Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Fluminense, épico em 38 atos - A NELSON RODRIGUES



No dia 21 de dezembro de 1980, Nelson Rodrigues fechou seus olhos pela última vez. Olhos que enxergaram o amor pelo buraco da fechadura para que, através deles, todos nós pudéssemos ver a vida como ela é. Com todos os achaques da hipocrisia, das perversões e de um amor desmedido, capaz de todos . Porque aquele que nunca sonhou morrer com o ser amado, é porque nunca amou.

Os amores e as paixões renderam 17 peças, milhares de contos de A vida como ela é... e também chegaram ao universo do futebol. Nelson Rodrigues diagnosticou o "complexo de vira-latas" que o Brasil tinha desde a derrota da Seleção Brasileira para o Uruguai na Copa do Mundo de 1950, mas oito anos depois contemplou a vitória do escrete na Suécia com o grito "Abaixo à humildade!". E também transformou clubes, jogadores, seleções em personagens de grandes e homéricas batalhas.

As mais apaixonantes, certamente, foram envolvendo seu Fluminense. O único tricolor (pois os outros são times de três cores) que nasceu com a vocação da eternidade, e vence até mesmo a desconfiança dos idiotas da objetividade.

Nos 30 anos sem Nelson Rodrigues, este salafrário que vos escreve deixa de lado sua paixão clubística para reproduzir aqui uma homenagem ao campeão brasileiro de 2010, o Fluminense, em texto feito em homenagem ao molde rodrigueano de escrever.

Com esta postagem, o Diário de um salafrário encerra suas atividades no ano. E deseja a todos os leitores um Feliz Natal e um Ano Novo com muitas obras a serem escritas.

Abraços a todos,

Vinícius Faustini


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FLUMINENSE, ÉPICO EM 38 ATOS


O coração tricolor se multiplicou por exatos 40.905 presentes no Engenhão. Corações Valentes, que saltaram pela boca aos 17 minutos do segundo tempo. No momento em que Emerson fez sua soberania de Sheik e sua qualidade de atacante superarem o arqueiro do Guarani. Goleiro também de nome Emerson, mas agora mero coadjuvante de um gol que mais tarde seria louvado como decisivo.

O clube tantas vezes campeão chegou a mais uma conquista. Para muitos, sua segunda. Mas para a torcida do Fluminense, tão empenhada em registrar sua história, a terceira conquista nacional - além dos títulos de 1984 e de 2010, o clube pleiteia o reconhecimento do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, de 1970, como título brasileiro (pois era no mesmo formato do Campeonato Brasileiro disputado a partir de 1971).

O Fluminense fascinou pela sua disciplina. Disciplina imposta pelo técnico Muricy Ramalho, que deu a um elenco cheio de estrelas o ímpeto digno de uma equipe vencedora. O Fluminense que dominou, em todos os setores do campo, com um futebol seguro defensivamente, veloz em seus contra-ataques e ferino quando estava cara a cara com os goleiros adversários. Um Fluminense que teve amor ao tricolor, amor simbolizado por Darío Conca, o grande líder que não se deixou abater e esteve presente nas 38 rodadas do Campeonato Brasileiro.

Salve o querido pavilhão! Ricardo Berna, Mariano, Gum, Leandro Eusébio e Carlinhos; Diguinho, Valencia, Júlio César (Washington) e Conca; Emerson (Rodriguinho) e Fred (Fernando Bob). Pavilhão formado por outros tantos jogadores que vestiram sua camisa durante a competição - desde pratas-da-casa, como Fernando Henrique e Tartá, passando por medalhões como Belletti e Deco. A camisa com três cores que traduzem tradição. Que, mesmo com um elenco tão numeroso e cercado de talentos, encontrou a paz. Dela, surgiu a esperança, consolidada a cada vitória. A cada três pontos, que deixavam a equipe mais unida e forte.

Pelo esporte, várias pessoas tiraram e tirarão de seus armários a camisa tricolor. Ela, que tem o verde da esperança, numa espera que foi alcançada após um hiato de 26 anos entre a final contra o Vasco em 1984 e o jogo decisivo de 2010 contra o Guarani. Ela, que traz cor encarnada, com o sangue dado pelos jogadores que as arquibancadas definiram como "time de guerreiros". E que, depois do apito final de Carlos Eugênio Simon, passou a comemorar em harmonia, na harmonia de tom branco que define sua camisa como tricolor, a paz de chegar a um título justíssimo.

O sol do amanhã, como a luz de um refletor, brilhará com as três cores e os sorrisos de vários tricolores que começaram a comemorar no início da noite de domingo. Todos vibrando com a emoção de quem voltou a gritar "é campeão".

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Diário de um salafrário volta a ser atualizado em 12 de janeiro de 2011.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Desejo

Segurou os cabelos com as duas mãos, para colocar à mostra sua nuca. Sentiu um arrepio quando os lábios dele molharam seu pescoço, e com a ponta dos dedos tirou o sutiã para que as mãos dele acariciassem seus seios pequenos. Quando a respiração dele se apoiou em seu ombro, teve gana de roubar-lhe um beijo. Mas foi malvada, sedutora, e desviou o rosto quando ele ia corresponder.

Deitou-se, repousando o pé sobre o peito dele. Sorriu de maneira sensual, mas à medida que passava a ponta dos dedos por suas pernas e suas coxas, foi dominada por um sorriso vulgar. Estava pronta para se deixar dominar por ele. Com a ponta dos dedos, desenrolou o laço da calcinha e sussurrou um "vem".

Ignorou as mordidas que tiravam sangue de seus mamilos. Ignorou a força da mão dele apertando suas costas. Ignorou o nojo com o qual estava da língua dele passando por sua boca, por seu corpo e por seu sexo. Teve um suspiro de alívio quando ele caiu ofegante ao seu lado na cama. Mais uma vez conseguiu desviar o rosto de uma tentativa de beijo que vinha daquele hálito de cigarro barato.

Sentou-se na cama. Teve de conter sua raiva quando aquela mão áspera acariciou sua bunda. Com a voz de quem segurava o choro, perguntou, sem fitar os olhos dele: "agora está tudo certo?".

Ele, ainda ofegante, soltou um "sim". Ela levantou-se. Escondeu sua nudez numa toalha. De costas para o homem, disse que ia tomar um banho. Com os olhos marejados, pediu um "quero ficar sozinha". Entrou no box. Derramou gotas de alegria pelo fim de tanta mágoa. Ficara para trás a dívida. Por um momento, sentiu-se leve, alheia até mesmo ao próprio corpo. Só voltaria a precisar da sua beleza na próxima vez que o desejo pela cocaína fosse maior do que qualquer culpa.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Pormenores

Porta entreaberta. Ele deu passos lentos, movidos pelo desejo de fazer o mínimo de silêncio e pela ansiedade de que tudo não passasse de um susto. Num primeiro momento, não deu por falta de nenhum objeto de valor. Aos poucos, foi se tranquilizando do pânico de que ainda tivesse alguma pessoa dentro do apartamento.

Relaxou. Desfez-se das roupas cotidianas. Foi até a cozinha e abriu a porta da geladeira. As mãos ficaram trêmulas diante do que viu. Um pedaço de seu doce favorito. Do doce que ela fazia com tanto carinho. Não teve forças para fechar a porta.

Foi em direção ao banheiro. De olhos fechados, permitiu que a ducha tomasse conta de sua pele, e esboçou um sorriso. Que se esvaiu no momento em que seus olhos se abriram e viram calcinhas e sutiãs pendurados. Roupas íntimas que tanto fizeram parte do cotidiano do casal e que ele queria que fossem embora de sua memória.

Enxugou-se afoitamente. Quis refugiar-se em seu quarto. Ofegava debaixo dos lençóis. Apoiou a cabeça no travesseiro mas despertou logo na hora em que seus olhos entreabertos viram a camisola branca, o sutiã vermelho e a calcinha fio-dental de cor avermelhada tão associada à sensualidade dela.

Olhou para a cabeceira. Os dois sorrindo, foto tirada durante uma viagem na qual ficaram cada vez mais unidos. Levantou-se. Viu ao lado do aparelho de som, o primeiro disco que recebeu de presente - e que tantas vezes ouviram para dançar de rosto colado. Correu os olhos pelo quarto. A roupa dela deitada sobre a poltrona. A bolsa sobre a cômoda. Ela, ela, ela, ela.

Procurou recordar seus passos. O carro. O lugar ermo, no meio do nada. O silêncio, quebrado por dois estampidos. O grito. Ela, atônita, caindo desacordada no chão. Eram os fatos, eram os fatos. Nada havia sido imaginação.

Sim, havia se livrado da presença dela. Mas agora percebera que ainda estaria por muito tempo apegado aos pormenores da história vivida a dois. A profecia se concretizara. Por mais que ele se separasse dela, ainda não conseguiria se desatar de uma história tão intensa.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Microconto do salafrário

Há algum tempo, no Twitter surgiu a ideia de MICROCONTOS. O desafio para o escritor era contar uma história em apenas 140 caracteres. Este salafrário que vos escreve decidiu se desafiar. Segue o resultado!

Abraços a todos,

Vinícius Faustini


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Emudeceu. O ar de satisfação dele desmentia o "não é nada do que você tá pensando". Dois tiros. Ele agonizava. O coração dela também.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Diz que me ama

Após uma semana de silêncio, segue um atrevimento poético inédito. Continuo na minha busca incessante de enxergar a alma feminino. Sei que é uma trajetória incerta, mas não custa tentar. Elas merecem.

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Diz que me ama
É o que meu coração clama
E dia após dia se inflama
Fico ansiosa, ardorosa por sua chama

Diz que me ama
E eu me derreto num sussurro
Toda minha insegurança eu esmurro
Fico acarinhada pelo amor que você proclama

Diz que me ama
Assim, o meu coração dispara
Pula, até que em seu peito se ampara
E se aquieta, aconchegado em sua cama

Peço “diz que me ama”
Você responde que gosta de outra
Em uma atitude tão neutra
Que dói meu amor-próprio de dama

Imploro “diz que me ama”
Você vira as costas sem me ouvir
Meus olhos te acompanham sair
Indiferente ao apelo que meu afeto declama

Diz que me ama
E foi embora na primeira oportunidade
De recordação, deixou a saudade
Da flor do bem-me-quer, não sobrou nenhuma rama

Diz que me ama
É meu pedido de boa-noite
Mas seu silêncio dói feito açoite
Anoiteço, dolorosa, em meu choro de melodrama

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Mais uma do salafrário



A Litteris Editora comunicou, por carta, que o poema intitulado MALAS PRONTAS foi selecionado para a antologia Jogando com as palavras, toda feita com obras de ficção que falam sobre futebol. Em breve, mais um registro em livro deste salafrário que vos escreve.

Obrigado a vocês, que fazem com que o Diário de um salafrário sempre esteja em atividade.

Vinícius Faustini

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Sensacionalismo

Ela, a putinha do reality show
Ele, o centroavante, o autor daquele gol
Sorrisos para flashes, o casal apaixonado
De suas aparições em público, tudo fotografado e filmado

Primeiro encontro, beijos, carícias e quarto de motel
Mais uns meses, entrevista coletiva pra anunciar casamento
Jornais, TV, Internet, tanto para gravar aquele momento
Fotos em revistas de fofoca, direto de Paris, terra da lua-de-mel

Volta de férias, propostas de times da Europa
Contrato milionário e ela confirma que vai posar pra revista masculina
Ele ainda diz que quer jogar uma Copa
Ela faz caras, bocas, e sua nudez alucina

Convite pra fazer novela
Brecha para jogar na Arábia
Flagra! Ele agarrando uma garota tão bela
E a outra, em entrevista, reclama "como fui cair na sua lábia?"

Ele não se adapta ao futebol estrangeiro
A personagem dela morre depois de tantas atuações risíveis
Os dois se reencontram e já trocam farpas por causa de dinheiro
E a mídia aproveita tantos espetáculos sofríveis

Primeiro, discussões ásperas, ouvidas pelos vizinhos
Pratos e vasos quebrados, em crises que se acabam na cama
Já de nada adianta, está no jornal, eles sofrem o preço da fama
"O povo fala", opina e os dois já não estão mais sozinhos

Resta o novo soneto da separação
Cada um pro seu lado, cada um chorando suas mágoas num canal
E eles permancem sedentos pela apelação
Faz parte, uma coisa tão normal

E a cada ano os dois sobrevivem
Ele vai jogar num time de menor expressão pra não cair no ostracismo
Ela se despe por um cachê barato, mas os sonhos do "ex-casal" só revivem
Se chegarem aos holofotes através de uma boa dose de sensacionalismo

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Pelé, 70




Passaram 70 anos, e do despertar de Três Corações

Entrou em campo aquele menino capaz de encantar multidões

Literatura nenhuma descreveu até hoje tantos gols bonitos

És sonho, és gol, és vitória, és glória, és soco no ar, és quatro letras e tantos tratos à bola que jamais em poemas serão reescritos


MILÉSIMO GOL DE PELÉ - Vasco 1 x 2 Santos, 1969

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Coxia

A imprensa vem anunciando nas últimas semanas que a TV Globo está produzindo um seriado inteiro em homenagem a Chico Buarque. Serão episódios independentes, cada um em homenagem a uma canção de sua maravilhosa obra. Este humilde salafrário resolveu se arriscar neste desafio, mas através das letras.

A canção que inspirou o conto que segue aparece ao final, numa gravação do You Tube. Trata-se de uma belíssima canção que Chico Buarque fez especialmente para Cauby Peixoto.

Fiquem à vontade para comentar.

Vinícius Faustini


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COXIA

A Chico Buarque

Sob o olhar de espanto da bilheteira, escolheu o lugar mais distante do palco. Enquanto passava o dedo pelo painel da plateia, não sabia se sua atitude era para não ser visto ou por receio de que seus olhos enchessem definitivamente de lágrimas ao ver a imagem tão doce dela cantando. Sentou no lugar marcado e chamou a garçonete para pedir um suco de laranja. Num instante, decidiu ficar sóbrio durante toda aquela apresentação.

Tinha sido o primeiro a chegar. Assim como fazia em todos os shows dela. Gostava de ouvir a casa de espetáculos sendo tomada por burbúrios de espectadores. Via cada vez mais pessoas chegando, rostos sorridentes, e à medida que se aproximava da hora do show, mais as conversas iam girando em torno dela. Do talento dela, da voz dela, do repertório dela, do quanto ela é gostosa.

Olhou para o relógio. Ela estava atrasada por 10 minutos. Justo ela, que tinha pavor de atrasos. Ele esboçou um sorriso, quando, numa ilusão auditiva, escutou um "Essas pessoas pagaram ingresso pra ver na hora marcada. Vão ficar sentidas se eu demorar muito para chegar". Ainda podia sentir o sabor de gim que vinha da boca de sua estrela, minutos antes de conversar com ela no camarim. Invariavelmente, ele passava para lá e dizia "casa lotada". Mas naquela noite ele via lugares desocupados.

As luzes se apagaram. Vieram as primeiras notas, e triunfalmente, ela saiu da coxia, desfilando enquanto cantava um de seus sucessos mais retumbantes. Recebeu os primeiros e efusivos aplausos. Agradeceu à presença de todos, e ao final soltou um "vocês nunca me abandonam". Ele sentiu-se constrangido. Talvez alguém o tivesse reconhecido por baixo do disfarce e contado para ela de sua presença.

A voz dela continuava belíssima, só que ele percebeu que em meio a tanta afinação, ouvia um tom desafinado pela amargura. De cima, não conseguia ver direito o rosto dela. A cantora ficava o tempo todo embaixo da luz, e ficavam evidenciados os muitos brilhos que tinham em seu vestido.

Não resistiu. Tinha de vê-la mais uma vez. A cada música, ficava mais intensa a saudade de sua voz. E ele cantava, cantava, e como era cruel cantar assim depois de tanto tempo. Desde que saíra de casa, evitava escutar seus discos, mudava de estação quando anunciavam o nome dela. Chegava a mudar de calçada quando aparecia um cartaz no qual ela aparecesse.

A última imagem era a mais cruel. O rosto dela, com os lábios ensanguentados. Dos olhos, intensos de paixão e vorazes de desejo, restara um olhar ferino de ódio, de um ódio entristecido. Da voz, que ele achava afinada até mesmo quando ela sussurrava carícias sensuais, viera uma desafinação amarga, entre soluços de choro. E o último verso tinha sido um "você nunca mais encosta a mão em mim".

Não teve pudores. Retirou o disfarce. Desceu as escadas. Atravessou entre as mesas, e chegou a uma distância que pudesse vê-la melhor sem que fosse visto. Começava aquela música. Sim, talvez fosse o maior sucesso dela, mas não achava que ela ainda incluísse a canção no repertório. A única parceria deles. O único momento no qual ele se atrevera a fazer uma letra.

Estático. De pé, próximo ao bar, ouviu-a com uma ternura ainda maior do que quando eram namorados. Parecia que finalmente a conhecia. O intimismo com o qual ela cantou, carregada de emoção, quase num grito de resistência. De perfil, ela soltou a voz no último verso, e desabou no palco.

Aos poucos, foi se recompondo, e deixou-se dominar pelo sorriso de satisfação diante dos aplausos febris. Experimentou um certo carinho em seu ego, quando viu nos rostos daqueles bêbados que eles estavam a se rasgar por ela.

Mas ao virar-se para o lado do bar, os olhos dela se cruzaram. As luzes da plateia já estavam acesa, e ele teve certeza de que foi visto. O semblante dela, cercado da alegria que costumeiramente acontecia entre os dois, se fechou subitamente num susto. Ele, de pé, repentinamente fechou o sorriso e ficou constrangido de continuar com os aplausos. Tentou recuperar-se, num riso amarelo e em palmas insossas.

Ela esboçou novo sorriso e saiu, a passos largos em direção à coxia. Vieram os pedidos de "bis". Mas a casa de shows logo colocou uma gravação na qual agradecia à presença de todos e anunciava os espetáculos dos outros dias.

Ele ficou assustado. Era a primeira vez que ela não voltava ao palco para o bis. Quis sair da casa, mas foi abordado por um dos funcionários, que o disse para ir ao caixa pagar a conta.

Dominado pela angústia, viu que era inútil achar que a fila se dissiparia logo. Lamentou ter como última lembrança do maravilhoso espetáculo uma expressão fechada e a imagem de uma fuga desesperada. E vindo de um rosto que ele tanto gostava de acariciar.

Com a conta paga, saiu e foi em direção ao seu carro. No meio do caminho, notou que estava fazendo o mesmo trajeto ao qual era guiado pela solidão. Ia parar num lugar cercado de prostitutas, e entre elas escolheria a mais parecida com sua cantora.

Sabia que o repertório daquela companhia descartável seria muito inferior. De sua voz, viriam sussurros fingidos, mecânicos, prontos para fazê-lo vaidoso sentir-se o maior, e que possuía não o corpo da moça, mas o corpo que sabia que nunca mais ficaria ao seu alcance. Num instinto, parou o carro próximo ao meio-fio. E, com a cabeça no vidro do carro, chorou, chorou, até ficar com dó de si.



BASTIDORES, de Chico Buarque

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Bola na rede

Alguns anos atrás, a seção Prosa & Verso, do jornal O Globo, abriu um concurso com o tema futebol. Este que vos escreve mandou um conto, que foi cortado da lista final, e ficou esquecido nos arquivos.

Quatro anos depois, ao pensar em como registrar uma homenagem do Diário de um salafrário ao Dia das Crianças, veio a lembrança deste texto, que fala sobre uma amizade de infância, tendo como pano de fundo o esporte mais popular do país.

Com algumas adaptações (coisa de escritor perfeccionista), incluindo a mudança de título, segue o texto. Fiquem à vontade pra comentar.

Grato,

Vinícius Faustini


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O nascimento de uma grande amizade apareceu na mesma época em que veio a paixão pelo futebol. Antônio tinha oito anos e Luciano seis quando os dois, no mesmo bar, viram seus pais e uma multidão com a camisa cruzmaltina vibrar depois que a bomba de Cocada morreu no fundo da rede de Zé Carlos, aos 44 do segundo tempo.

O 1 a 0 do Vasco em cima do Flamengo causou nos garotos uma sensação de euforia que parecia não acabar nunca. Por um momento, os vascaínos Antônio e Luciano podiam sorrir e esquecer da penúria em que viviam. Mais do que nunca, o grito de “é campeão” trazia um alento pra duas crianças que não sabiam o que era alegria.

No dia seguinte, os dois foram para a escola com a camisa do Vasco, e passaram toda a hora do recreio no campinho improvisado. Tentavam repetir o lance do gol de Cocada, Antônio chutando e Luciano no gol.

Os problemas de casa tomaram conta das conversas dos garotos. Mais do que amigos, eram confidentes, com histórias que coincidiam, como a infância pobre e a falta de suas mães, ambas mortas no parto. Já pareciam aceitar a situação, quando Luciano sugeriu ao amigo:

" – Toninho, por que é que a gente não vai jogar futebol?"

Diante do espanto de Antônio, ele continuou:

" – É! Já pensou? Você fazendo igual o Cocada, que acabou de entrar e deu título pro Vasco?" – e improvisou uma narração – "e lá vai Geovani, passa por Edinho, estica pra Bismarck, ele passa pra Toninho, Toninho apontou e gol!"

Toda a rua ouviu o grito de gol e a comemoração dos dois garotos. Decidiram. Convenceram os pais a levá-los na escolinha do Vasco, e começaram a jogar. Por ter uma altura acima da média, Luciano foi para o gol.

Antônio, agora Toninho, mostrou habilidade com os pés, mas era muito franzino. Além disso, tinham outros jogadores com o mesmo talento e sem necessidade de tratamento físico. Acabou dispensado. Ainda tentou vaga no Botafogo, Fluminense, e acabou no Madureira.

Prestes a ganhar uma chance nos profissionais do Vasco, Luciano recebeu uma proposta irrecusável: jogar num time do Japão, com um salário bom o suficiente para sustentar o pai no Brasil. Ele e Toninho choraram muito na despedida, mas Luciano avisou:

" – Um dia eu volto. Mas de lá do Japão dou um jeito de mandar uma grana pra você e seu pai".

Toninho agradeceu, esboçou um sorriso, mas estava muito triste por imaginar a falta do amigo para apóiá-lo num recomeço em qualquer clube. Até o momento não conseguia se firmar em nenhum time. Seu melhor momento tinha sido no Bangu, quando fez um belo gol de falta num empate contra o Botafogo.

Oito anos depois, Luciano voltou ao Brasil. O período no futebol japonês foi proveitoso, mas a vontade de retornar estava cada vez mais forte. Com 28 anos, acertou sua volta para o Vasco, clube onde tudo começou – sua carreira no futebol e sua amizade com Toninho.

Toninho não acreditou quando ouviu o amigo dizer:

" – Estou de volta. Já vi na tabela que a gente vai se enfrentar na última rodada. Garante o seu que eu garanto o meu".

A tabela marcava para a última rodada da Taça Rio a partida do Vasco de Luciano contra o Olaria de Toninho. A ideia do goleiro era que os dois times ficassem bem colocados, e o jogo fosse um reencontro dentro das quatro linhas.

No entanto, o campeonato não transcorreu tão bem assim. Com alguns tropeços contra times de menor expressão, o Vasco chegou à última rodada tendo de vencer o Olaria para ir à final da Taça Rio. Já o Olaria estava numa grande crise, disputando ponto a ponto com a Portuguesa da Ilha do Governador para não ser rebaixado.

Os dois entraram em campo divididos. Sabiam que precisavam honrar a camisa de seus respectivos times, como profissionais do futebol. No entanto, uma derrota poderia ser muito dolorosa para qualquer um dos lados.

A partida começou, e o primeiro tempo trouxe poucas chances de gol. Luciano não teve trabalho nas poucas vezes em que foi exigido, e Toninho mal conseguiu tocar na bola com um jogo tão truncado.

No intervalo, Luciano descia para o vestiário quando ouviu, do outro lado, a bronca do técnico do Olaria:

" – Com esse timeco a gente não vai chegar a lugar nenhum. Escuta bem, se não der pra fazer um gol no início e ganhar, já era. Todo mundo na rua. Inclusive eu!"

Antes do reinício do jogo, Luciano e Toninho se viram pela primeira vez desde o início da partida. Apesar da insegurança com sua situação no Olaria, Toninho tentou sorrir quando viu o amigo de infância ostentando a camisa 1 do Vasco. Luciano recordou os problemas que Antônio teve desde o começo da carreira, e se sentiu bem ao olhar para ele, por ver que agora eram colegas de profissão. Atrás do sonho de uma vida melhor, de uma felicidade que buscavam desde meninos.

Luciano correu em silêncio até o gol. Toninho foi para o centro do meio-de-campo, à espera do apito para começar o segundo tempo. Nenhum dos dois sabia exatamente o que estava sentindo.

Com poucos minutos da etapa final, um cabeça-de-área do Olaria roubou a bola no centro do campo e jogou para frente. A bola sobrou para Toninho na intermediária, e pegou a zaga vascaína desprotegida.

Sem hesitar, Toninho direcionou a bola para o gol. O coração pulsava, esperando o resultado do lance. Mas o chute saiu mascado, seria fácil a defesa do goleiro. Luciano ficou atento. Não à bola, mas à frustração de Toninho. Sabia que era a melhor chance do jogo, e que também estava em jogo o futuro do amigo como jogador.

O tempo entre o chute de Toninho e a chegada da bola a Luciano parecia uma eternidade. Por um momento, os dois pensaram nas suas trajetórias. Na decisão de jogar futebol, nos motivos que fizeram com que eles fossem para esse caminho. No sucesso de um, nas frustrações do outro.

O estádio agora era o de São Januário, mas a recordação do gol de Cocada no Maracanã tomava conta daqueles meninos em campo. A bola chegou até Luciano. O goleiro, lentamente, se agachou para pegá-la, mas ela escorreu entre seus dedos e passou por suas pernas até, lentamente, atravessar a linha do gol.

Os outros jogadores comemoraram como se fosse um título. Mas, atônito, Toninho não comemorou o gol. Caminhou em silêncio e foi esperar a saída de meio-de-campo. Luciano pediu para ser substituído. Reclamou que tinha deslocado um dos dedos.

Em vez de ir embora, passou o resto do jogo no vestiário, com um radinho de pilha no ouvido, esperando o final. Confirmada a vitória do Olaria por 1 a 0, dirigiu-se para o vestiário do time adversário.

Viu Toninho retirando os meiões, e estendeu a camisa 1 para ele. O amigo espantou-se com a presença dele. Ia balbuciar alguma coisa, mas foi interrompido por Luciano:

" - Golaço, hein?".

Não, não tinha sido um golaço, e Luciano sabia bem disso. Se não soubesse, saberia através das resenhas esportivas de rádio e televisão, além das reportagens que circulariam nos jornais do dia seguinte, que tinha cometido uma falha clamorosa, falha que custara a eliminação do Vasco na Taça Rio. Mas o que importava naquele momento era a certeza de que não tinha falhado com o amigo, quando ele mais precisara.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Todo sentimento

"Foi bom pra você?".

Ele mesmo sabia que não tinha sido, mas não custava nada tentar demonstrar compaixão. Antes de dormir, ainda foi obrigado a ver a crueza do olhar dela, tão feroz em meio àquele rosto fechado pela amargura. Ele levantou-se e foi ao banheiro, lamentando pela má ideia que teve de compartilhar um desejo sexual com quem não merecia.

Olhou-se no espelho. Teve raiva por ver que aceitava que o casamento acabava com o resto de sua vida. Suspirou, e refletiu que já estava com idade avançada para ficar sozinho. E provavelmente ela pensava o mesmo. Por isto que ela o tolerava nas poucas vezes em que era dominado por uma volúpia tão incontrolável a ponto de precisar de outra pessoa para dividir sua solidão.

Escutou o som dela, que já se entregava ao sono e estava alheia a qualquer prazer que acontecera nos instantes anteriores. Sim, estava acostumado a tanta indiferença vinda do próprio quarto. Mas pela primeira vez deixou-se levar por uma amargura de um amor que deteriorou-se pouco a pouco.

Ligou a ducha de água quente. Fechou os olhos e aos poucos foi desenhando as feições da mulher que amara intensamente. A memória turvava, a vista penava para encontrar, em meio a recentes tristezas, os longínquos momentos cercados de alegria e de êxtase. Nos quais não era necessário perguntar se havia sido bom para ela, pois ambos sabiam a ternura que envolvia cada sentimento.

Das feições, passou a desenhar os traços do corpo no qual ele podia se esquentar a cada noite. E a cada gota, ele tentava reviver a própria quentura. Reconstituía aquelas carícias. O carinho dos lábios a rodear pela orelha, pelo rosto e pelos lábios dela. Seus dedos longos se perdendo nas costas, cravando a unha com tanta voracidade que ambos sentiam sem qualquer pudor.

Aquilo tudo tão vivo, tão presente, tão real, tão intenso, cada vez mais intenso. E ele mergulhava, transbordando uma sensualidade guardada durante anos. Ansiava por distinguir todos os cheiros dos momentos vividos naquela quentura. Mas não esboçou nenhum receio quando o cheiro de gás começou a se espalhar pelo banheiro.

Estava esparramado em suas lembranças, tão ternas, tão densas, e sua alma se aproveitava de todas as vontades que estavam ao seu alcance. Quando se permitiu ficar extasiado, foi completamente sufocado pelo gás do aquecedor. Mas levou consigo a certeza de que em seus últimos minutos de vida compensara os tantos anos nos quais morrera atado à infelicidade de um casamento.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Noite em claro

Mais um atrevimento poético. Este que vos escreve espera não estar numa mesmice...

*****

"Boa noite"
E dói o silêncio como resposta
Na amargura insone que tanto desgosta
E que permite que ela se debilite

Os olhos se fecham e a tristeza se escancara
Os ouvidos procuram suspiros de amor e de tara
Os lábios se molham na espera que vira lágrimas
Sussurros de amor para um silêncio sem rimas

O que sentia não era mera vontade
O que feria era ter criado aquela saudade
Por sua insegurança, por sua ingenuidade
Mentiu para si mesma e sofreu com a nova verdade

A razão dela permitira apenas sexo
Ele respirava um amor cada vez mais latente
Quando ele se exilou, na quarentena de um amor doente
Ela enxergou-se num universo sem nexo

Na noite vazia, esconde-se entre os lençóis
Foge em vão da solidão, companheira tão atroz
Que a seduziu, propondo um coração com independência
Mas omitiu as feridas ocasionadas pela carência

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Guimbas de cigarro

Entre uma tragada e outra no cigarro, olhava para o corpo dela adormecido e repetia para si: "Ela não significa nada para mim". Esquivou sua cabeça até fazer com que seus olhos pudessem enxergar o sorriso dela, agora mergulhados naquele misto de êxtase e satisfação que os dois tinham sentido a dois por uma noite inteira na qual, a cada minuto, ele desejara um pouco mais que o dia não clareasse.

Mudou de ideia por um instante, quando a fresta da cortina fez escapar um pouco da luz do raiar do dia. Brilhava a pureza dos cabelos dela, loiros e molhados do banho que tiveram a dois. Forçava a vista para novamente vê-la por inteira, ainda com o corpo banhado por suas mãos intensas, sedentas, em delírio.

Repousou o cigarro sobre o cinzeiro e vestiu-se em silêncio. Anos de prática tornaram esta parte uma das mais fáceis. Mas seu coração partia por ter apenas de observá-la assim, a uma distância considerável, e agora lhe dava náusea sentir o cheiro de álcool que criara para aquele ambiente outrora perfumado por tanta sensualidade.

Foi traído por um raro momento de compaixão, e quando teve certeza de que ela ainda estava dormindo, aproximou-se e cheirou o pescoço dela. Sorriu num soluço de choro por notar que seu coração batia com mais intensidade à medida que o perfume dela dominava suas narinas.

Deu passos curtos, de costas para a porta. De relance, olhou para o cinzeiro e certificou-se de que o cigarro estava apagado. A cada passo, balbuciava um "eu te amo". Dizia e repetia "eu te amo, eu te amo", porque sabia que nunca mais pronunciaria aquela frase com sinceridade novamente.

Quando conformou-se em não mais ter a visão dela por perto, deixou tudo em ordem no apartamento. Deixou sobre a mesa da sala todo o dinheiro que planejara roubar dela e a carta na qual confessava também a maneira como pretendia matá-la.

Bateu a porta do apartamento com raiva, e saiu correndo pelas escadas do prédio. Fugia. Fugia dela. Fugia da vergonha de ter se apaixonado pela vítima de seu golpe. E depois de amá-la de verdade, tentava acostumar novamente seu coração à frieza de caçar vítimas.

O perfume do amor dela já não estaria a mais ao alcance do seu querer. A ele, sobrariam apenas as cinzas de falsos amores, queimados com guimbas de cigarro, sempre após noites intensas de erotismo. De um erotismo mercenário, do qual sabia que seria refém pelo resto de sua vida.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Madrugada adentro

Caiu sobre ele, deixando escapar um último e leve gemido de prazer. Ela estave exausta, mas não queria se deixar vencer pelo cansaço. Permanecia, teimosa, lutando contra os próprios olhos para que o sono não tomasse seu corpo e acabasse por fazer as horas passarem à revelia do que desejava para sua madrugada.

Notou que os olhos dele também ameaçavam se fechar, mas em vez de desespero, deu um risinho doce, de menina travessa. Pousou suas mãos sobre o peito dele e foi deslizando minuciosamente cada parte que desejava. Começou a beijar seu pescoço e aos poucos associava seus beijos à vontade com a qual tateava o corpo do seu homem.

Viu o olhar dele se entreabrir e roubou-lhe um beijo selvagem. Pôde sentir entre suas mãos o desejo dominá-lo de acordo com o que ela permitia, e isto a fazia oscilar a intensidade com a qual acariciava o êxtase dele. Por um momento não sentia-se apenas dele, sentia que ele era posse dela, na confirmação do prazer a dois que sempre procurara ter com um homem que amasse.

Levantou um pouco seu corpo para que os seios estivessem à altura dos lábios dele. Por um momento, deixou-se ser traída por sua própria vontade e arriscou até um leve acariciar em seus próprios pelos pubianos. Mas seu breve devaneio foi tomado pelos sussurros mais intensos que ele dizia ao seu ouvido, no ápice de um delírio seguido da imagem dele, arfando, sorrindo.

Repousou a cabeça sobre o peito dele. Estava dominada pela paz de sentir-se uma mulher que sabia controlar os sentimentos de seu homem, e nem percebeu quando seus olhos caíram adormecidos. Acordou com o sol já alto, e viu-se nua, solitária naquela cama. Não pôde fazer nada para que ele continuasse junto dela. Ela levantou-se e começou aquele mesmo ritual. O de se arrumar para passar o dia como uma figura nula, à espera do amor que chegava na sua mente através de intensos desejos insones.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Amor vendado

Mais um atrevimento poético de toques sensuais. Este salafrário não toma jeito mesmo...

*****

O primeiro olhar veio num "sem querer"
Chorou desculpas, mas começava a perceber
Enxergara desejo onde não devia
Despertara amor de uma forma que não podia

Passou os dias trancada em seu silêncio
Passou as tardes calando seu sacrifício
Passou as noites em claro com suas querências
Para, na madrugada, gemer baixinho suas confidências

Seguiu em angústia, atrás de uma reação
Sentindo nos cabelos a carícia de seu sonho
Até que pudesse esquecer o quanto era medonho
E estivesse, enfim, disposta a uma ação

Não teve medo da dor que traria a ele aquela pancada
Encontrou forças para carregá-lo até seu carro
No caminho, não se achou mais digna de escarro
Achava-se, finalmente, digna de ser amada

Instigada pelos olhos dele estarem vendados
Excitava-se por vê-lo com os braços amarrados
Estava disposta a ser uma pervertida
Tudo para cicatrizar a dor daquela ferida

Em resposta à raiva dele, sussurrou um "você é só meu"
Ao alcance do tato dele, deixou toda sua nudez
Transmitia a ele o cheiro da sua grande insenstatez
Num amor insaciável, seu desejo tremeu

As mãos atadas entrelaçaram em suas costas
A cabeça agora se perdia entre seus seios
Ele já não mais exigia respostas
A dois, eram agora apenas devaneios

Num sobressalto, pensou estar no céu
E contemplava seu homem através dos espelhos do motel
De tanto sonhar, mergulhara na realidade
Agora doiría a verdade, mas sabia que o amor requer lealdade

Dos olhos dele, retirou a venda
Sabia que a esperava uma reação horrenda
E que dos minutos de tanta ternura
Viria uma eternidade de amargura

Ainda assim, sentiria seu corpo quente
Por mais que ele a julgasse doente
No sexo dela, estaria um amor tão leve e tão ofegante
Por mais que seu filho por uma noite tenha sido seu amante

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Mãos de sangue

Três balas. Duas delas no coração. A primeira fulminando o amor que ela dilacerou em troca de um prazer barato, quem sabe achado na esquina. A segunda é a extrema-unção, sacramento do meu calvário diante desta doença que prostituiu nossa história, que transformou em duas a nossa vida.

E o tiro de misericórdia? Atira na nuca! A nuca, local onde ela se insinuava toda arrepiada ao sentir a carícia das minhas mãos e a lascívia da minha boca, a beijá-la, a mordê-la. Gasta as três balas. Mesmo que ela se vá logo ao sofrer o primeiro tiro.

Não, não, no rosto não. Sua beleza jovem deve ficar imóvel, tão pura quanto na foto que carrego aqui na minha carteira. Com a imagem bem distante da cena na qual vi sua boca vulgarizada, violada pelos lábios de outro. Não quero ter como última lembrança seus cabelos despenteados pelas mãos de alguém que não a soube tocar, que marcou seu corpo apenas com manchas de uma voracidade travestida de paixão.

Eu a amo. Muito. Um amor que não sabe se despedir. Um amor incapaz de ser asfixiado por minhas próprias mãos. Por isto é que eu vim aqui. Um serviço como este deve ser realizado por mãos sangradas como as suas. Mãos que carregam anos de vida amarga, na qual um momento de tristeza a mais não fará diferença.

Pouco me importa se seus olhos debocham de mim e me acusam de covardia. Não é este o sentimento que ata minha ira neste momento. O que me toma é a incapacidade de dar qualquer desprazer a ela. Mesmo que ela tenha sussurrado palavras de carinho no ouvido de outro.

O dinheiro está de acordo com o combinado. Eu lhe agradeço, você estipulou uma quantia a algo que pra mim não tem preço. Sei que o remorso um dia pode me cobrar pelo que estou fazendo. Não vou conseguir amenizar com arrependimento o momento de rancor no qual me deixei ser levado pela maré de tamanha atrocidade.

Mas, de qualquer forma, minhas mãos estarão limpas. Inertes, amarradas por tanto amor que não se esfria a ponto de sangrar a culpada por minhas dores. Não a faça sofrer muito. Se possível, faça com que o rosto dela sorria. Dê a ela um lampejo de alegria, mesmo que asfixiada por mãos de sangue. Mãos do meu sangue, que ardeu no amor dela e que escorreu em tristezas quando foi cortado pela luxúria praticada com outro.

Que ela descanse em paz. E que eu permaneça em guerra, remoendo minha culpa, mas que tudo passe quando eu voltar a olhar a imagem dela, imortalizada na foto que carrego em minha carteira.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Intimações

Modesto atrevimento poético. E este salafrário se arrisca até do ponto de vista feminino...

*****

Eu me apego à sua carícia
Você se esconde num bocejo
Fico ansiosa, cheia de malícia
Pra que nosso amor não vire lampejo

Durmo, ansiosa por sua volta
Pois quero ao acordar sentir a sua escolta
Você acorda e logo vai pra sua rotina
E me deixa num desamor que me amofina

Dialogo com seu retrato
Pergunto “faço diferença pra você?”
O silêncio dele parece melhor trato
Do que com sua presença conviver

Lembro nossos melhores momentos
Mas a cada recordação fico por temer
Nosso caso se cerca de tormentos
E de um amor que só vem entristecer

Não posso te pedir pra mudar
Não devia tanto me amarrar
Mas se seu silêncio continuar
Meu “eu te amo” não mais vai durar

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Quatro paredes

"Você sente minha falta?".

Queria dizer ao alcance dos olhos dele. Mas seus olhos só alcançavam o próprio reflexo do espelho. Aquilo já se transformara num ritual, em mais um passo no qual se esmerava para ter alguma coragem de procurá-lo, de revê-lo, de fazer um acaso acontecer na vida dos dois. Apesar de ainda ter o número de telefone dele, não cogitava ligar para ele. Seu orgulho de mulher agora era ralo, mas ainda encontrava alguns traços de dignidade, mesmo através da certeza de que não tinha nenhuma desculpa para ouvir a voz dele.

Olhou o calendário, no qual tinha marcado com um X cada dia que se passara depois da despedida. Percebeu que já fazia um mês que não saía de casa. Sentira-se solitária no momento em que ele lhe deu um beijo no rosto pela última vez. Não achava motivos para compartilhar seu desalento com rostos conhecidos e desconhecidos que encontraria no caminho das ruas.

Todas as noites tomava banhos e se perfumava com minúcia, com afeto de seu próprio corpo, pois sabia que era o maior presente que poderia dar a ele. E revirava-se na cama, dialogando seus sussurros com os murmúrios que ela ainda recordava que ele costumava dizer ao pé de seu ouvido. E aquilo tudo era tão bom, tão belo, tão intenso, que aos poucos ela foi abandonando a ideia de se banhar.

Era tão doce o odor que permanecia dos seus momentos de amor, era tamanho o prazer a entorpecer seu olfato, a acariciar sua pele, que misturá-lo à água, ao sabonete, aos perfumes, soava como uma coisa profana. Assim como era profana a ideia de ver outros rostos.

Mas ao olhar o calendário, ao fazer um X pela trigésima vez num número da folhinha, foi traída. Traída por um sentimento de dúvida que se abateu de maneira lancinante em seu peito. Pela primeira vez, quis saber definitivamente a resposta àquela pergunta que ela dizia somente aos seus olhos. E aquela vontade não permitiria nenhum anoitecer.

O relógio marcava dez e meia. Ela sabia que o horário de almoço dele era uma da tarde. Abriu o armário, retirou os vestidos e escolheu um sensual levemente fechado. Separou calcinha e sutiã mais sensuais, e riu, alegre da própria esperança.

Esquentou a água. Mergulhou na banheira e deixou-se levar pelo frescor da pele que não sentia nenhum molhar há dias. Perfumou-se da cabeça aos pés. Maquiou-se levemente, só para esconder as olheiras de um mês de ausência. Vestiu-se. Renovada. Outra mulher agora movida pela intensa esperança de um "sim" dos lábios que sentira saudade por um mês.

Desceu o elevador, saiu do prédio. Após um primeiro susto com os brilhos e as situações da rua, coisas com as quais perdera o costume de conviver, pegou um táxi. Deu o endereço ao motorista, e passou o trajeto inteiro evitando roer as unhas com a espera.

Chegou ao prédio do serviço dele. Esperou no térreo. Respirou fundo quando o viu saindo sozinho do elevador. Parou em frente a ele. Disse um "oi" que ele respondeu com um balançar afirmativo na cabeça. E, finalmente, fez a pergunta da qual não tivera resposta durante um mês:

"Você sente minha falta?".

Ele ficou estático por alguns segundos. Os olhos de esperança dela foram se esvaindo nos instantes de hesitação que ele teve. Ele desviou o olhar, esboçou dizer alguma coisa. Voltaram a cruzar os olhos e, após respirar fundo, ele disse:

"Eu preciso ir".

Com os ombros curvados, ela ainda o viu sair em direção à rua, levando embora uma pergunta que não foi digna nem de uma resposta. Se ela não cogitara uma resposta negativa, jamais imaginaria que seu amor era tão descartável ao ponto de merecer uma desconversa.

Olhou ao seu redor. Sentiu a maquiagem se esvair com o suor. Teve medo de que aparecessem suas olheiras ao alcance de todos. Apertou o passo. Pegou um táxi e só pensava na hora de voltar para casa.

Entrou no prédio, subiu no elevador, passou a chave e trancou-se no apartamento. Deixava a angústia e a frustração do lado de fora. Agora podia suspirar aliviada, pois sabia que ao menos entre aquelas quatro paredes, continuaria a ter a presença dele.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Fuga

Indicação do salafrário: leiam o atrevimento poético na horizontal e na vertical. Quem sabe vocês terão uma surpresa...

*****

Acata todas as palavras que ouviu ao telefone
Mexe em algumas coisas na pequena mala arrumada às pressas
Olha ao redor, por medo que aquilo a aprisione
Receio de trocar o aconchego por incertezas tão intensas

Beijos dele vêm agora doloridos
Amarga-se no passado e quase perde os sentidos
Numa nova bofetada se apega aos momentos vividos
Deixa a saudade se esvair nos carinhos quase doídos
Insinua-se, em busca de um novo bem como migalha
Dores recentes somem enquanto ela geme e gargalha
Onde a menina se esconde, e se faz mulher de um bandido canalha

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Bomba-relógio

Eu te amo. E nunca foi pouco. Pouco foi o caso que você fez com tudo o que eu senti por você, tudo o que eu disse pra você em tanto tempo. Cruzei tantas vezes o seu caminho e você não fez questão nem de me dar um "oi". Só seu desprezo, sua indiferença, e o seu "não" em todos os caminhos que fiz para entrar na sua vida.

Meu coração ganhou um compasso avassalador, do qual não tive qualquer dimensão para perceber. Eu apenas vivi. Eu apenas senti. E você jamais me deixou compartilhar tudo isto com você. Quanto tempo esperando ao menos um sorriso amarelo, um afago nos cabelos, como se faz a uma criança. Sim, você me fez criança. Através do seu rosto me enxerguei mais puro. Através das suas mãos pude alcançar meus raros momentos de ternura. De despreocupação. Meus raros momentos de vida.

Porque depois que você chegou à minha vida, eu passei a viver por você instintivamente. Sem receios, sem pudores, só amores à sua espera. À espera do dia em que você viria. E a cada hora eu me aproximava de você. Intensamente, sorrateiramente, sabendo que meu amanhã ficaria mais próximo do seu.

Mas as coisas mudaram. Por você meu coração se fez adolescente. Impulsivo, descontrolado, vislumbrando somente uma consequência, que era a de estar diante de você. E aos poucos foi envelhecendo, até se tornar adulto, decidido, com tudo calculado para te cuidar.

Até de mim restar esta bomba-relógio. A rastrear tanta pólvora guardada para os fogos de artifício que guardei para nosso maior encontro, a ter fôlego suficiente para disparar uma rajada de grandes proporções que seria rever você. Você, agora, olhando diretamente para mim, sem qualquer distração, sem qualquer nebulosidade para atrapalhar nossos olhos.

Meus olhos que te amam enquanto seus olhos dizem que você me odeia. Estamos sem palavras. Afago seu rosto, agora alheio à frustração de que, ao tocar seus lábios, vem apenas a textura da mordaça. Seus sussurros cada vez mais lancinantes enquanto meu toque conhece o fascínio do seu corpo.

Seus braços amarrados, em vão tentando evitar que eu comece a descobrir cada parte de você. E meu coração pulsa, intenso, enquanto você me odeia e me espera beijar seus seios. Sigo a contemplar sua nudez, inteiramente minha, entregue entre as cordas que passam por seu corpo.

Olho para o relógio. O "tic-tac" permanece insistente, e a ânsia toma conta por completo de mim. Finalmente, meu amor, você e eu andamos num tempo só. Em contagem regressiva. Meu tempo de vida vai encurtando, mas fica eterno à medida que nos unimos pela última vez. Um amor tão intenso que não é digno de deixar qualquer rastro. A bomba-relógio deixa toda esta história para a eternidade. Para a nossa eternidade.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Malas prontas



Saudade da Copa vem em forma de atrevimento poético no Diário de um salafrário. E este que vos escreve se atreve a tentar tirar poesia de um lado tão contraditório deste esporte chamado futebol.

*****

Do vestiário ouviu a chegada das torcidas
Podia discernir todos os olhares que estavam nas arquibancadas
Aqueceu compenetrado suas pernas adormecidas
Mais do que nunca, batalhava para que elas fossem consagradas

As negociações aconteceram em sigilo
Ele vivera toda madrugada intensa
De insônias, de sonhos, em viver com estilo
Guardou seu deslumbre até da imprensa

Vestiria aquela 10 pela última vez
Rezou mais forte com seus companheiros na corrente
Pedia garra, mas pedia pra ser prudente
Era o medo de ser mais uma promessa que se desfez

Foi o mais saudado ao entrar em campo
Ritual que acontecia há tanto tempo
Mas que naquela noite ganhou outro sabor
O amargor da despedida, e uma pontinha de dor

Sentiu as pernas tremerem
Foi um primeiro tempo apagado
Ia fazer eles perceberem
Que logo estaria tudo acabado

Voltou ao jogo na segunda etapa
O técnico falou para ele ficar entre os zagueiros
Uma, duas oportunidades, mas a bola escapa
Ouviu o repórter dizer que estes erros não eram costumeiros

De relance, vê no banco o treinador chamar o reserva imediato
A cada corrida do moleque, ele, bem marcado, no campo padece
Queria tanto o gol, passar em branco era um desacato
Olha para seus próprios pés e se entristece

Volta a atenção para o jogo, e vem cobrança de escanteio
Corre até ficar perto do segundo pau
Respira fundo e tem sua concentração total
Vai para a disputa sem qualquer receio

Cobrança feita, ele se adianta
De costas para o gol, sente a bola desviar em sua cabeça
A fração de segundos dá um nó na garganta
É a espera de que seu desejo prevaleça

A vista turva desenha sorrisos de torcedores
Sorrisos de seus companheiros e a bola na rede
Grita palavrões e sorri sem pudores
Sente-se na doçura de sua estreia agora, no dia em que se despede

Permanece em campo por alguns minutos
Tem ainda duas chances, mas a bola vai pra fora
É substituído, vai pro vestiário ainda saboreando seus frutos
No radinho de pilha, torce para que a vitória venha em boa hora

O juiz apita, os três pontos são conquistados
A felicidade do gol marcado e amargura do fim desta sua temporada
Um futuro vem, e com ele a ansiedade de mais fama e títulos a serem conquistados
E o pavor de amanhã, por todas as coisas serem reveladas

Lembra o contrato milionário na Europa, a chegada como grande promessa
Seu coração passa a ser outro, conseguiu seu feito, a alegria agora não cessa
Pensa nos aplausos de crítica e público, ficará alheio àquele coro de um "bando de otário"
Estará no avião e nem ouvirá os intensos gritos de "mercenário"

quarta-feira, 30 de junho de 2010

BRASIL POETA publicado!



A antologia BRASIL POETA finalmente foi publicada. Trata-se de uma coletânea com 100 poesias selecionadas de um concurso literário da Litteris Editora realizado em 2009, e que agora chega à sua edição em livro.

Dentre os 100 textos, um atrevimento poético feito por este que vos escreve foi selecionado. O poema POR QUÊ? faz parte desta empreitada da Litteris.

Aos leitores do Diário de um salafrário que queiram adquirir um exemplar, por favor, entrem em contato comigo pelo e-mail viniciusfaustini@gmail.com

BRASIL POETA custa apenas R$ 15,00.

Obrigado a todos, pois esta honra merece ser dividida com cada um dos que acessam este espaço.

Vinícius Faustini

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Litteris informa...



A partir da semana que vem, no dia 29 de junho, estarão disponíveis na Litteris Editora exemplares do livro BRASIL POETA, antologia lançada com poesias de diversos autores que foram selecionados através de concurso. Este que vos escreve estará presente no livro, com um poema entre os 100 escolhidos.

Em breve, outros detalhes!

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Roleta russa

Ela dormia, a bandida
Num sono tão doce, a maldita
E a ele doía sentir o coração pulsar
Por uma qualquer que aceitou lhe enganar

A noite era em claro com tantas lembranças
A madrugada era fria de falsas esperanças
E da insônia veio uma coragem decisiva
Impulsos, requintes de uma vingança incisiva

No rosto adormecido dela, procurava a resposta
Um plano definitivo para um serviço completo
Em silêncio, queria dela alguma proposta
Ele não tinha sordidez suficiente para se vingar de um desafeto

Imaginou-se dando a ela uma dose de veneno
E ela a definhar até se arrepender
Mas era imensa a tristeza em assisti-la a se contorcer
E amoleceu sua ideia ao se aninhar naquele corpo moreno

Num instante, pairou sobre si a ideia de uma navalha
Marcar-se na carne dela lhe deu um curioso prazer
Mas qualquer arranhão no rosto dela vinha com tanto sofrer
Que aceitou se derrotar em mais uma inglória batalha

Veio a repentina vontade de ter um revólver
Tentou ser rápido no gatilho e deixar seu plano se desenvolver
Até, no final, perceber que tinha tanto efeito quanto bala de festim
Sua vingança era falsa, mais falsa que texto de folhetim

A janela lhe mostrou o dia claro
Passara mais uma noite como mero ressentido
E a cada manhã que ele começava sabendo que era um homem traído
Sabia que seu desejo de matá-la ia ficando mais raro

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Falso brilhante

Tudo vinha à sua mente, em câmera lenta, trazendo novos e sórdidos detalhes de tudo o que presenciara. Um, a outra, o banco do carro, o rádio ligado, as mordidas daquela mulher na orelha dele. E ele gostava. Sim, sim, ele não confessou tudo, mas sua pouca certeza amorosa sabia que ele mentia ao dizer que tudo aquilo era insignificante. Não eram apenas seus olhos que desmentiam aquela afirmação dele. Era seu sangue que subia à cabeça.

As fotos tiradas com a câmera digital mostradas no computador e enviadas para ele por e-mail. As primeiras com mais clareza, com uma nitidez amarga. As demais, um pouco fora de foco, feitas por mãos trêmulas, metáforas de olhos de choro que veem tudo embaçado.

Ele falou um "eu não sei o que dizer" respondido com palavras de tristeza, tentativas de carícia afastadas com as mãos. Os dois afastados no quarto, ela no canto da cama, encolhida nas próprias lágrimas, ele de pé, estático, em um silêncio frio, de observador.

Ela, rajada de mágoas e confissão de tantas frustrações que vieram em segundos. Ele, argumentos, argumentos e mais argumentos. A presença dele agora a seu lado na cama. Aos poucos, ela cedendo àquele olhar que tanto a fascinava e sem o qual não poderia sequer respirar.

Permitiu que os braços dele a envolvessem. Cedeu ao sentir beijos leves na sua nuca. Mas não conseguiu conter o choro quando os lábios se encontraram. As mãos cerradas debatiam contra o peito dele, inúteis, enfraquecidas por toda dor que a cercava.

Olhou para o rosto dele. Amava e tinha raiva. Tinha raiva dele. Tinha raiva de si. E em meio à raiva, achou-se selvagem, achou-se louca, achou-se intensa. Puxou a calcinha de lado e deixou-se cair sobre o corpo dele. Transformava as cicatrizes em razão do seu próprio prazer. Cravou os dentes no pescoço dele até sentir sangue em seu paladar.

Teve forças para empurrá-lo contra seus seios. Depois de um beijo ardente, deu um tapa em seu rosto. Atônito, ele segurou seus braços, e ela perguntou, baixinho: "Ela ainda é melhor que eu? É? É melhor que eu?". Ele riu, num gemido dizendo "Não... Não...", e aos poucos os dois caíram sobre a cama com a respiração descompassada por tanto delírio.

Esperou que ele recuperasse o fôlego e perguntou, fulminante: "Você ainda me ama?". O "sim" foi suficiente. Ele começava a esboçar palavras de perdão mas ela logo o interrompeu. Disse que faltava só um passo para tudo ficar igual a antes. O dia já clareava quando ele finalmente aceitou.

Na mesma rua sem saída. Do mesmo jeito em que os dois estavam quando ela viu, escondida detrás da árvore, as coisas acontecerem. Foi sórdida, esperou que a mulher estivesse prestes a se sentir plena para, sorrateira, entrar no carro. A outra mal teve tempo de reagir. Ele a segurava pelo pescoço. Ela passava o saco plástico por sua cabeça. Em segundos, os dois asfixiaram todo o mal que ameaçou o amor dos dois.

Antes de jogarem o corpo no esgoto, ele ainda retirou o anel que estava na mão direita da morta. Ela achou estranho, mas ele contou que tinha sido o presente que dera à moça na noite anterior.

Trocaram um beijo e, em seguida, foram para casa. Com a cabeça no travesseiro, ela pôde adormecer novamente num sono despreocupado. E antes de dormir, deixou em seus olhos a imagem do falso brilhante que agora era só dela.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Outra noite

Ensaiou algumas palavras diante do espelho
Seu olhar suplicava qualquer conselho
A contagem dos minutos acelerava
Tudo aquilo o amedrontava

O carro chega à porta do prédio
Um beijo rápido seguido de promessa
Ele a espera partir, não tem nenhuma pressa
Sabe que não vai apenas voltar ao seu tédio

Enxerga sua fraqueza no retrovisor
O vidro não embaça tamanha amargura
Sonhou tanto que a coisa mudasse de figura
E vinha o pesadelo de ter de agir como um agressor

Dá a partida
Quer se apoiar no clichê de que estava em jogo uma nova vida
Acha pouco para o tamanho de sua fraqueza
Descobre que nele e nela havia tanta beleza

Seria nada mais do que um caso
Escape, carência, sentimento raso
Suplicaria que pra ele, ela não faria diferença
A outra não merecia nenhuma desavença

E no pavor de imaginar um aborto
Decidia abortar o sonho a dois num abalo
Diria ser um castigo torto
E choraria com ela o amor ir pelo ralo

Passos

Num sorriso, ela o abraça
Num doce sufocar que surge como mordaça
Hesita, pois sabe que fará uma trapaça
Mas a ela, num delírio, se entrelaça

A verdade se esvai, mais uma vez arredia
A iminência da perda evita que ele se afoite
A amante, a gravidez, tudo, tudo ele adia
Quer viver com ela pelo menos por outra noite

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Três vezes

Disse não. Sem qualquer pudor de cair em contradição, negou com uma ponta de conformidade da primeira vez que perguntaram. Os olhos ainda a entregavam. Eles se desviavam dos olhares acusadores e repressores que a perseguiam, vorazes, sedentos de alma. Doía a alma corrompida à vista de todos, mas seu "não" vinha como conforto, como escudo, e a ele se apegava.

Disse não pela segunda vez. De seus olhos saltaram as primeiras gotas de tristeza, e a perfuravam feito sangue, deixando seu rosto angelical cada vez mais pálido. Teve vertigem, achou que num desmaio aquilo tudo não passara de um mau sonho e que agora estava tudo bem, e ela acordava como se nada tivesse acontecido. E começava a gaguejar. As cordas vocais hesitavam e emitiam um ruído estranho, diferente do que ela queria que tomasse conta do seu peito. Rodeava o local mas só via-se amparada em amarguras, e a voz embargava a cada palavra que viria com lamúrias.

Negou. Negou três vezes. Negou num grito. Negou como um pedido de socorro. Negou-se a chorar na frente dele. Negou que estava doendo de verdade e em poucos segundos ele estava tirando dela o maior sorriso de sua vida. Negou para si mesma que iria sofrer de saudade e de espera por dias, meses, anos e vidas.

Deixou-se envolver pelo cansaço. Via-se perdida em vãos momentos de negação. Conseguiu negá-lo por três vezes. Mas quando ele perguntou um "você vai ficar bem?", contradisse seus próprios sentimentos e fez sobressair um definitivo "sim".

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Tanta coisa ainda por dizer

Os olhos dele permaneciam entreabertos,olhando para o teto. Ela, com a cabeça recostada sobre seu peito, olhava com ternura seu semblante quase adormecido. Abraçou-se a ele e também olhou em direção ao espelho do teto. Experimentou um sorriso ao ver sua nudez junto à dele.

Esperou que ele fechasse os olhos e foi em direção ao banheiro. Viu seu rosto ainda maquiado e teve vergonha. Abriu o chuveiro e tomou banho minuciosamente. Por um momento, alternava a sensação da água deslizando por seu corpo com as lembranças do carinho que ele fizera em cada dobra de seu desejo.

Desceu a mão por seu sexo, e com os dedos sentiu-se novamente molhando os lábios dele. Com a outra mão, passeou por sua barriga e subiu levemente até os seios. Envolveu um deles com a palma da mão, e deixou-se escorregar até o chão. Sentada, com seu desejo novamente escancarado e sentindo-se dele, somente dele. Baixinho, pedia para ele vir, para ele vir rápido, mais rápido.

E deitou-se sem qualquer pudor, permitindo que o corpo sorvesse cada gota de água. Fechou os olhos e deu um solavanco no corpo quando se deixou deflorar da primeira vez. Aos poucos, ia se conduzindo em cada ansiedade, em cada sabor que sua sensualidade pedia. Abraçou-se com malícia, sabendo todos os carinhos que queria. Foi-se dominando cercada de afeto até novamente ser dominada por um novo cansaço.

Enxaguou os resquícios de seu desejo numa última ducha. Olhou-se no espelho e via-se renovada, via-se ela mesma, via-se uma mulher. Mulher que agora conhecia cada certeza mais íntima de seu prazer e estava disposta a contar para ele. E era tanto, tanto para falar.

Enrolou-se na toalha, abriu a porta do banheiro e sentiu uma corrente de ar gelar sua espinha. Ele já estava vestido, pronto para ir embora. Avisou que tinha pago o motel e ofereceu uma carona.

Hesitou, mas por fim recusou, disse que chamaria um táxi. Ele entregou o dinheiro. Na hora da despedida, ela empinou o corpo à procura dos seus lábios. Recebeu um beijo na testa.

Pela porta aberta, viu o carro dele partir. Refugiou-se na cama, e se encolheu até os lençóis envolverem sua nudez. A vontade era intensa de perfumar-se com o cheiro do corpo dele. Com o cheiro do amor dele. Um alento à frustração de um amor que morreu com tanta coisa ainda por dizer.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Soneto dos condenados

Há alguns meses, este que vos escreve arriscou-se, em meio a seus atrevimentos poéticos, a escrever um soneto. Na postagem de hoje, o Diário de um salafrário resolveu contar uma nova história neste formato de poema.

Nova ousadia deste que vos escreve e que não toma jeito. Agora, trazendo uma história para contar em dois quartetos e dois tercetos.

Abraços a todos,

Vinícius Faustini


*****

Doía mesmo era o silêncio
As palavras fugiam a cada reencontro
Frieza sentida com assombro
E receio de dizer o fim ou de cogitar um prenúncio

Em seus rostos, expressões de indiferença
No café da manhã, gotas de descrença
Amargura em pedaços na hora do almoço
No jantar, um marasmo a cada dia mais insosso

A uma mulher barata, numa fraqueza ele se entrega
Grava em vídeo os dois no cenário de motel e ao som de música brega
E ao voltar para casa, mostra à companheira a lamúria que tanto carrega

Sórdidos, sádicos, sôfregos, por um ranço de desejo se sentem tentados
Sabem que a perversão não conseguiu deixá-los novamente apaixonados
Se aceitam com ardor porque sabem que um ao outro estão condenados

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Memória afetiva

Novo atrevimento poético. Os versos sempre querem adentrar neste blogue.

*****

As tantas lágrimas se esvaziaram
Seus murmúrios de choro se calaram
Nenhum suplício, nenhum descontrole
Nenhuma amargura que em seu pensamento embole

Não mais lembranças de afetos
Não mais recordar um abraço
Não mais desejos irriquietos
Da música para os ouvidos, não mais um compasso

Falta a amargura do amor que tanto angustia
Falta beber da paixão que tanto inebria
Num lapso do coração, ela foi-se embora
Mal sobrou resquício do afeto que implora

Vazio

Receio de que o coração estivesse por um fio
Do frio da solidão recebeu um forte arrepio
O dissabor de uma indiferença
Tornava a falta de amor uma presença

Abriu as gavetas, olhou todos os retratos
Ao próprio coração queria demonstrar todos os fatos
Para que a frieza, com seus argumentos
Não tomasse conta do poder de amar com todos os arrebatamentos

Nas fotos dela encontrou a doçura que fez seu amor pulsar
Nas cartas para ela, achou as palavras do desejo sempre pronto para extravasar
No erotismo de seus poemas, viu uma sensualidade incessante se aflorar
Na lembrança da voz dela, sussurros de amores e vontade de chorar

Chorar de saudade
Sua memória parecia trazer de volta tudo só de maldade
Mas, em vez de pedir piedade
Mastigava a tristeza por ela como se venerasse uma divindade

O pânico tomara posse dele de maneira corrosiva
O silêncio da alma era um forte torturador
E, na ânsia de não esvair a força do seu amor
Decidiu não se desfazer mais de sua memória afetiva

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Sim

Tateou cada detalhe do corpo dela. Sentiu a palma de sua mão passando pelos cabelos, até a carícia da nuca fazê-la arrepiar e soltar um sorriso. Sentou-se na cama e com os dedos tentou arranhá-la. Os dois sorriram e se beijaram com uma doçura mais selvagem.

Num gesto de entrega, ela empinou os seios e permitiu que ele desabotoasse seu sutiã. Sentiu cócegas quando a barba dele desceu de maneira carinhosa por seu colo. E murmurou enquanto, de olhos fechados, ele, com a língua, riscava labirintos por seus seios. As mãos chegavam ao seu bumbum, e ela ergueu um pouco o corpo para que ele tirasse sua calcinha.

Ajoelhada e nua perante ele, deitou-o, tirou sua cueca e começou a viver com ele o prazer a dois. Olhava os olhos fechados dele e ameaçava sorrir diante do delírio que sua boca permitia que ele tivesse. Com suavidade, subiu seu corpo aos poucos pelo corpo dele, até que ambos se entregassem em chamas, sem receios, sem qualquer sentimento de culpa.

Permitiram que o calor se misturasse com a febre, e num acalanto, permaneceram abraçados, intensos, reconhecendo seus corpos, pedindo seus sexos, e buscando seu amor a dois. Até que num beijo ardente, deram um, dois sobressaltos e caíram, unidos, lado a lado, na cama redonda.

Num instinto, abriram os olhos simultaneamente. Algumas carícias vistas na pouca luz do quarto. Através do brilho do olhar dele, a vista distante dela. Ele tateou o rosto dela, mas sua mão foi incapaz de evitar que ela virasse os olhos para o teto.

Sentiu a frustração pairar sobre a cama. Sentiu que ela, depois de tudo, ainda ia embora. E antes que ela partisse definitivamente, decidiu transpor de uma banal declaração de amor para seu próprio corpo a certeza de seu amor por ela.

Lembrou-se das primeiras declarações mais arrebatadas enquanto, de olhos abertos, via a faca de cozinha perfurar o dedo com a aliança de casamento. Não precisaria mais dele se não tivesse a mulher da sua vida como companhia.

Com a mão ainda sangrando, voltou para o quarto dos dois. Ela vestia a blusa por cima do sutiã, e mexia na mala que estava prestes a levar para longe de casa. Ele estendeu a mão direita e pediu que ela guardasse um cantinho da bolsa para seu último presente.

Atônita, ela disse sim. Como dissera no dia do casamento. E, com cuidado, guardava em sua bolsa o "sim" dele, sabendo que aquele voto de amor conviveria eternamente com ela. Independente de qualquer desunião que acontecera na vida a dois.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Nós dois

Eu, sorriso ao te encontrar. Você, alguns carinhos no meu rosto. Eu, ânsia por um beijo ofegante de seus lábios. Você, suave com certa distância. Eu, taça de vinho. Você, água sem gás. Nós, conversas amenas, cotidianas.

Eu, estranhando seu semblante. Você, inquieta. Eu, afagando seu rosto e deslizando os dedos por seus cabelos. Você, evitando meus olhos. Eu, sentindo no coração adentrar sua inquietude. Você, lábios cerrados. Nós, silêncio.

Você, algo para me dizer. Eu, surpresa para te contar. Você, olhos marejados. Eu, mãos segurando as tuas. Você, planos para a vida. Eu, fora deles. Você, palavras e mais palavras. Eu, silêncios e mais silêncios. Nós, lágrimas.

Você, alívio por tudo o que disse. Eu, no fundo, talvez soubesse que isso um dia ia acontecer. Você, a cada vez mais me privando de seu sorriso. Eu, a cada momento mais pedindo beijos que outrora vinham cercados de espontaneidade. Nós, desamor.

Você, amizade? Eu, ainda sem saber o que pensar. Você, lágrimas já secas. Eu, suspiro mais longo. Você, bebericando o resto do meu vinho. Eu, em dissabor amoroso e amargura com gosto de vinho tinto. Nós, sem mãos dadas.

Você, pedido de desculpas. Eu, pedido de desculpas. Nós, troca de olhares cúmplices e tristes.

Eu, adequado à solidão da minha casa. Ela, febril, preparada para abrigar a quentura da noite de amor que poderia estar por vir. Eu, agora atento a um tudo que em palavras passou a significar nada.

Filmes românticos no DVD. Champagne no gelo. Discos de música instrumental aguardando sobre o som. Você, fora do alcance dos meus olhos.

Eu, retirando a surpresa do bolso. Você, sem saber o que estava à sua espera. Eu, um colar com pingente trazendo nossas iniciais. Você, para nossa história deu retoques finais. Eu, procurando um canto seguro, nem muito à vista das minhas lágrimas nem totalmente escondido das amarras do meu coração. Você, por um instante, pode voltar a sonhar comigo, a pensar em nós.

Nós, nós cegos, que não desatam minha insistência em saber que por uma vida inteira olhando para você, o amor dos meus olhos vai se embaçar. E de minha vista turva, vou continuar a enxergar em você a certeza de que ainda seremos, tão somente, nós dois.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Mais uma

Sentiu curiosidade ao ver se ele também estava de olhos fechados, tão entregue quanto ela naquele primeiro beijo de casal. Com a vista ainda embaçada, pôde notar o olhar dele distante, desatento, como se seus lábios estivessem meramente em uma burocracia amorosa.

Ela frustrou-se, mas a ansiedade em encontrar uma doçura no fel falou mais alto. Aninhava-se ainda mais no corpo dele, e suspirava dengosa sem querer se distanciar de sua boca. Quando, enfim, pareciam não ter mais fôlego, sorriu olhando para ele. Ele sorriu sem mostrar os dentes. Ela tentou esconder o desapontamento em um sorriso, e se recostou em seu ombro, passando a mão em sua face.

Disse algumas palavras, mas ele ficou em silêncio. Num impulso, ela se colocou na ponta dos pés a procurar os lábios dele. Achou com certa facilidade, mas os olhos dele ainda insistiam em não se fechar. Pensou em perguntar se tinha acontecido alguma coisa, mas ficou com medo da resposta. Aquele carinho aos pedaços ainda trazia momentos de conforto para seu coração.

Dedicou-se em sua quentura a se aquecer no corpo dele. Mas sentiu um arrepio quando o envolveu em seus braços. Ele se distanciava ainda mais. Olhou atentamente para os olhos dele. Com a cabeça, fez o trajeto até encontrar onde sua vista se direcionava.

Viu uma moça dançando na pista. Bonita, de sorriso vulgar, e retribuindo o olhar dele. Sentiu-se pequena. Notou que os braços já não se preocupavam mais em abraçá-la. Teve vergonha de si por sua cabeça em algum momento imaginar "nós dois".

Deu um beijo no rosto dele. De relance, sua boca não resistiu a tocar os lábios como despedida. Saiu e percebeu que ele nem se interessara em saber seu nome. Foi embora do recinto derrotada. No táxi, enquanto voltava para casa, desfez a maquiagem. No início da noite, sentira-se única. Ao fim da madrugada, fixou os olhos em seu semblante deteriorado. Dos instantes em que tentou apegar seu amor à frieza dos prazeres de uma só noite, agora via no espelhinho a certeza de que foi só mais uma.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Black-out

No ano passado, este que vos escreve fez um exercício poético bem interessante. A amiga Conceição Oliveira escreveu um poema para seu blogue CONFISSÃO, intitulado Cena aberta. Em resposta, veio um poema que veio como pós-escrito, com tintas femininas sob medida pro estilo de seu blogue.

Agora, o Diário de um salafrário reproduz este "diálogo", e quer a opinião de todos.

Abraços a todos, Vinícius.


*****

CENA ABERTA

de Con

Cena aberta e um coração
Sangrando no momento crucial
Arrependido de não ter dado ouvidos à razão
Que insistia em um ponto final

Carregado de paixão, de um amor descomunal
Soberbamente esperando , e seus olhos fechando
Os avisos ignorando, os sentidos enganando,
Desvairado caminhando sem perceber o sinal

O alerta já piscando, por um fio se esgueirando
Insistindo em calar, engolindo as palavras
Simplesmente disfarçando as dores
Se deixando levar sem distinguir o bem do mal

E agora não há mais espaço
Para mais um ato um segundo tempo
E nem se sabe se é drama ou comédia
O que acontece no palco e nos bastidores
segue apenas esperando a cena final

*****

BLACK-OUT

de Vinícius Faustini

Pós-escrito poético dedicado à Conceição Oliveira.

A rubrica diz black-out
Seguindo o script que você criou à minha revelia
Cercado de amargura e de ironia
Revivendo tristeza na cena do nosso dia

Me finjo de palhaça
Tento uma forma de sorrir
Meu epílogo quer graça
Mas só vê a porta se entreabrir

Ela se abre sem nenhum espectador
Parece que só assisto à saída do meu amor
E à entrada da temida rima que traz tanta dor
Arrisco um fervor, mas só te encontro em meio ao rancor

Um relacionamento que tentava brilhar
Tornou-se desafeto, a doer num desamparar
A ânsia de um sexo, doido por se saciar
Dilui em descaso, sem sonho para caminhar

A última luz apagou
Saio de cena, e mais uma vez você não me amou
Último dia de temporada
Black-out, e me escondi atrás do palco, solitariamente assustada

quarta-feira, 31 de março de 2010

Sofreria

Mais um atrevimento poético. Três consecutivos, daqui a pouco o pessoal enjoa. Mas vamos lá...

*****

Sofreria, ao um dia por acaso te encontrar
Aos beijos com outra, e vocês dois sedentos ao luar
Sofreria, ao não poder mais contigo sonhar
Faltariam motivos para minha vida continuar

Sofreria, com a rotina cravada dos espinhos
Vindos das rosas outrora cercadas de carinhos
Sofreria, somente na companhia de seus presentes
Amores paliativos para esquecer seus afetos ausentes

Sofreria, com um sofrimento que desespera
Passaria os dias me apegando a uma quimera
Sofreria, com os meus lábios entreabertos
Na vã esperança de seu amor me tirar dos desertos

Sofreria, sem sua voz chamando meu nome
Ao ver que você aos poucos é apenas uma imagem que some
Sofreria, estática ouvindo seu “até breve”
Com o seu calor se evaporando em um beijo leve

Sofreria, numa vertigem que me deixaria pálida
E aos olhos dos vizinhos minha situação pareceria cálida
Sofreria, ao me ver no espelho sozinha
Sem refletir seu abraço que me aninha
Sofreria, sim, eu sofreria
Mas isso não faria diferença para sua ironia
Se pra você, sou uma mera vadia
E meu corpo não é nenhuma segura moradia

Não, talvez por um momento eu não sofreria
Mas a cada instante de saudade eu sofro
Procuro sua lembrança nos braços de outro
E só encontro seu cinismo como nostalgia

quarta-feira, 24 de março de 2010

Vícios

Outro mero atrevimento poético. Este salafrário que vos escreve continua sem tomar jeito...

*****

Sua presença é como bebida
Que procuro nos copos da solidão para ela ser vivida
Mas na primeira pontada da nossa ressaca
Percebo que nosso amor é uma coisa opaca

Sua presença é como jogo
No qual aposto minhas fichas e alastro meu fogo
E quando meus carinhos eu espalho
Noto que pra você sou mera carta fora do baralho

Sua presença é como cigarro
E eu trago seu gosto, e meu coração se descompassa
Mas logo que acaba a neblina da fumaça
Em vez do seu beijo, só encontro um pigarro

Sua presença é como maconha
Instante de alegria e uma deliciosa pasmaceira
Quando passa o efeito e não te acho à minha beira
A angústia de viver sem você parece mais medonha

Sua presença é como cocaína
Que trinca meus sentidos e meu coração alucina
Anseio, mais e mais, por ser sua menina
E do sonho mais intenso resta sua falta de amor ferina

Sua presença é como heroína
E me entrego a você cercada de euforia
De depois do nosso beijo, injetarem a ironia
De minha boca vomitar nossos bons momentos na primeira esquina

A espera de sua presença é um vício que vive a me entorpecer
Mas como eu te amo e não sei te esquecer
Recorro a alucinógenos, pois sei que com eles posso viver
A sensação plena de que você sempre estará sob o meu poder

quarta-feira, 17 de março de 2010

Erótica

Um atrevimento poético cercado de nuances femininas. Este que vos escreve não resiste a mais uma destas ousadias de autor. Peço a sincera opinião de todas e de todos.

*****

Lá fora chovem gotas de rancores
Vens até mim sussurrando amores
Com tuas mãos e tua boca me devoras
Dou-te minha quentura para nossas auroras

Meus olhos te enxergam à meia-luz
Vejo em teu olho um desejo que tanto seduz
Cerro meus olhos e teu corpo me conduz
Na doçura de agora estarmos nus

Sinto-me dama, mulher, ninfeta
Desenho a imagem de nossa silhueta
Sedutora, sedenta, sedosa
Sentindo tua carícia gostosa

Tateio com meus lábios e encontro tua boca
E após um “te quero” dito por minha voz rouca
Tu me tomas e começamos um vai-e-vem intenso
Na certeza de que estamos perto de perder o senso

Mergulhas tua cabeça em meus seios
Tua língua e teus dentes entontecem meus anseios
És voraz, és selvagem, mas mesmo assim não tenho receios
A cada pulo só desejo que nosso amor não tenha freios

E eu te molho com o desejo de meu sexo
Sussurro palavras que parecem sem nexo
Sinto teu ofegar e começam a fazer sentido
Os murmúrios e o amor que temos vivido

Meu corpo se guarda para se entregar
Aguardo, orgulhosa, a tua hora de gozar
Ponho a mão em seu coração, que está a disparar
Um, dois gemidos, seguidos de um arfar

Caímos, cansados, cercados de suor
Sorrio, plena, pois te dei o meu melhor
Instantes de desejo intenso e eu a me iludir
Em achar que depois do amor tu não irias dormir

Adormeces, num sono indiferente
Num ato completamente incoerente
De todo o erotismo que tivemos antes
Restam teus roncos decepcionantes

quarta-feira, 10 de março de 2010

Nua

Um post controverso para o Diário de um salafrário desejar a todas as mulheres que frequentam este blogue um FELIZ DIA INTERNACIONAL DA MULHER!

*****

Mal notou quando alguém se aproximava para roubar um beijo. Seus olhos estavam fechados, acompanhando o som da música lenta e ritmada. A doçura era tanta que não quis deixar que o olhar desenhasse a pessoa que compartilhava um desejo ardente beirando a ternura.

Teve pesar quando as duas bocas se perderam, mas sentiu-se segura quando notou que o abraço ficava mais forte. As mãos, ainda trêmulas, procuraram os traços de quem a afagava. Num gesto mais ousado, passou a língua pela orelha e continuou a deixar-se conduzir por uma música que adentrava por seus ouvidos e guiava todos os demais sentidos.

As mãos passaram pela nuca e acariciaram os cabelos longos e lisos. Por um momento, ficou estática e parecia perder o chão. Até, finalmente, ter a certeza, quando suas unhas cravaram as costas e encontraram como obstáculo da pele um sutiã.

Abriu os olhos. Viu que os minutos mais intensos, mais carinhosos que encontrara em sua vida estavam sendo proporcionados por uma mulher. Uma mulher bonita. Linda, não tinha como fugir da beleza doce daquela companheira que a enlaçava e a fazia dançar sem parar.

Tapou seus seios. Tapou seu sexo. Diante dos olhos de quem cuidara dela até alguns instantes agora sentia-se nua. Mesmo vestida. Olhou para os olhos da outra, que se aproximava percebendo o espanto da mulher que se deixara levar por seus carinhos. A vergonha guiou-a a passos largos para o banheiro.

Olhou-se no espelho e aproveitou que o banheiro estava vazio para chorar. Fechou os olhos e derramou lágrimas e o corpo sobre a pia. Fez a água da torneira cair sobre seu rosto, desfazendo sua maquiagem.

O espelho levemente mofado a fez ver quando não estava mais sozinha. Era ela. Era ela novamente cruzando seu caminho. Ofegou. A outra ficou em silêncio por poucos segundos. As lágrimas corriam e a mulher, calmamente, se aproximou dela. Ela permanecia acompanhando pelo espelho, de costas, enquanto via a garota se aproximando, lentamente.

Contemplou os traços dela. Os olhos, brilhantes de choro e de êxtase. A boca, novamente retocada por batom. Os corpo coberto por uma blusa de alça e uma calça jeans. Achou-a ainda mais linda. Em seguida, olhou para si e achou-se bonita. Em especial pelo contraste de sua própria delicadeza com a força e a ternura da outra mulher.

A garota balbuciou alguma coisa, mas ela logo a interrompeu com um beijo rápido e roubado. Olharam-se no espelho e ela se deixou entrelaçar por mãos ternas, doces e seguras. Sussurrou um "quero mais" e entreabriu novamente os lábios para um beijo. As mãos dela guiaram as mãos da outra, pousando uma das mãos no seio, por baixo do tomara-que-caia e guiando a outra até a calcinha.

A mão, quente, deslizava em seu corpo e fazia refletir um pouco de seu sexo no espelho. Tirou a calcinha e guardou-a na bolsa. Virou-se para a outra e afagou com voracidade cada detalhe. Jogou-a até pararem no primeiro reservado. A porta quebrada tornava o perigo ainda mais iminente. As duas suspiravam e se tocavam devotamente.

Desceu o tomara-que-caia até deixar seus seios à mostra. Sentou a outra no vaso sanitário e colocou os seios à altura dos lábios da outra. Suspirava, sussurrava enquanto deixava-se molhar de tanta ternura. E molhava, mergulhada em desejo. Apoiou-se na coxa da outra e sem cuidados permitiu que a mulher a tocasse, a conhecesse, a deflorasse de uma forma que jamais recebera.

Sua mão entreabriu a calça da outra mulher e a fez conhecer o sexo dela. Perdia-se entre os pelos dela e mergulhava a cabeça entre os seios, agora nus e descobertos pelo sutiã desabotoado. As duas suspiravam, em surdina, uma ouvindo apenas a outra. À distância, emaranhavam-se os sons da boate e os barulhos das mulheres que circulavam no banheiro.

Sorriram. Trocaram um beijo mais cúmplice. Ela vestiu novamente o tomara-que-caia, e deu uma risadinha quando notou que a outra olhou com lamento ela se vestindo. A mulher se levantou e deixou que ela a abraçasse. Com carinho, deixou-se recompor as roupas. Primeiro o sutiã e a blusa. Em seguida, abotoando o jeans.

Ansiava para que pelo menos o rubor de seu rosto saísse de sua pele. Queria o mais breve possível voltar a se entregar ao amor dela. Àquele amor repentino que a surpreendia mas que a fazia mais permissiva diante daquele sabor.

Saiu de seu delírio e viu um vulto desaparecer bruscamente. Espantou-se com o barulho da porta do banheiro se fechando. A mulher tinha ido embora.

Por um momento, ela frustrou-se. A música ficou mais intensa em seus ouvidos. Os sons e as imagens ainda passeavam de maneira confusa por sua cabeça. Finalmente, caiu em prantos. Era o choro de quem estava nua, indefesa diante da revelação da malícia de uma mulher.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Escape

Olhou pela terceira vez o resultado do exame. Suspirou com certo sarcasmo, não seria daquela forma que as letrinhas mudariam de lugar. Viu seu rosto no espelho, os cabelos molhados do banho quente e a pele com gotas de água desenhadas nos ombros.

Enxugou-se longe do espelho, com vergonha de sua nudez e de todas as consequências. Tinha receio de amaldiçoá-la novamente. Era uma longa noite de culpa para remoer, as memórias vinham desde a primeira peça de roupa que havia tirado na frente de um homem.

Por um momento, sentiu que não tinha vivido nada. Recorreu ao clichê de "o que é que eu fiz para merecer isso?" e se lamuriou de tanto recato. A lamúria a entorpecia e a deixava ainda mais amargurada. Respirou fundo e deixou escapar um grito.

Abriu a gaveta e pegou o conjuntinho mais erótico que achou - uma calcinha fio dental e um sutiã meia-taça, ambos vermelhos, cor do sangue que lhe subia à cabeça. Pegou o perfume mais vagabundo e passou em seu pescoço e seus punhos. Instintivamente, passou pelos seus braços, suas axilas, seus seios e molhou até seu sexo. Tinha ódio até de seu cheiro verdadeiro. Queria ser outra, e agora começava a ser.

Cobriu o rosto com maquiagem pesada. Viu o último resquício da sua face ser coberto por um batom vermelho bem berrante. O aplique de cabelos castanhos se sobressaiu à sua morenice original. Pensou em usar o vestido mais luxuoso que encontrou no armário. Logo mudou de ideia, e preferiu o vestidinho mais florido e cafona. A bolsa de camelô e o salto 17 foram os últimos detalhes antes do interfone tocar anunciando o táxi.

Desceu pelas escadas. Não era vergonha de encarar os vizinhos insones, só queria poupar seu tempo de responder a algumas perguntas de curiosos da vida alheia. Passou rapidamente pela portaria evitando fitar o porteiro. Deu o endereço para o taxista e ele relutou de início. Mas logo concordou em levá-la quando ela propôs pagar o dobro do taxímetro. Foram o caminho inteiro em silêncio. Olhando sempre pela janela, tentava reconhecer as ruas para esquecer tudo o que estava fazendo. Despertou somente quando ele falou que tinham chegado ao destino. Ela sacou o dinheiro da bolsa. Ele agradeceu. Ela disse que tinha muito mais para agradecer.

Abriu a porta do carona, ajoelhou-se no banco e apoiou-se diante dele. Abriu seu zíper, puxou sua cueca e começou a acariciá-lo. Sentiu que suas mãos o faziam ainda mais inebriado e começou a usar a língua. Riu ao ouvir o gemido dele e começou a acariciá-lo com os lábios. A cabeça dela oscilava e ela cravava as unhas em seu peito. Num último sussurro dele, seus carinhos voltaram a ser com as mãos. Ele ainda pediu mais, mas ela falou que era só um "aquecimento". No espelho retrovisor retocou o batom. Deu um tímido "tchau" ao taxista e seguiu, ainda cambaleante, pela rua.

Parou diante de um poste de luz. Ergueu o corpo, deixou o decote ainda mais à mostra. Aproveitou a rua deserta e decidiu tirar o sutiã. Ajeitou o vestido de forma que o decote mostrasse parte dos bicos de seus seios. Poucos carros passavam pela rua e pareciam não notá-la. Viu que tinham se passado 15 minutos e chegou a pensar em desistir da noite. Mas respirou fundo, empinou os seios e o bumbum, e um carro parou.

Teve um arrepio quando o homem do banco do carona se dirigiu a ela com um "aí, piranha". Ela chegou mais perto e apoiou os braços na janela. Ele perguntou o preço. Ela respondeu que custava o quanto ele tinha na carteira, mas faria um desconto pelo preço do motel. Depois de balançar a cabeça concordando, entrou no carro pelo banco de trás. Ao entrar, descobriu que eram três homens. Assustou-se, mas logo lembrou do seu propósito e até sorriu quando um deles a chamou de "branquinha de pele de bebê".

A pedido de um deles, tirou a calcinha dentro do carro mesmo e começou a se acariciar. Nem notara que agora expunha o sexo sem o menor pudor que vinha antes do banho. O homem que dividia o banco de trás fez menção de agarrá-la mas os que estavam no banco da frente protestaram, dizendo que somente no motel ele poderia tocar "a piranha". Ela se deliciava ao ser xingada deste jeito.

Chegaram a um motel fuleiro. Colocaram uma música e ordenaram que ela fizesse um striptease. Ela se despia sem olhar para o próprio corpo. Gostando de olhar somente para eles, pra maneira como eles estavam em êxtase com uma vadia desconhecida. Eles riam, atiravam moedas. Chamavam-na de todos os nomes. E ela se deixava ficar nua.

Escolheu primeiro o moreno claro alto. O homem ficou nu e se atirou com ela na cama. Ia sacar a camisinha do bolso da calça mas ela disse "não precisa". Foram alguns segundos em silêncio seguidos de uma gargalhada. Ele gritou para os outros dois que iriam transar sem camisinha e eles gargalharam também.

Deixou-se ser tomada por ele. Ardia de desejo e de ódio e de culpa. Remoía o desejo reprimido de ter sido uma garota casta. Remoía o ódio de quem tinha abreviado sua vida e a condenado para sempre. Remoía sua culpa por não ter se cuidado antes. Mas agora se vingava. Ia se vingando em desconhecidos pervertidos. Nos homens tolos que acreditavam nela, que além de falsa bondade ao se entregar sem proteção era uma falsa prostituta.

Extasiava, um por um, sabendo que mais tarde eles iriam compartilhar toda a culpa que ela carregava desde o momento em que recebera o exame. Deixava-se levar por eles. Aceitava que três homens desconhecidos conhecessem toda a pureza de seus traços, de suas curvas somente em troca de prazer. Num último sobressalto, experimentou sorrir até se deixar cair definitivamente sobre o corpo dos três.

Já começava a pegar no sono quando os três se levantaram e falaram que iam embora. Ela pediu que deixassem o dinheiro do motel e algum troco que sobrasse pro programa. Algumas notas de dez reais ficaram amassadas sobre a mesa de cabeceira.

Esperou os três saírem e tomou uma ducha. No banho saiu toda a maquiagem que ainda lhe restava. Tirou o aplique e o deixou numa lata de lixo. Arrumou um pouco os cabelos verdadeiros. Pediu um táxi.

Foi em silêncio até sua casa. Viu o dia começando a clarear. Chegou ao prédio e entrou pela porta dos fundos. Subiu as escadas até chegar ao seu apartamento. Ao entrar lá, viu a hora no relógio do despertador. Faltavam ainda quatro horas para o marido chegar de viagem.

Amaldiçoou o marido mais uma vez. Era ele quem tinha feito a vida dela entrar em estado terminal. Foi o descuido dele que acabou com a vida dela. Mas ela o amava muito. A ponto de não se permitir fazer nenhum mal ou dirigir nenhuma ofensa para ele.

Olhou-se no espelho de cara limpa. Sabia que depois daquela longa noite seu dia clareava, com menos ressentimento e com outros para dividirem a culpa que a carregava há tanto tempo.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Insignificância

2010 só está trazendo atrevimentos poéticos por aqui. Este que vos escreve anda muito ousado...

*****

"Eu te amava"
A voz dela embargava
E usava de novo a secretária eletrônica
Para dizer o resumo da sua doença crônica

"Eu te amava"
Num sonho longínquo ela recriava
O alento de seu corpo digno de carícias
O momento com ele, cercado de delícias

"Eu te amava"
E olhava no espelho o tempo seu rosto enrugar
E olhava no retrato tanto amor a se amarelar
Deixando fosca a luz de um bem que tanto brilhava

"Eu te amava"
Ele negou um beijo de despedida
Ela sabia que a boca do seu homem já era comprometida
Mas não era de raiva que ela chorava

"Eu te amava"
Com o seu sapato quebrou o porta-retrato
Era seu coração querendo se despedaçar sem o menor tato
Mas mesmo em pedaços ainda por ele pulsava

"Eu te amava"
Repetia ansiosamente a sua frase
Apesar de saber que não tinha chance nem de um quase
Do passado agora se apegava

"Eu te amava"
E ele chegou à última instância
Ligou para a mulher que o aprisionava
E a mandou recolher à sua insignificância

Doeu a certeza de ser insignificante
Foi para o prédio e depois de vê-lo aos beijos com a amante
Não teve pudor enquanto o carro o esmagava
Do barulho da rua, ouvia somente a própria voz dizendo "eu te amava"