Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Insignificância

2010 só está trazendo atrevimentos poéticos por aqui. Este que vos escreve anda muito ousado...

*****

"Eu te amava"
A voz dela embargava
E usava de novo a secretária eletrônica
Para dizer o resumo da sua doença crônica

"Eu te amava"
Num sonho longínquo ela recriava
O alento de seu corpo digno de carícias
O momento com ele, cercado de delícias

"Eu te amava"
E olhava no espelho o tempo seu rosto enrugar
E olhava no retrato tanto amor a se amarelar
Deixando fosca a luz de um bem que tanto brilhava

"Eu te amava"
Ele negou um beijo de despedida
Ela sabia que a boca do seu homem já era comprometida
Mas não era de raiva que ela chorava

"Eu te amava"
Com o seu sapato quebrou o porta-retrato
Era seu coração querendo se despedaçar sem o menor tato
Mas mesmo em pedaços ainda por ele pulsava

"Eu te amava"
Repetia ansiosamente a sua frase
Apesar de saber que não tinha chance nem de um quase
Do passado agora se apegava

"Eu te amava"
E ele chegou à última instância
Ligou para a mulher que o aprisionava
E a mandou recolher à sua insignificância

Doeu a certeza de ser insignificante
Foi para o prédio e depois de vê-lo aos beijos com a amante
Não teve pudor enquanto o carro o esmagava
Do barulho da rua, ouvia somente a própria voz dizendo "eu te amava"

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Alegorias e adereços



O atrevimento poético passeia na avenida nesta Quarta-feira de Cinzas do Diário de um salafrário. Este que vos escreve persiste na fantasia de poeta para celebrar mais um ano de folia que passou pelo país.

*****

Passa uma com fantasia de colombina
Vem a imagem dela coberta de serpentina
De riso frouxo e hálito de cerveja
Sai atrás do bloco e esquece o homem que a deseja

Surge, suntuosa, Cleópatra, a rainha do Egito
Ele dança na multidão até se deparar com seu mito
Enrola-se nos braços da doce morena
Sem se importar com a noite que o envenena

E vem no salão uma bela cigana
Traz nos olhos o enigma do futuro
Nas mãos dela, linhas de caminho inseguro
Que num relance ele ama, enquanto ela o engana

Sai pela rua uma bela odalisca
Movido pelo álcool, ele parte e se arrisca
Ela esconde um mistério em cada véu
Ele se perde e vê o coração abandonado ao léu

Sente os olhos avermelhados pela diaba
Num despudor, ele se consome e se acaba
E das labaredas de todo aquele fogo
Sobram as cinzas e a certeza de que tudo era um jogo

Ressurgem as lembranças de outros carnavais
Amores, lampejos, lembranças que hoje são ais
A batida carnavalesca dá silêncios sepulcrais
Ao homem que fantasia mais do que relações carnais

A cara limpa será sua nova fantasia
Para que todos riam de seus sofrimentos patéticos
Talvez seja melhor que riam e falem com ironia
A demonstrar felicidade só por cumprimentos estéticos

Sua verdade caminha no ritmo da marchinha
Sua incerteza samba numa cadência confusa
Com ou sem fantasia, é mais um ano ansiando por uma musa
E o bloco parte por um trajeto que ele não adivinha

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Meus motivos

Sua surdez, incapaz de discriminar a audição de meus delírios de amores, deliciosamente apaixonados, a contar do bem que sua presença me fazia. Seu silêncio, a cada sussurro ensurdecendo a frieza de sua ausência de palavras, não alcançando nenhum tom que criasse uma melodia digna de nos sensibilizar em apenas um acorde.

Sua cegueira, parando seu olhar num horizonte em que não existe lugar nem mesmo para o brilho causado por sua presença. Seus lábios imóveis, intransponíveis, a me deixar sem permissão para passar o sabor afrodisíaco da minha ansiedade em sentir o gosto de nós dois. Seu falso sorriso, pintado de amarelo, única tintura que me fazia companhia.

Seus braços cruzados, sem carinho, sem forças até para você mesma sem envolver num abraço. Suas mãos cerradas, com as unhas quase a ensanguentar uma carne que parece gélida. Sua pele, ressecada pela falta de um toque singelo, vontade inicial de um tanto de carinho que ainda poderia vir. Seu sexo, seco, casto, sem aconchego, sem afeto, resumido a duas carências que caminham, lado a lado, em traços paralelos.

Muito a dizer. Tanto a confessar. Mas não deixarei nenhuma de suas marcas ao que encontrar você. Ele só terá diante dos olhos seu corpo riscado pela faca da minha insegurança, como se os cortes fossem unhas a cravar sua pele. Ninguém vai saber de você. Ninguém vai saber de nós. Para efeito da curiosidade alheia, o que eu fiz foi somente porque tive os meus motivos.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Recaída

Novo atrevimento poético. Este que vos escreve continua em 2010 sem tomar jeito...

*****

Meu beijo se encaminha até a estrada de sua boca
Nos deixamos abraçar, e no murmúrio da minha voz rouca
Descem meus dentes a morder o seu pescoço
Riscando em sua pele um desejo que antes era só esboço

Minha língua em sua orelha deixa você arrepiada
E me encontro de novo com seus olhos de menina assustada
Dou um sorriso ao notar sua face corada
Tão linda, tão doce, tão iluminada

Aquelas duras palavras se tornaram passado
Seu choro, seus gritos, sumiram com o vento
Você não é mais a razão do meu intenso lamento
Eu não sou o canalha digno de ser abandonado

Um sorriso seguido de uma proposta
Ao meu ouvido, vem seu "sim" como resposta
E de um encontro criado por um suposto acaso
Vem a certeza de que é em você que eu me abraso

Você mal repara a sujeira do meu apartamento
Nossos corpos se unem e fecham a porta
A saudade de você é o que me importa
Nossa eterna vontade se move com encantamento

Sinto você, sôfrega, a me acalentar
Numa volúpia incapaz de ser vulgar
E eu quero, reafirmo, minha ânsia de te amar
Até, num suspiro, meu corpo do seu se desvencilhar

Lado a lado, breve troca de olhares
Nos vemos sérios, movidos por pesares
Da intensidade repentina vivida sob aquele teto
Sobressai-se o longo passado de desafeto

Sua mão passa ressentida por meu rosto
Mordo os lábios com raiva do seu desgosto
Você se veste como se eu só tivesse saciado sua carência
Retribuo fechando seu zíper com displicência


Ofereço carona para levá-la à sua casa
Uma ida em silêncio e chegamos à porta de seu prédio
Tenho a sensação ambígua de que só amenizamos nosso tédio
A solidão é o sentimento que agora minha dor extravasa

Você diz um "isso não pode mais se repetir"
Sinto certa compaixão ao ver sua culpa te afligir
Sabemos que nosso desamor sempre estará a nos ressentir
E que, para sempre, estas recaídas irão nos seguir