Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Sem dó nem piedade

Uma palavra valeu mais que mil imagens para ele confirmar que seu passado tinha vindo à tona: ASSASSINO. Em letras garrafais e pichado em seu muro. Ao sair de seu barraco e caminhar rumo a mais um dia de tentativas de emprego, todos o encararam com olhares de reprovação. Os mais fracos, os mais velhos, os mais doentes traziam um semblante de medo. Cada vez que cruzava o caminho de uma criança, logo aparecia algum adulto para puxá-la e evitar que os dois se encontrassem.

No início se sentia constrangido. Depois, aos poucos foi vendo os benefícios da fama de criminoso. Podia pegar a cerveja recém-aberta deixada no boteco - o dono, entocado atrás do balcão, não protestava de tão amordaçado pelo medo. E ele gostava de ver todos os olhos amedrontados, fuzilados a cada sorriso cínico que ele direcionava aos pobres coitados do cortiço.

A rua lhe fechava as portas do emprego. A vizinhança lhe fechava as portas por respeitar a autoridade conquistada pelo temor. Ia para mais um dia de busca de trabalho com a autoestima nas nuvens. Mas sua vista alcançou-a pela primeira vez.

Viu aqueles olhos fundos, claros, tão transparentes que através deles pôde ver refletidos seus próprios defeitos e a imensa crueza à qual foi submetida sua vida nos anos passados dentro da penitenciária. Os olhos dela não se atemorizaram. Ela o olhou por segundos. Instantes suficientes para ele perder seu prumo.

Deixou de lado a entrevista de emprego. Decidiu seguir o trajeto de sua caminhada. Ela entrou em sua escola. Ele esperou, pacientemente. Arquitetou cada passo de seu plano. Não, neste plano não haveria mortos. A única morte que ele queria era o daqueles olhos. Daqueles olhos piedosos, tão transparentes em sua inocência.

Os alunos foram saindo aos montes. Ele achou-a e se aproximou dela com a promessa de um mimo que ela deveria buscar em sua casa. A voz dele ficou misteriosamente doce, ainda mais aos olhos de alguém tão inocente. Por um momento macabro, viu que o olhar de sua vítima podia ser seu cúmplice.

Ela sorria dentro do uniforme de escola. Tão comportada, tão cândida, tão exemplar quanto ele jamais fora para seus pais. Aquilo lhe sufocava por dentro enquanto ela dizia que tinha chegado lá há pouco e os pais ficavam o tempo todo na rua trabalhando. Seu olhar quase se desarmou enquanto os dois caminhavam. Mas logo os olhares do cortiço o fizeram recordar sua vontade naquele momento.

Fechou a porta de sua casa e já agarrou-a pelos cabelos. Fez uma carícia em sua nuca e sua mão áspera foi subindo pela pele alva e intocada da menina. Queria o seu prazer e o nojo dela. Mas não conseguiu.

Ainda de costas para ele, ela pousou uma das mãos em seu seio. No seio entreaberto pelos botões da blusa do uniforme. A outra, ela levou aos lábios. Passou a língua em cada dedo, sussurrando de desejo. Virou-se para ele, com a blusa entreaberta e o sutiã caído. Sua boca sussurrava "vem, vem" e seus olhos claros recebiam labaredas que o assustaram.

Delicadamente, puxou a calcinha para o lado e agarrou-se a ele. Não pareciam mais os mesmos olhos que ele ansiava por trazer lágrimas. Ele agora a entregava os primeiros olhares de mulher. E seu desejo por ela se confrontava com a amargura na qual mergulhava, por saber que em breve os olhos dela ficariam mais belos entregues ao próprio prazer.

Foi uma fração de segundos. Ela deu o primeiro grito de prazer e, sem dó nem piedade, suas mãos agarraram o pescoço dela. Seu olhar esperou pacientemente os olhos dela pararem de se mexer. Só assim suas mãos puderam fechar de uma vez a pureza daqueles olhos que tanto o torturaram e, se estivessem abertos, permaneceriam intactos em sua inocência.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Três minutos e cinquenta segundos

A Roberto Carlos, por todas as canções que ele fez pra mim.

*****

Pegou a cifra, ainda feita a mão e na presença dele. Recordou, com carinho, as tantas horas que ela ficou compenetrada feito moleca, ansiosa por achar o tom certo da canção que fazia pra ele. Ela ia e voltava, parava numa frase, numa melodia. Às vezes parava de cantar e dedilhava algo no violão. Olhou-a com ternura, tentando fazer com que a carícia de suas mãos nos cabelos dela a ajudasse a encontrar o caminho que sua inspiração queria.

A cifra permanecia ali, intacta, com todas as marcas de lápis apagado com borracha, com algumas coisas acrescentadas a caneta de última hora. Lembrou-se do momento em que disse que ela não precisava mais mudar, já estava lindo. Mas ela riu. Passou a mão em suas bochechas e fez seus lábios se encontrarem aos dele, dizendo "coisa de artista perfeccionista, meu bem".

Era tão difícil olhar os arredores do apartamento. A metade do armário vazia. A porta do banheiro entreaberta mostrando a pia na qual não tinha mais a escova de dente dela. Nem as calcinhas penduradas na parte de fora do box. A mesinha, antes tomada por livros de música e por canções prontas ou iniciadas em papel, agora tinha um vazio. Mesmo quando ela falou que ia embora para nunca mais voltar, ele decidiu não mais tocar naquela parte. Na parte que era dela. Ia sentir-se profanando um sagrado lugar de inspiração. Ia ficar sem ela, sem os detalhes das muitas vezes em que recebeu como primeira imagem ao acordar ela nua, de costas para ele, mergulhada em alguma melodia. A ausência doía, mas ao menos precisava ainda ter algo de concreto da falta dela. Caso contrário, ficaria entregue ao abstrato sentimento de perda, e iria se remoer ainda mais em sua amargura.

Olhou para a cabeceira. O porta-retrato estava virado para baixo. Evitava sim, evitava, mas era como uma compulsão ver novamente ela sorrindo. Ele que não queria vê-la triste e, para isto, deixou que ela fosse embora e o sufocasse de saudade. Pegou o porta-retrato. Com os dedos, desenhou a silhueta dela. Mas logo voltou para a cifra.

A música já estava acabando de tocar no rádio. Neste tempo todo, tinha procurado todas as formas de fugir do sucesso dela e do sucesso da canção que ela fez pra ele. Não adiantou. A voz delicada e a beleza em letra e melodia saltaram aos ouvidos da mídia. Ela era a sensação do cenário musical.

Contou no relógio os três minutos e cinquenta segundos do período da duração da música. A lágrima borrou um pouco o finzinho da cifra. Ficou constrangido mesmo sabendo que ela não ia tomar conhecimento disto. O rádio começou a tocar um outro sucesso capaz de grudar nos ouvidos. Desligou e tentou dormir. Mas, ao se ver abraçado com a cifra, decidiu ligar para a emissora. Queria ouvir a canção que ela fez pra ele novamente. Ao menos lá, no rádio, o mundo seria diferente de tudo o que restou da ausência dela.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

A bela da tarde

Ainda a primeira vez. Ela o recordava, com todos os cheiros, com toda a minúcia, desde o primeiro beijo até a forma com a qual ele cobriu o corpo dela depois da entrega que os dois tiveram.

Lembrou também da própria reação que ela teve naquele dia. Olhou, com ar carinhoso, para todos os cantos, e em seguida fechou os olhos, chegando a apertá-los para que nenhum detalhe de tudo o que acontecia escapasse de sua memória.

E não escaparam, mesmo depois de tantos anos. Quando estava entediada, recorria a ele. Fechava as cortinas, se despia por inteira na frente do espelho e se deitava. Suas mãos seguiam todo o trajeto que as mãos dele percorreram por seu corpo.

Passava a língua nos dedos para que as pontas deles acariciassem seus bicos, e em alguns momentos sentia o mesmo molhar que a saliva dele entregou à parte mais delicada de seu corpo. Com as mãos molhadas descendo delicadamente por sua barriga, arrepiando seus pelos e arrepiando a sua espinha de tanto desejo.

Aos poucos, os dedos se aproximavam mais de seu corpo, do mesmo jeito que o rosto dele passou por ela alguns anos antes. Dava seus primeiros sussurros e já sabia que estava pronta para sentir as carícias mais íntimas. Do mesmo jeito que ele fez em sua primeira vez.

Acontecia instintivamente. Sempre. A cada carícia íntima, recordava o que os dois fizeram anos, décadas atrás. Fazia tanto tempo, mas no coração era uma página que ela jamais queria virar em sua vida. E se desdobrava, tentando reconstituir tudo o que ele fez, todo o cuidado e a vontade de deixar que ambos os prazeres acontecessem em um tempo só.

Ela gemia, com os olhos fechados em sonho de menina diante das primeiras realidades de mulher. E vinham as realidades. Tudo o que imaginava estava prestes a se realizar, mais uma vez, naquela tarde de tédio, todo o prazer, como se fosse a primeira vez.

Deu um, dois gemidos, e começou a senti-lo cuidando de seu desejo mais íntimo. E rolava na cama, sentindo seu corpo colado ao dele. Instintivamente, dizia “se segura em mim”, do mesmo jeito que ele sussurrou antes de, com suas mãos fortes mas cuidadosas, se colocar por baixo dela.

Procurava sempre se lembrar da sensação que teve quando ele a deixou por cima, e só conseguia se sentir plena se, na hora de ficar de bruços na cama, sentisse uma certa vertigem. Vertigem que ele quebrou com um beijo e uma carícia na nuca. E que ela procurava recriar enquanto dava pulos e sussurros na cama.

Passava a língua em seus próprios lábios, nos mesmos carinhos que guardou da primeira vez. Deu seu primeiro sobressalto e novamente se deitou na cama. Apoiou sua cabeça em dois travesseiros e se preparou para sentir novamente ele.

Deu o primeiro, o segundo, o terceiro sobressalto. E se agarrou ao travesseiro, tapando os olhos para tornar a ver a imagem dele, sorrindo e deixando sua testa sobre a testa dela para dar seu último sobressalto de prazer junto a ela.

Ela ainda sentiu a mordida dele em sua orelha antes do último grito de prazer. Ainda ofegante, se escondeu debaixo das cobertas, ainda de olhos fechados, sorrindo e dizendo palavras de amor para ele.

Deu um suspiro mais fundo e abriu os olhos. A vista alcançou o relógio digital na cabeceira. Seu sorriso deu lugar à preocupação. Ainda tinha uma hora até o marido chegar. Precisava ajeitar a cama, tomar um banho e começar os afazeres domésticos. Hoje é dia de filé. Lembrou que precisava descongelar dois pedaços, a quantidade que ele costuma comer toda noite.

Por um momento, teve um sentimento de culpa, achou que estas constantes lembranças eram uma forma de trair o marido. Gostava dele, apesar do entusiasmo de antes não existir mais. Mas o sabor de lembrar sua primeira vez a cada tarde era um luxo ao qual dava para seu próprio prazer. Ao menos podia sentir-se um pouco mais bela a cada tarde passada na companhia de seu tédio.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Modelo, atriz e puta

"Certo. Agora levanta e tira a roupa".

A naturalidade com a qual ele ordenou foi mais espantosa para mim do que o pedido em si. Tanto tempo tentando uma chance como atriz e no momento em que consigo um teste, eu me vi receosa logo na primeira oportunidade. Olhei fundo para os olhos dele. Seu olhar continuava paciente, mesmo com a minha hesitação. Num gesto instintivo, comecei a me abraçar, encolhida na vergonha de uma insegurança.

Eu recordava todas as horas de estudos sobre métodos teatrais, sobre interpretação, o tanto de cursos, oficinas e até uma faculdade. Fiquei de cabeça baixa, com a boca fechada e o medo de demonstrar minha vontade de chorar. Percebi uma lágrima caída no meu rosto e fingi um espirro. Por fim, levantei o rosto. Olhei para os lados e, mesmo temendo que ele me negasse, fiz um pedido:

"Você... Você pode fechar a cortina da janela?".

Apesar do "claro" que ele respondeu, notei que ele estava impaciente. O sorriso com o qual ele tinha me atendido da vez que eu me inscrevi pro teste já começava a se fechar. Ele foi até a janela, fechou as cortinas e, calmamente, voltou até sua cadeira.

"Pronta?", sua pergunta deixou explícita a ansiedade dele.

Eu queria dizer que não estava, que jamais estaria, que tudo o que eu tinha sonhado em ser atriz era equívoco, deslumbre de garota que vê televisão demais. Mas o meu "sim" veio quase mecânico. Agora eu não podia mais voltar atrás.

Levantei minha blusa e desabotoei minha saia. Fiquei alguns segundos com as mãos escondendo a calcinha e o sutiã. Vi que ia chorar, mas consegui um artifício para parecer forte e obediente ao que ele pedia. Virei de costas para ele, transformando o enxugar da lágrima numa tentativa de ajeitar os meus cabelos. Voltei a olhá-lo. Ele estava sem a menor expressão no rosto. Não dizia nada. Olhei para os lados e quebrei o silêncio:

"É... Tá bom, né?".

Ele balançou a cabeça negativamente. Voltei a me encolher, também por causa do frio do ar condicionado. Ele disse:

"Eu sei que você consegue".

Ah, se eu soubesse que aquela frase tinha outra intenção além de me apoiar a "fazer tudo o que uma atriz precisa", talvez eu corresse daquele lugar somente com a roupa que eu estava no corpo. A frase dele me deu um impulso. Desabotoei o sutiã e, de costas, tirei minha calcinha.

Eu me olhei, olhei para ele e experimentei até um sorriso, tinha a sensação de que estava ultrapassando mais um limite como atriz. Ele se levantou, ficou diante de mim e disse, aos meus olhos:

"Eu sabia que você faria tudo pelo seu sonho. Você vai longe, muito longe, menina...".

Em seguida, ele envolveu seus braços no meu corpo. Eu me vi desprotegida, com minha nudez exposta a alguém com quem eu não tinha a menor intimidade. Mas me deixei levar por suas palavras de incentivo e por uma promessa de uma aprovação no teste quando aceitei passivamente que sua boca se aproximasse da minha.

Seu hálito num primeiro momento me passou repugnância, mas era uma repugnância que eu deveria sentir até o fim. Seus dentes mordiscando meu pescoço pareciam cacos de vidro, e ficavam ainda mais doloridos enquanto o bigode roçava em mim quando ele me beijava.

Seu suor adentrava no meu corpo, sua boca experimentava com voracidade os meus seios e tudo o que eu achava que um dia seria mostrado só se envolvesse desejo. Ele ficava cada vez mais ofegante, e ordenou que eu sentasse em seu colo.

Aquela dor de não me entregar a quem eu queria aos poucos foi amenizada pela certeza dos meus passos. Eu estava seguindo à risca tudo o que ele havia me pedido. Eu ia chegar aonde eu quisesse, só era o início de uma trajetória de muito talento. Já não incomodavam mais aqueles beijos agressivos, as mãos que me apertavam a ponto de doer. Eu gemia de êxtase por uma nova vida, e pulava pedindo mais, mais...

Até meu delírio se explodir em meio a um grito de prazer, do prazer que era a sensação de estar perto do meu sonho. Quase desfalecida, me olhei nua no sofá, com a certeza de um dever cumprido para meu direito de ser uma atriz.

Ainda ofegante, ele se levantou. Vestiu suas roupas, foi até a mesa e pediu algo para a secretária. Depois mandou que eu me vestisse, pois já tinha um outro compromisso. Ele colocou seus lábios em direção à minha boca, mas desviei meu rosto do seu beijo.

Eu me lembro de cada instante deste dia, como se fosse hoje. E relembro toda vez que estou aqui, sentada do lado deste telefone, esperando a ligação que ele me prometeu. Esperando qualquer ponta que seja na televisão. E a cada noite que vou para a minha cama, durmo com medo de que meu sonho de atriz tenha virado o pesadelo de eu me tornar mais uma pessoa a ser rotulada como "modelo, atriz e puta".