando o discurso enquanto aproximava-se para seguir o cortejo, Edgar ficou emocionado com as palavras do advogado. Achava que o discurso à beira do caixão possuía um caráter sincero, terno, com o orador reunindo forças para prestar as últimas homenagens ao defunto, que muitas vezes tinha seu valor reconhecido no momento em que repousava em seu túmulo...

Após as honras e a solidariedade (diria Otto Lara Resende: “ o mineiro só é solidário no câncer”...), o caixão foi fechado e seguiu pelo cemitério... agora sim, o corpo estaria apto a descansar em paz, com seus pecados sendo perdoados e sua alma sendo purificada para ocupar uma cova recém- aberta.

Aquele parecia ser mais um enterro banal (mas com o gosto especial dos enterros, que sempre têm os amigos fervorosos, a viúva suplicante e desamparada e aqueles cachaceiros que contam piadas de papagaio...), se não fosse por aquela moça que, estando ao lado do padre durante o velório e o cortejo insistia em chorar... Não, não era a viúva, certamente... era da mesma idade que ele... seria mais uma espectadora dos enterros alheios que Edgar costumava acompanhar, mas essa era diferente, instigava o rapaz...

Era uma moça bonita, de rosto pálido, a boca com um brilhante tom rosado, loira, e estava de vestido preto com um decote convidativo e escancarado, que realçava ainda mais a perfeição do formato dos seios, transmitindo um paradoxo sedutor entre o lado sombrio do finado e a leveza provocada por aqueles seios arfantes e retocados quase expostos pelo decote... Aquela mulher deixou Edgar maravilhado: “ – Ela é o símbolo da magia que a morbidez prolifera nas pessoas... ao mesmo tempo em que choram, provocam desejos graças a um escultural par de seios e um belo decote... Todos deveriam parar o cortejo para lamber com os olhos esses seios... fartos... arfantes... enigmáticos... donos de uma pureza mórbida descomunal... nada mais mórbido que um par de seios de luto...”- pensava, ao fixar os olhos na jovem.

O corpo de Onório Palhares, apesar do desespero da viúva, que insistia em estar ao lado do marido, foi enterrado. Após o término da cerimônia, Edgar aproximou-se da jovem, e vendo as lágrimas que caíam de seu rosto, estendeu um lenço usando a tradicional frase: “ – Meus sentimentos...”

Ela agradeceu, enxugando as lágrimas, e disse ao desconhecido: “ – Eu... eu era a secretária dele...”- e desatou a chorar, sendo amparada pelo ombro de Edgar, que se excitava a cada vez que a face da jovem ganhava requintes de desespero... como ele se instigava com aquele misticismo que envolvia o luto...

Levou-a até um bar (ou, diga-se de passagem, um boteco...) onde conversaram durante horas... Edgar tentava, mas não conseguia fazer com que seus olhos deixassem de observar aquele par de seios rígidos que só não estavam com os bicos totalmente à mostra (ah, que obra de arte seriam aqueles seios nus com os bicos excitados... suspirava baixinho o rapaz)... A certa altura, tomado pelo êxtase da volúpia fúnebre propiciada pela sua morbidez, o rapaz perguntou a Clarice (esse era o nome dela):
“ – Você... dormiria com alguém para salvar a alma de alguma pessoa próxima... parente, amigo ou colega?”

Silêncio... ele completou: “ – Escute, Clarice... eu sei que você está sofrendo com a perda irreparável de seu patrão, e essa dor é intensa e nos persegue a cada instante... Olha, essa agonia pode ser dissipada pelo desejo...”- parou, enxugou as lágrimas que voltavam a cair do olho de Clarice e, pousando sua mão sobre as mãos dela, explicou: “ – o sexo, ao contrário do que os padres e os falsos puros pensam, ao se mesclarem com a nossa morbidez... sim, porque ser mórbido é uma virtude... servem para a salvação da alma... no sexo, as pessoas expulsam todos os seus sentimentos enterrados pelo receio e hipocrisia... isso ajuda os cadáveres a terem a plenitude da alma... nós devemos realizar as perversões que eles almejaram durante suas vidas... você gostava muito do seu patrão, não é?”- após a afirmativa com a cabeça dada pela moça, continuou: “ – então? Satisfaça as perversões que o doutor Palhares não pôde fazer em vida... entregue-se à fria cama por ele...”

Clarice, hipnotizada pela veracidade que Edgar aplicava às suas idéias, concordou em ir até o apartamento dele. Ao se despir, os seios da jovem adquiriam um novo realce... eles eram o instrumento da pureza de uma alma... ao entregar-se a Edgar, mesmo sendo virgem, continuou sentindo-se a mais pura das mulheres... a euforia que o sexo transmitia a ela possuía uma certa dose de generosidade... assim como o rapaz, estava a cada momento mais orgulhosa de sua morbidez... “ a purificação dos mortos...”- repetia, triunfante, enquanto cravava suas unhas nas costas de Edgar, sedenta pela doce sensação do pecado concedido...

No fim do ato, Edgar esperou Clarice dormir, levantou-se e sentiu o sabor da plenitude de sua alma... tinha praticado uma boa ação ao possuir a secretária do recém- defunto... contemplava a nudez de Clarice, vangloriando-se da pureza dos seios arfantes e nus, que havia possuído graças à sua eterna companheira, a morbidez...

Súbito, começou a sentir um cheiro de cravo- de- defunto... a cada momento o cheiro tomava o ambiente, e Edgar respirava aquele perfume alegremente, com uma confusa rajada de idéias: “ – A plenitude da alma... satisfazer as perversões deixadas pelos mortos...”- começou a cuspir sangue, a cada momento se tornava mais agonizante. Mas isso só o satisfazia, e o fazia dizer com orgulho, o orgulho de um salvador: “ – Agora posso morrer em paz... sim... porque todos seguirão o meu cortejo... minha alma está para sempre purificada... porque eu encontrei a minha salvação... morro sabendo que minhas perversões se concretizarão... porque eu sei que a morbidez será imortal... e conquistarei a minha plenitude graças aos mórbidos que estarão presentes no meu velório, acompanharão meu cortejo e assistirão ao meu enterro... é por eles que estamos salvos da insensibilidade e sordidez humana...”

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Laços matrimoniais

Texto antigo, um dos muitos feitos em reverência à A vida como ela é... que Nelson Rodrigues nos presenteou.

*****

O doutor Abelardo Ferreira, nomeado advogado, era conhecido em seu ambiente de trabalho por sua discrição. “ – É um santo!”- dizia o colega de trabalho, Luiz Madureira, um advogado famoso por ser um bom chave- de- cadeia. Mas ninguém podia citar nenhum argumento que pudesse incriminar o dr. Abelardo, principalmente por ele ser um homem honrado, ético, com um casamento sólido, e amplamente dedicado à filha, Adriana.

Adriana, morena de uns 23 anos, era aquela moça perfeita, que vira a cabeça de todos os homens (principalmente dos tarados de plantão e dos escritores de contos que abusam da descrição feminina) e, como nas pinturas, desde as mais detalhistas até as surreais, transmitia o brilho e a nitidez de sua beleza... Seus olhos, mágicos, enigmáticos... ah, quem não gostaria de enxergar a alma escondida naquele olhar... o rosto lindo, de traços bem desenhados... a boca portadora de beijos apaixonantes... mas a parte que mais expunha a beleza contraditória da moça eram as pernas... como poderia aquela mesma menina de finos traços possuir aquele suculento par de pernas... todos paravam para assistir a imagem de Adriana cruzando as pernas... era um evento belíssimo, inigualável... muitos filósofos de boteco defendem a tese de que não há nada mais alucinante do que ver uma mulher cruzando as pernas...

Talvez a cruzada de pernas de Adriana tivesse conquistado o seu noivo, Maurício. Ela o havia conhecido em uma festa de um amigo dele, tendo ocorrido entre os dois aquela velha e batida atração denominada ‘amor à primeira vista’ (ou, quem sabe, ‘amor à primeira cruzada de pernas’), e após mais alguns encontros, Maurício e Adriana começaram a namorar, ficando noivos sete meses depois.

A princípio, o doutor Abelardo estava numa alegria imensa, já que sua filha única, em breve, estaria casada e bem encaminhada na vida. “ – Não há relação mais sólida do que um casamento... ele é mais importante do que o amor, em si, porque amores vão e vêm, enquanto o afeto e o companheirismo se sobrepõe a todas as chuvas de verão...”- dizia, de forma apoteótica, o pai da noiva, a todos os colegas de escritório. E completava: “ – O matrimônio é a maior bênção enviada para nós...”- e dava um sorriso de satisfação, em meio ao deboche do doutor Madureira, que o achava um perfeito imbecil. “ – Diz isso mas duvido que nunca tenha traído a mulher...”- imaginava Luiz.

Abelardo, realmente, nunca tinha traído a mulher, sequer em pensamento... considerava sua esposa, a dona Laura, uma verdadeira santa, por isso, não merecia ser traída... mas tudo mudou depois daquela noite...

Certa noite, ele acordou no meio da madrugada com uma sensação de vazio... passava em sua mente a imagem de sua filha entrando amparada pelo seu braço na Igreja... ela estava radiante, com o brilho de seus olhos ofuscando o véu e a grinalda... “ – Entrego a minha filha...”- a frase repetia em seu pensamento... estava entregando a filha... sentia uma sensação dolorosa de perda, realçada ainda mais na semana antecedente à cerimônia... a filha entregue a um homem... a pureza tão doce de Adriana se sucumbiria à agressividade da noite de núpcias... “ – Todas se casam virgens... os maridos as corrompem...”

Não conseguia mais se distrair... só pensava na filha... os sentimentos se confundiam quando se lembrava dela... não agüentava mais...

Dois dias antes do casamento, esperou Adriana se preparar para descansar e foi até o quarto dela. Bateu na porta e entrou... Ela estava deitada na cama... a camisola, pequena, deixava um pouco da calcinha exposta... as pernas nuas pareciam um convite ao prazer... o sorriso de noiva cativava, e ao mesmo tempo feria a alma do pai...

Ele aproximou-se suplicante: “ – Filha... eu tenho uma coisa pra te dizer... é uma coisa da maior importância...”

Adriana interrompeu-o: “ – Viu o presente que eu ganhei de casamento? Essa camisola... uma amiga de mamãe disse que é excelente para seduzir o marido na noite de núpcias... e você, papai, o que acha?”

Parou. Olhou a camisola. Desviou o rosto daquela imagem convidativa... respirou fundo, sentou-se na cama e tentou iniciar:

“ – Adriana, eu... eu não quero o seu casamento...”

Surpresa, a moça interrompeu: “ – Ora, papai, que bobagem! Você está com medo, é natural... sou filha única... mas te juro: eu amo o Maurício... mais do que tudo!”

Gritou, com ojeriza: “ – Não!”

“ – Aconteceu alguma coisa, pai?”

Abelardo recompôs-se, e expôs todo o seu sentimento:

“ – Eu descobri, filha... eu descobri que você é tudo pra mim! Não vou sobreviver sem a tua companhia... é ela que me faz respirar, encontra um sentido para o que eu vivo...”

“ – Pai, eu entendo o seu carinho, mas...”

“ – ... nenhum homem te conhece tão bem quanto eu, que sei dos seus desejos, dos seus medos, que te viu crescer e virar uma bela moça, e que confessa o medo de saber que sairei de sua vida...”

“ – Esse seu medo vai passar, pai...”

“ – Não é medo...”- pára, respira fundo, e pronuncia, com um ar de ressentimento: “ – Amor!”

Adriana tenta reagir: “ – Amor de pai para filha...”

Abelardo olha fixamente nos olhos: “ – Não! Eu tenho por você um amor puro... o amor que você merece! Nenhum homem é digno de você... só eu...todos os outros são maníacos, pervertidos... eu não... tenho meus olhos apenas voltados para você... desde que você nasceu, nunca mais tive loucuras sexuais... o amor que eu sinto por você me basta...”

E ajoelhou-se aos pés da moça, suplicante: “ – Não me abandone, Adriana, por favor...”- e chorou de medo... o medo do vazio.
Adriana, calmamente, se inclinou, olhou o pai olhos nos olhos, e, como que por instinto, entregou seus lábios a Abelardo...

Aos poucos se sentia amparada pelo carinho do pai, que beijava o seu corpo minuciosamente, como se conhecesse cada detalhe dele... ela sorria de prazer... naquele momento se sentia amada... estava se entregando ao pai numa alegria incontida... sabia que ninguém ia amá-la daquela forma... ninguém expressaria um amor tão singelo...

Abelardo a possuía... consumava, enfim, todo o sentimento reprimido durante anos... se isentava de qualquer pecado... seria pior o martírio da falta da filha e o receio em confessar seus sentimentos... vivia intensamente cada minuto daquele ato... buscava tornar Adriana a mulher mais feliz do mundo...

Levantou-se da cama, observando atentamente a nudez da filha, linda, desprovida de qualquer vulgaridade... procurava guardar para sempre o seu maior desejo... nunca mais se amarguraria com o seu coração...

De repente, passou a ter uma série de pensamentos: “ – Amor puro... casamento... amor puro... casamento...”- as idéias se confundiam em sua cabeça... chorava ao saber que havia contrariado todos os seus princípios...

Caminhou até a cozinha, pegou uma faca, e suavemente dilacerou seus pulsos. “ – A pureza do meu amor se transformou num incesto consciente...” – lastimava: “ Que vida é essa que não permite os amores mais puros? Por que a condenação do amor de um pai pela sua filha? Ninguém jamais compreenderá o amor implícito no incesto... mas nenhuma doutrina será capaz de condenar o fato de eu ter amado Adriana mais do que pude... estou pronto para ser condenado...”

Antes de fechar os olhos, ainda esboçou um sorriso. À sua mente, surgia a imagem da filha, feliz, entrando na igreja vestida de noiva, ao som dos primeiros acordes da Marcha nupcial de Mendelssohn.

domingo, 9 de novembro de 2008

Os velhinhos

Olá, amigos.

Aqui vai mais um esquete de teatro - ainda não montado. Caso alguma pessoa que esteja acessando este Diário de um salafrário no momento tenha se interessado em montar, é só entrar em contato pelo e-mail:

viniciusfaustini@gmail.com

Obrigado a todos,

Vinícius Faustini


*****

OS VELHINHOS

Personagens
EUSTÁQUIO
GERMANA



Sobe a música Os velhinhos. A luz sobe aos poucos. Eustáquio e Germana estão sentados lado a lado num banco de praça. Ele parece estar entretido em contar os pombos da praça. Ela parece insatisfeita com a situação. Na fala de Eustáquio, a música desce aos poucos.

EUSTÁQUIO – Cento e setenta e quatro... Cento e setenta e cinco... Cento e setenta e seis... Cento e setenta e sete... Cento e setenta e oito... (pausa. Abre os braços) Ah, droga, voaram de novo! (olha para Germana, infeliz) Estes pombos! Parece que eles fazem de propósito! Mas pelo menos foram muitos, cento e setenta e oito é marca de profissional! (suspira) Ah...

Germana dorme.

EUSTÁQUIO – Mas ainda não consegue superar aquele meu recorde. (saudoso) Parece que foi ontem! Manhã de vinte e três de abril de mil novecentos e oitenta e sete! Eu estava na Praça Nossa Senhora da Paz, quando contei aquele número fantástico! Foram trezentos e oitenta e cinco pombos! É, mas parece que os daqui de Copacabana não querem colaborar. Né, minha velha?

Eustáquio percebe Germana dormindo.


EUSTÁQUIO (chamando) – Germana... Germana... (grita) GERMANA!

Germana acorda assustada.

GERMANA – Que susto, Eustáquio! Assim você assusta os pombos!
EUSTÁQUIO – É? O que você queria? Eu aqui, narrando a minha maior façanha e a minha esposa... DORMINDO! É isso é que dá esse amontoado de remédios! Minha filha, remédio pra enxaqueca dá sonolência!

GERMANA – Eu não tomei remédio pra enxaqueca!

EUSTÁQUIO – Não precisa tentar me enganar. Eu te conheço. Somos casados há cinqüenta e cinco anos! Bem, deixa de bobagens... (olha para a frente. Se empolga) Olha, chegou uma nova revoada de pombos!

Germana bufa de raiva.


EUSTÁQUIO (contando) – Um... Dois... Três...
GERMANA (berra) – Chega! (e se levanta)

Eustáquio se espanta.


EUSTÁQUIO – O que foi, minha velha. Já perdeu a conta? Ora, mas você é muito desligada e...

GERMANA – Eustáquio...

EUSTÁQUIO – Não fica assim, eu volto a contar junto com você...

GERMANA – Eustáquio...

EUSTÁQUIO – Esses aí parecem que vão ficar aqui muito tempo...

GERMANA (grita) – Eustáquio!

Ele se espanta de novo.

EUSTÁQUIO – Não precisa gritar que eu não sou surdo!

GERMANA – Eustáquio. Vamos embora...

EUSTÁQUIO – Embora, Germana? Mas foi você mesma que quis vir aqui!

GERMANA – Sim... Mas eu não vim aqui pra contar pombos!

EUSTÁQUIO – Não?! Oh, meça, não me diga que veio para brincarmos de gangorra?

GERMANA – Não seja ridículo! Eu tenho uma coisa muito séria pra falar com você...

EUSTÁQUIO – Eu cochilei com a TV ligada? Desculpa!

GERMANA – Não. É que eu tomei uma decisão muito importante...

EUSTÁQUIO (levantando-se) – Eu já falei mais de mil vezes que eu NÃO VOU PRO ASILO!

GERMANA – Não é asilo coisa nenhuma. Eu trouxe a gente aqui pra dizer... (pausa) Que eu estou indo embora!

Silêncio.

EUSTÁQUIO – Ah, sim... Você vai voltar pra casa mas eu posso ficar mais um pouquinho junto com meus pombinhos...

GERMANA – Você não entendeu. Eu estou INDO EMBORA DE CASA!

EUSTÁQUIO – Ué, mas a gente não tava procurando apartamento!

GERMANA – Eustáquio... Eu quero o divórcio!

Silêncio. Eustáquio começa a rir.


EUSTÁQUIO – Germana... Oh, meça, o que é isso? Quase me mata de susto! Essa foi boa, minha velha...

GERMANA – Eu não estou brincando, Eustáquio! Estou me separando de você! (levanta-se, fica de costas para ele) Eu não volto mais pra casa contigo!

EUSTÁQUIO – Hã?

GERMANA – Há tempos que a situação lá em casa está insustentável!

EUSTÁQUIO (caindo em si) – Mas o que foi que aconteceu? Germana...

GERMANA – Quando eu me casei com você. Eu achei que minha vida ficaria completa. O tempo foi passando, nós dois juntos, são 55 anos de casados!

EUSTÁQUIO – Aonde foi que eu errei?

GERMANA – Não me obrigue a dizer isso...

EUSTÁQUIO – Germana, eu quero saber...

GERMANA – Eu vou embora.

EUSTÁQUIO – Germana! (tempo) Eu quero saber o que eu fiz de errado!

GERMANA (cedendo) – Está bem! A nossa vida tá muito rotina! De casa pro bingo, do bingo pra praça, você contando esse monte de pombos...

EUSTÁQUIO – Mas eu posso mudar! (sedutor) Que tal uma bela partida de damas?

GERMANA – Eustáquio. O nosso casamento está parado! Eu não quero minha vida monótona! Quero me divertir. Sair com minhas amigas, ir ao cinema...

EUSTÁQUIO – Anhé? E o que mais?

GERMANA – Quero esportes radicais! Acampar! Fazer trilha! Escalar o Pico da Bandeira! Andar de motocicleta! Olha, do jeito que eu tô animada, meu filho, topo até ficar no meio de um tiroteio na favela!

EUSTÁQUIO – Ah, não! Tiroteio na favela é esporte radical demais! Não conte mais comigo!

GERMANA – Eu não conto com você há décadas! E tem mais! Você foi o primeiro e único homem da minha vida...

EUSTÁQUIO – Então? Isto não te significa nada?

GERMANA – Significa... Significa é que está na hora de eu experimentar novos homens! Tô muito afim de ir pra night, conhecer altos gatos... Sarados, musculosos, bons de boca... Vou beijar homem à vera! E quando alguma amiga minha perguntar se é meu namorado, eu respondo, só pra elas babarem... (tempo) Eu estou só pegando!

EUSTÁQUIO – Pegando! Pegando! Você não pega nem mais gripe, desde aquela última campanha de vacinação.

GERMANA – Alôooou! Você está por fora, meu filho! Out! Se liga! Passei muito tempo assim, de bobeira, e agora não quero mais isso! Num tenho culpa se tu é arame liso, que não pega ninguém!

EUSTÁQUIO – Germana, que vocabulário é esse? Modos! Modos!

GERMANA – Ih, mó perrengue ficar esse tempo todo do teu lado! Tu é mó péla!

EUSTÁQUIO – Germana, pelo amor de Deus, fala no meu linguajar que não tô entendendo nada!

GERMANA – Contar pombos não tá com nada! Eu quero é chegar em casa e contar quantos gatos eu peguei na night!

EUSTÁQUIO – Mas, Germana, cinqüenta e cinco anos não podem acabar assim!

GERMANA – Olha, se tu quiser, vem comigo! A gente pode sair pra night junto, na boa, cada um na sua... Eu até te apresento umas amigas. É só você chegar nelas!

EUSTÁQUIO – Não entendi nada...

GERMANA – Ai, tu é mesmo muito arcaico, cara. Ó, não vou perder mais tempo não. FUI!

Germana sai de cena. Eustáquio se senta. Fica alguns segundos atônito, mas logo vislumbra um novo bando de pombos.

EUSTÁQUIO (feliz) – Um... Dois... Três... Quatro...


À medida que ele vai contando, a luz vai diminuindo. Toca um trecho de Agora só falta você

©Copyright. Vinícius Faustini, 2006. Todos os direitos reservados.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Estrela da manhã

Senti um afago no meu rosto. Acho que era a primeira vez depois de muito tempo que eu esboçava um sorriso ao acordar - e o detalhe é que eu acordava sem o auxílio do despertador. Meus olhos enxergaram o travesseiro, os livros de cabeceira até chegarem ao alcance da janela.

Notei sua presença quando a vi sentada na minha cama. Seus olhos sorriam para mim, e ela dizia, num sussurro: "bom dia". Fez um carinho na minha bochecha, e retribuí com um beijo bem leve na palma de sua mão. Ela riu, esquivando a cabeça para o seu lado esquerdo. Agora seu corpo parecia envolvido pelos primeiros raios da aurora.

Com palavras espontâneas eu disse apenas "eu te amo". Sentei na cama e com as costas da mão acariciei seu rosto até meus dedos começarem a fazer carícia em sua nuca. Ela suspirava, com os olhos fechados e o semblante de quem se entregava a um carinho.

Foi aproximando seu corpo de mim, até que seus lábios ficassem próximos dos meus. No instante em que nossas bocas se encontraram, meus olhos desmaiaram, cegos diante do fascínio que meus outros sentidos conheciam através da doçura daquele beijo. Um beijo longo, amável, doce, sincero... que me fazia ficar ainda mais apaixonado por aquela desconhecida.

Logo que nosso beijo teve fim, me apressei a abrir os olhos e procurá-la com o olhar. Mas ela sumira. Foi embora, sem nenhum barulho de passos ou de batida de porta. Nem menos com uma palavra de despedida. Ainda procurei com os olhos algum vestígio.

A única coisa que vi foi um raio de sol escapando pela fresta da janela. Ela sumiu, sem deixar nem ao menos perfume. Meu dia agora começava... E eu já estava lá, ansioso, olhando para o céu, na ânsia de que as horas corressem e chegassem a um novo momento em que aquela estrela da manhã viesse me despertar para clarear mais um dia.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Saudade telefônica

Estou só. Na minha ânsia desmedida, no desvario acalentador de que um dia você vai me curar. Tirar todos os meus defeitos. Você chegou em minha vida para acompanhar meus dias, pra acabar com a azia, essa cruel companhia dos meus amargos dias de solidão.

“Eu amo você. Hoje mais do que ontem, amanhã mais do que nunca”. Você responde, e percebo na sua alma um sorriso descompromissado. Você está lisonjeada diante da maneira que lido com nosso amor.

Prossigo com minhas palavras. Cada vez mais me sinto em suas mãos. Você é a única coisa que me faz resistir às obsessões, ao fascínio que desde menino me leva a uma idéia. A um destino. À depressão seguida de um brutal, de um teatral, ou até mesmo de um silencioso suicídio. Paro. Suspiro. Respiro. Pergunto. Você está em frente à janela?

“Sim...Olhando para o céu. A noite está iluminada. Sabe, amor, eu acho que não há nada de mais bonito do que o luar desta noite”.


Você... Você...


Você ri, com essa risada de menina que me atrai e me dá uma calma tão doce. Repito, bem baixinho: você é a mulher mais linda do mundo.

“Eu queria estar aí do seu lado”. E faz um ar de quem está cheia de dengo.

Eu sei. Eu também queria. Hoje a noite parece estar mais fria. Deve ser o inverno começando. Isso acentua a minha solidão...


“Pensa em mim, amor...”

Você me dá uma paz. Sabe, a rua hoje tá tão escura, poucos carros na rua, e sempre passando a toda velocidade. Tem uma puta no sinal, mascando chiclete, doida pra conseguir um cliente.

“Hummm... Faz muito tempo que ela tá lá?”

Faz sim. Rio pra dizer. Desde que comecei a pensar em você!


Você ri. “Ah, é? Vai lá, quem sabe ela não dá pra você...”. Você me provoca, sabe o quanto eu te amo.

Ah, como eu preciso de você... Queria passar a noite sentindo sua presença. Deslizando a mão sobre seu rosto e vendo esse sorriso que me enfeitiça. Estou definitivamente tomado por você. Não me importo com mais nada, só quero passar o resto dos meus dias ao seu lado.

“Eu te amo”. Você me interrompe, num soluço de carinho.

Sorrio e digo. Eu também. Não resisto e suplico. Fica perto de mim.


“Casa comigo?”. Um pedido sério, seguido de uma frase sensual. “Sou toda sua”.

Sua voz me cativa, me apaixona, me acaricia, me envolve, me faz sonhar. Paro, penso, e faço uma autocrítica. Aqui estou eu insistindo nas minhas bregas declarações de amor. Perdão, meu bem, eu não perco essa mania.

Você ri. “Seu bobo... Eu adoro as suas declarações de amor!” E muda de assunto.

"Quando a gente se encontra? Pode ser amanhã? Eu tava com saudade...”.

Pode sim, e eu também estou com saudade. Bar?

“Não. Faz tanto tempo que eu não vou ao cinema...”.

Adorei a idéia. Qual filme?

“Um bem romântico!”

Tá bom, minha linda. Amanhã aqui na esquina de casa às duas da tarde.

“Sim, senhor”. E você se derrete. “Casa comigo...”.

Caso sim. Mas bem que a gente podia antecipar a lua-de-mel. Depois do cinema a gente vem aqui pra casa...

“Como você quiser, amor... A minha solidão tem me angustiado bastante também. Sinto falta do seu cheiro, do seu carinho, da sua cama...”.

Ando sonhando com você. A cada dia te enxergo mais bonita. Ninguém é capaz de decifrar a poesia dos seus lábios, a pureza do seu olhar, o calor do seu desejo.


“Ai, amor... Adoro quando você fala assim desse jeito comigo. É uma delícia fazer o papel de sua musa inspiradora”.

E eu adoro essa certeza de que amanhã vou vê-la mais uma vez.


Você fica em silêncio.

O que foi, meu bem?

“Acho que o seu amor por mim está acabando. Você não disse eu te amo nenhuma vez hoje”,

Eu te amo.

“Não. Depois que eu falei não vale”.

Que menina voluntariosa! É por isso que sou apaixonado por você.

“Não fala assim desse jeito comigo, não sou criança”. Pausa. Breve suspiro. “Não tinha reparado como a noite fica mais bonita quando a gente namora”.

É porque ela fica atiçada com o seu sorriso.


Você diz, emocionada. “Ai, meu amor, você tá tão poético hoje...”

É saudade. Saudade telefônica.


Um bocejo. “Estou com sono”.

É melhor você ir dormir. Eu não ia gostar de saber que você ficou com olheiras por minha causa.

“Vou pro meu quarto. Esperar o seu beijo de boa noite”.

Amanhã eu te espero.

“Estarei lá. Sempre”.

Boa noite.

“Boa noite”. Você completa, com doçura. “Vou sonhar com você...”.

Eu te amo.

“Eu também te amo. Boa noite, meu amor”.

Durma bem. Escuto o seu suspiro. Chamo, com desespero. Amor! Amor!


“Oi! Fala! Eu tô aqui”.

Nada, só queria ouvir um pouco a sua voz. Vou contar os segundos pra amanhã chegar logo, logo.

“Eu também”. Você boceja.

Vai dormir. Naquela hora tenho pena e também uma vontade louca de estar ao seu lado, contemplando o rosto que é um alento para os meus olhos. Ainda repito, num fio de voz, boa noite, boa noite, meu bem. Eu te amo... E aguardo o fim da ligação.

Coloco para imprimir o texto. Quem sabe o diálogo dessa vez agrade o editor, embora eu esteja satisfeito com a nova chance, confesso que estou com receio dos impropérios que ele possa vir a me dizer das minhas palavras. Ele diz que minhas palavras não têm verdade, não têm tesão.

Sempre me diziam que tudo na vida se resolve com diálogo. O que posso fazer se não me sinto mais à vontade pra falar com ninguém? Talvez seja melhor eu não mostrar isso aqui pra ele. Não quero que alguém venha falar “como sou”, “como devo ser” e “o que devo seguir para chegar ao resultado ideal”.

Cada vez que vejo o mundo lá fora me sinto melhor em meio aos meus personagens. E eles precisam de mim, e eu deles para continuar com a alma viva. São três da manhã. É bom eu dormir. Amanhã meus personagens têm de ter mais um dia de sobrevida.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Pedagogia corintiana

Olá, amigos.

Este é mais um texto que escrevi para teatro. Trata-se de um monólogo que já apresentei no teatro O Tablado e também em um bar em Vila Velha, no Espírito Santo. Baseado no conto Antena ligada, de Lourenço Diáfera, este texto é narrado por um pai que torce para o Corínthians e tem, digamos, algumas rixas com o colégio no qual o filho é educado. Tudo em função do esporte bretão.

Espero que vocês gostem. O Diário de um salafrário novamente abre espaço para o teatro - agora na vertente do monólogo. Gosto muito de fazer este texto porque acho hilário o sotaque paulistano, e acabo carregando bastante nele.


PEDAGOGIA CORINTIANA

O ator entra em cena, com uma calça comprida e uma camisa do Corinthians.

E aí meu, firmeza? Sabe esse negócio de não basta ser pai tem que participar? Então! Eu não quero que o meu garoto cresça e fique reclamando que fui um pai ausente! Por isso, decidi ajudar o meu filho gavião-da-fiel a passar com louvor nas provas finais do colégio. Eu só não ia esperar que justo a escola, uma instituição que ensina o caminho do saber fosse ensinar o meu filho a ter raiva de mim.

Eu explico. Outro dia, meu filho chegou em casa e disse pra mim: “Papai, meu professor mandou fazer um trabalho sobre Sócrates”. Aí eu pensei: é hora de um legítimo gavião-da-fiel mostrar na escola que sabe tudo sobre a história do Corinthians!

Foram duas semanas de aulas intensivas sobre Sócrates, na qual ensinei ao garoto a importância do Doutor na história do Timão. Não satisfeito com meus ensinamentos, ainda pus o meu filho pra ler meus arquivos da revista Placar. Não é por nada não, mas o trabalho ficou uma beleza, até o Sócrates ia autorizar como biografia dele!

Mas o professor não entendeu. E meu menino tirou zero. Ah, audácia com o meu filho gavião-da-fiel sempre aplicado nos estudos. Em todo caso, fui levar um papo com o professor. Ele foi logo botando banca, dizendo que eu tava enganado e que o trabalho era sobre o Sócrates que tomou cicuta.

Ah, meu, nessas horas é que o sangue sobe à cabeça. Bati na mesa e falei: “O senhor tá insinuando que o Doutor jogava dopado?” O cara até tentou mudar de assunto, dizendo que era o Sócrates da Grécia, mas eu continuei firme: “O Sócrates jogou no futebol italiano, não tem nenhuma passagem por time grego!” E o cara teimava, dizia que queria o Sócrates que se opôs à democracia ateniense. Aí eu dei o braço a torcer, o senhor tá certo, o Doutor defendeu mesmo foi a Democracia Corintiana!

O professor falou até bonito, um negócio de “só sei que nada sei”. Na verdade ele não sabia de nada, mas fiquei quieto. Até porque, ele disse que ia dar mais uma chance pro meu filhão. Passou um trabalho sobre Casa Grande & Senzala. Mas não deu nenhuma indicação sobre o Casagrande ou o Senzala.

Eu nunca tinha ouvido falar no tal do Senzala, nem sabia que ele tinha feito dupla de ataque com o Casagrande, que eu me lembre o Casagrande jogava com o Ataliba. E olha que eu sei da história do meu Timão! Mesmo assim tranqüilizei o menino: “olha, filhão, já que o professor ta de marcação contigo, vamos fazer o melhor possível e mostrar que a gente sabe das coisas”. Vamos falar tudo que a gente sabe sobre o Casagrande, aí pensa comigo: dez pro Casagrande, zero para o Senzala, média cinco, passou! Meu filho ficou todo empolgado.

Aí o garoto tirou zero de novo. Aí me caiu a ficha: o tal do Senzala devia ser um centroavantezinho qualquer que jogou no Palmeiras mas foi ofuscado pelo grande talento do Casagrande! Tava na cara, o professor era palmeirense, porco safado! Foi um custo, mas ele ficou de dar um novo trabalho para o meu filho passar de ano.

Mas desta vez ele deu logo um jeito de mostrar as garras, professor safado! Mandou o garoto fazer um trabalho completo sobre o Guarani. Não, olha que sujeito sacana. Como ia ficar muito na cara mandar o moleque fazer um trabalho sobre o Palmeiras, deu pro garoto a tarefa de falar sobre o alviverde de Campinas.

Não me fiz de rogado, arranjei tudo sobre o Guarani, até foto e escalação completa do time campeão brasileiro de 1978 e fiz ainda melhor. Liguei pro meu amigo campineiro Antônio Contente e ele me mandou bonitinha uma camisa nove autografada pelo Careca. Não é por me gabar não, mas o trabalho escolar ficou um luxo, digno de aprovação com louvor e honrarias! Mas aí deu zebra. O cara deu outro zero e não devolveu a camisa nove autografada.

Desta vez, não me segurei. Fui falar com o professor e já mandei esta “que sacanagem é essa da vossa senhoria com o meu garoto gavião-da-fiel? Eu perco meu tempo ajudando meu filho a contar tudo da história do time do Brinco de Ouro da Princesa e o garoto ganha cartão vermelho?” Além de questionar se eu tinha feito o trabalho pro meu filho, o sujeito teve a audácia de me dizer que eu não conhecia nada do Guarani!

O pior é que ele tinha razão. Mas, como é que eu, um gavião-da-fiel legítimo ia saber que o Guarani tinha uma dupla de área chamada Peri e Ceci? E que com esta mudança de treinadores, como é que eu ia saber que o técnico atual era um tal de José de Alencar?

Ah, não pensei duas vezes. Tirei o garoto da escola, não deixei nem ele terminar as provas finais. Vocês hão de convir, né? Por mais que o garoto tenha de repetir o ano, eu não podia deixar meu moleque gavião-da-fiel ir pra outra série sabendo tudo errado! Mudei o garoto de escola, agora ele tá estudando numa escola do lado do Parque São Jorge, eu tenho certeza que ele vai ser um gavião-da-fiel bem diplomado. E vai agradecer a mim por não ter se submetido àquele professor palmeirense da outra escola.

Não basta ser pai, tem que participar e passar pros filhos toda a história do meu Timão. Vou deixar o moleque virar parmeirense por causa de professor? Ih, meu, dá licença!

sábado, 1 de novembro de 2008

De um sonho bom

Sei de todos os meus defeitos. Reconheço, serenamente, a cruel e tranqüilizante verdade de que não valho nada. Mas, embora prestes a ser esquecido, descartado, confesso a você, tudo isso agora, meu doce anjo, à espera de que uma brisa leve meu coração ao seu sono.

Minha amada... Se eu pudesse, se eu dissesse o quanto sua presença me dá uma paz, me dá uma vontade, uma ânsia deliciosa de enxergar a sua alma. Estar ciente de todos os seus desejos, de seus medos, pra depois te olhar em cada detalhe, no desenho desta pureza que reúne seus traços.

Querer acariciar a sua pele, você tão macia com o rosto mergulhado nesse travesseiro. Decifrar todo o brilho dos seus olhos, que persistem em me entorpecer da poesia do seu olhar. Sentir, nem que por um instante, o deleite do seu sorriso ao se surpreender com a minha singela declaração, a qual ninguém pode censurar, corrigir, apagar.

Imaginar que seus lábios possam por algum momento estar à procura dos meus. Envolvê-la em meus braços, suplicando para que você não se desvencilhe do meu afeto, abafado pelo pânico de machucar o seu frágil coração com essa minha adoração desmedida.

Mas... De que adiantam as minhas palavras? Em breve você abrirá os olhos, e todo amor alimentado durante o sonho será esfarelado por um bocejo. E mais uma vez, ficarei escrevendo as minhas mágoas em folhas de papel, com sua beleza a cada momento mais exuberante rente aos meus olhos.

Em momentos como a hora de espiar o seu sono eu tenho mais aversão ao cotidiano. Essa maciça rotina, que esmaga todas as vontades, as belezas, as delícias, e nos torna apenas um bando de céticos diante de cada um de nossos sonhos.

Passo o dia a lamentar a sucessão dos minutos, das horas, dos compromissos. Mas à noite, mantenho o meu compromisso com você. De afagar o seu sonho, vendo os minutos da noite adentrarem nas horas da madrugada enquanto você sorri sabe-se lá por qual motivo. Toda noite eu faço tudo sempre igual. Pra uma noite, quem sabe, eu conseguir sair da rotina só pra viver contigo um sonho bom.