Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A bela - de Wilson Calmon

Amigos,

esta semana o salafrário que vos escreve está às voltas com a revisão do livro e com textos da faceta esportiva em O tempo e o placar... e no Almanaque Virtual. Portanto, mais uma vez o diário está aberto para as linhas de poesia do amigo Wilson Calmon.

Em vez de atrevimento poético, hoje é a vez de lermos poesia de verdade. E poesia da boa.

Boa leitura a todos,

Vinícius Faustini


*****

A BELA

Tu és a graça, musa de meus mais verdes anos
És a ventura, néctar da paixão, perfume da mocidade
És calor, és ardor, és a serena fonte de amenidade
És a virginal essência dos nobres corações aquilianos

Tua fragrância lembra-me uma antiga namorada
Teu pranto derramado faz de ti a bela mais amada
És frágil, ágil! És rosa, formosa! És a bela a namorar!
Teu amor é como uma esmeralda escondida ao luar

Tu és a luz na magnífica e rústica escuridão triunfante
Linda namorada do mais belo e enigmático semblante
És uma obra de arte, digna da mais minuciosa exegese

Tua cálida alma de menina-mulher e amante enaltece
És divina, és o auge, és o apogeu de uma vida poética
Tu és a maior virtude de uma pura juventude eclética

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Noite de autógrafos

As mãos. Sim, eu já sabia que era ela só de ver a mão que me entregava o livro. Ela era mais uma a querer que eu deixasse meu manuscrito de autor no início das folhas de papel que eu escrevi e que uma editora se arriscou a publicar. Logo ela, que por muitas vezes era a primeira a passar os olhos no que eu escrevia. Às vezes, eu ficava até sem graça por ela se prestar a ler minha caligrafia afoita passeando pelo papel através de um lápis mal apontado.

Peguei o livro e, por impulso, acariciei as costas da mão dela, até deixar que se desvencilhasse dos meus dedos. Do mesmo jeito que ela se desvencilhou de mim algum tempo atrás. Ela estava sorrindo quando meus olhos alcançaram seu rosto. Parecia com mais vivacidade, embora não conseguisse esconder que estava um pouco tensa com a situação.

"A dedicatória é só pra você?", foi minha saída para evitar que a tensão de ambos os lados fosse percebida pelos demais. Neste momento senti que valia a pena ser um escritor recluso e, principalmente, ela não estar ligada ao meio artístico. Seria constrangedor o burbúrio das pessoas cessar na hora em que ela estivesse à beira da minha mesa.

Ela respondeu um "sim" quase sem voz. Escrevi o nome dela e ao pousar a caneta novamente, me faltou inspiração para escrever. Enquanto alguns autores veem na dor-de-cotovelo uma razão para a escrita acontecer, minha literatura trava diante de uma situação como esta. Com o rosto fechado, olhei para os olhos dela querendo achar alguma palavra, e me apeguei à única que surgiu à minha vista. "Saudades".

Entreguei o livro a ela. Ao ler, ela teve uma reação de espanto. Engoliu em seco. Maquinalmente, olhou para mim e de sorriso amarelado disse "obrigada". Acenei e pedi para o próximo da fila se encaminhar. Assinei. Procurei-a com os olhos e acabei a achando, no café da livraria, sentada, lendo e bebericando uma xícara de café. Assinei mais um. Ela continuava lá. Continuava lendo. Assinei outro. E ela continuava lendo. Entreguei o livro para o último da fila. Agradeci às pessoas que ainda estavam lá e segui para a rua.

Ela cutucou meu ombro. Sua mão continuava com a mesma carícia. Respirei fundo. Logo que desviei ela me disse:

"Parabéns. O livro é muito bom".

Pausou. Desviou o olhar, disse constrangida:

"Não li todo ainda. Li boa parte, enquanto você ficava autografando, mas...".

Novo silêncio. Ela ajeitou os cabelos e pude notar que algumas lágrimas tinham passado por seus olhos.

"Eu queria falar com você...".

Balancei a cabeça afirmativamente. Andamos lado a lado na calçada. Paramos no cruzamento de uma das ruas. Atravessamos na faixa de pedestres. Passamos a praça. Atravessamos outra faixa de pedestres. Chegamos à orla. Paramos no calçadão, ficamos sentados perto de um quiosque. Os dois olhando para o mar.

"Sou eu, né?".

"Quem?".

"A moça" - ela olhou para mim - "A moça do livro".

Desviei o rosto. "Faz alguma diferença isso?".

Ela ficou cabisbaixa. Fingia coçar os olhos para evitar que alguma lágrima voltasse a saltar. De costas pra mim, disse. "É tanta coisa, uma atrás da outra que...". Parou novamente. Senti sua voz embargada de choro.

"Bem que as pessoas me disseram, "olha, o livro dele é lindo, é best-seller na certa". Claro que eu já imaginava que era bom, mas...".

Parou de novo. Meu rosto continuou intacto, apenas atento aos movimentos dela. Ela colocava as mãos na altura do nariz e tinha os primeiros soluços de choro. Dizia "Tá doendo... Dói muito". Fraquejou e recostou a cabeça no meu ombro. Passou as costas da mão nos olhos e falou, ofegante.

"Dói muito... Ler isso tudo aqui dói muito. Ficar revivendo isso aqui, registrado em papel, pra todo mundo saber da nossa história. Dói muito. Eu não aguentei ler até o final porque sei como isso tudo vai acabar. E eu não quero ver o fim, eu não quero".

Ela escondeu a cabeça no meu peito e enquanto chorava suas mãos me batiam, com descontrole e falta de força. Permaneci recebendo cada golpe dela. Parecia que eu estava cicatrizado contra qualquer soco. Aos poucos, ela foi se cansando. Saiu dos meus braços e com a manga do casaco enxugou as lágrimas. Mais serena, disse:

"Dói muito. Tanto que não aguento mais. Eu não quero viver pra ver esse livro nos mais vendidos. Não quero mais que me perguntem do que achei do seu livro. Não quero mais ler os seus textos. Não quero mais saber que você escreve. Não quero mais lembrar que você fez uma linha".

Abriu a bolsa. De lá retirou um canivete e me entregou. Sem olhar pra mim, continuou dizendo:

"Olha... Aqui tem uma carta que eu escrevi pra você. Não sou boa com as palavras feito você, mas eu escrevi tudo o que sinto" - e me entregou. Continuou: "essa outra você apresenta lá na polícia, pra saberem que você me matou por minha vontade".

"O quê?".

"É isso mesmo. Eu vim aqui pra você me matar. Dói muito ter de conviver com você. Mesmo depois que você foi embora da minha vida, você sempre volta, sempre. As pessoas perguntam, tudo me lembra você. E você continua escrevendo, mesmo depois que eu fui embora. E agora, esse livro... Pra mim chega, eu não quero mais. Olha, eu tentei mas não consigo me matar. Então pensei em você. Você é uma pessoa confiável, e você mata os seus personagens quando você bem entende. Eu sou só mais uma, né? Mais uma personagem que passou pela sua vida e que vai ter final trágico. Só isso, eu te peço...".

Ela arregaçou as mangas do casaco, fechou os olhos e estendeu os pulsos. Trincava os dentes em choro e em compasso de espera para o fim de uma dor. Passei a mão em seus cabelos, afaguei seu rosto, seus olhos e beijei longamente sua boca - um beijo que ela retribuiu. Numa das mãos pousei o canivete. Na outra, entreguei meu livro, e ainda fiz um afago nas costas da mão dela antes que se desvencilhasse dos meus dedos. Uma lembrança que chegou a ser sádica. Durante muito tempo na vida dela eu ainda pretendia viver.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Por quê?

Mais um atrevimento poético deste salafrário que vos escreve...

Obrigado a todos,

Vinícius Faustini


*****

Por que um dia você deixou que eu te amasse?

Por que eu insisti em dizer "eu te amo" mesmo depois de você dizer "e daí"?

Por que fantasiei seu sorriso quando sua realidade me mostrava tanta indiferença?

Por que declamar poesias, se minhas palavras partiam num vento, num vento que passava tão longe dos seus ouvidos?

Por que procurar seus olhos, se eles se desviavam na primeira luz de neon do sentimentalismo efêmero?

Por que dar valor aos seus passos, se eles eram feitos de um salto alto e barato?

Por que tornar suas palavras músicas para os meus ouvidos, se aquele som era tão descartável, produto de fácil consumo e esquecido na canção seguinte?

Por que tentar unir em corpo as nossas almas, se seu corpo só se despia de acordo com o que lhe era conveniente?

Por que planejar viagens repletas de amor, quando seu falso amor por mim tinha fôlego apenas para chegar à próxima esquina?

Por que arriscar enxergar sua alma, alma turva pelo desencanto ao qual você decidiu condenar todos os que desejam lhe entregar nada mais do que um amor?

Porque ontem sonhei com seus olhos.

Porque ontem doeu sua saudade.

Porque ontem você me apresentou ao desamor.

Porque o ontem cada vez mais fica distante.

Distante no calendário entre o dia em que você foi embora e a madrugada na qual eu tento te esquecer...

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Catarse

Olhou a mensagem de texto dela no celular. Ela dizia que estava indo embora, partia rumo à Europa, ia buscar novas oportunidades de se tornar uma profissional ainda melhor em sua área. Ele chorou. Olhou para o relógio. Respirou fundo. Abriu a porta tão bruscamente que já estava descendo as escadas quando ouviu o "blam" dela batendo.

Desceu as escadas, passou pela portaria e praticamente se atirou na frente do táxi. Disse ao taxista: "aeroporto, o mais rápido que puder". A madrugada era sua aliada, ainda eram quatro e meia da manhã. Tinha uma hora e quinze até ela entrar no saguão de embarque. Foram 40 minutos entre seu apartamento e o terminal de voo. Correu nos arredores do aeroporto, atento a todas as mulheres que passavam com suas bagagens. Só conseguiu vê-la na hora em que estava se encaminhando para embarcar.

Correu, quase derrubando a mulher que vinha cheia de embrulhos no carrinho. Sentiu que não ia chegar a tempo. Sua voz poderia chegar primeiro. Gritou o nome dela. Ela estacou. Sorriu, surpresa. Perguntou o que ele estava fazendo ali. Sem fôlego, ele disse: "vim te ver".

Ela achou bonitinho ele ter ido se despedir. Apertou a bochecha direita, deu um beijo em sua testa e disse "tchau". Ele segurou seu braço, disse "espera". Pediu mais uma vez para ela não ir, prometeu mundos e fundos, talvez mais do que podia. Ela disse que tinha uma vida pela frente e a ambição de um novo mundo para conhecer e para conquistar. Ele disse que em nenhum lugar do mundo ela ia se sentir tão aquecida quanto nos braços dele. E disse mais. Disse que a amava. Ela disse que também o amava. E que ia guardar este amor para a vida toda. Mas que o cotidiano, os desejos, as aspirações, o mundo separaria seus corpos. E por tempo indeterminado.

Ele a beijou. Ela aceitou seu beijo, entreabrindo os lábios para sentir o gosto de sua língua. O amor renascia por alguns instantes, até o romantismo ser despertado pela voz do aeroporto, que dizia "última chamada". Com as mãos unidas, ela sorriu num lamento, dizendo que precisava ir. Os olhos dele marejaram, e sua voz emitiu apenas um "que pena que você vai".

Ela se encaminhou para o embarque. Ele virou as costas. Enfim ela iria embora, mas ele queria se poupar da visão dela partindo de uma vez. Caminhou a passos curtos, tentando digerir como seria a vida sem ela.

Atravessava a porta para pegar um táxi quando seu ombro recebeu um carinho. Era a mão dela. Virou-se bruscamente. Ela sorria, anunciando que descobriu que não precisava e que não queria mais ir. Os dois se abraçaram, girando de felicidade, para depois se entregarem ao beijo logo de um retorno de quem nunca se despediu. Fim.

Os letreiros subiram. Os olhos dele novamente se avermelhavam, como em todas as vezes que assistiu ao filme. Ele se emocionara mais uma vez com o final do casal. Mais uma vez estava ansioso para que seu desfecho fosse o mesmo do fim daquele filme barato que parecia tanto com sua vida. Desligou o DVD, a televisão, apagou as luzes e foi para a cama.

Com a luz da cabeceira acesa, releu o mais recente postal que ela havia mandado. Ela o chamava de "querido" e contava com muita felicidade que estava em Glasgow e ia se casar com um escocês natural de Edimburgo. Seu instinto era de rever o filme, para lá chorar de felicidade durante 100 minutos. Mas o sono falava mais alto, e só lhe restava, antes de adormecer, desejar que a catarse de um final feliz agora viesse povoar também os seus sonhos.