Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Três vezes

Disse não. Sem qualquer pudor de cair em contradição, negou com uma ponta de conformidade da primeira vez que perguntaram. Os olhos ainda a entregavam. Eles se desviavam dos olhares acusadores e repressores que a perseguiam, vorazes, sedentos de alma. Doía a alma corrompida à vista de todos, mas seu "não" vinha como conforto, como escudo, e a ele se apegava.

Disse não pela segunda vez. De seus olhos saltaram as primeiras gotas de tristeza, e a perfuravam feito sangue, deixando seu rosto angelical cada vez mais pálido. Teve vertigem, achou que num desmaio aquilo tudo não passara de um mau sonho e que agora estava tudo bem, e ela acordava como se nada tivesse acontecido. E começava a gaguejar. As cordas vocais hesitavam e emitiam um ruído estranho, diferente do que ela queria que tomasse conta do seu peito. Rodeava o local mas só via-se amparada em amarguras, e a voz embargava a cada palavra que viria com lamúrias.

Negou. Negou três vezes. Negou num grito. Negou como um pedido de socorro. Negou-se a chorar na frente dele. Negou que estava doendo de verdade e em poucos segundos ele estava tirando dela o maior sorriso de sua vida. Negou para si mesma que iria sofrer de saudade e de espera por dias, meses, anos e vidas.

Deixou-se envolver pelo cansaço. Via-se perdida em vãos momentos de negação. Conseguiu negá-lo por três vezes. Mas quando ele perguntou um "você vai ficar bem?", contradisse seus próprios sentimentos e fez sobressair um definitivo "sim".

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Tanta coisa ainda por dizer

Os olhos dele permaneciam entreabertos,olhando para o teto. Ela, com a cabeça recostada sobre seu peito, olhava com ternura seu semblante quase adormecido. Abraçou-se a ele e também olhou em direção ao espelho do teto. Experimentou um sorriso ao ver sua nudez junto à dele.

Esperou que ele fechasse os olhos e foi em direção ao banheiro. Viu seu rosto ainda maquiado e teve vergonha. Abriu o chuveiro e tomou banho minuciosamente. Por um momento, alternava a sensação da água deslizando por seu corpo com as lembranças do carinho que ele fizera em cada dobra de seu desejo.

Desceu a mão por seu sexo, e com os dedos sentiu-se novamente molhando os lábios dele. Com a outra mão, passeou por sua barriga e subiu levemente até os seios. Envolveu um deles com a palma da mão, e deixou-se escorregar até o chão. Sentada, com seu desejo novamente escancarado e sentindo-se dele, somente dele. Baixinho, pedia para ele vir, para ele vir rápido, mais rápido.

E deitou-se sem qualquer pudor, permitindo que o corpo sorvesse cada gota de água. Fechou os olhos e deu um solavanco no corpo quando se deixou deflorar da primeira vez. Aos poucos, ia se conduzindo em cada ansiedade, em cada sabor que sua sensualidade pedia. Abraçou-se com malícia, sabendo todos os carinhos que queria. Foi-se dominando cercada de afeto até novamente ser dominada por um novo cansaço.

Enxaguou os resquícios de seu desejo numa última ducha. Olhou-se no espelho e via-se renovada, via-se ela mesma, via-se uma mulher. Mulher que agora conhecia cada certeza mais íntima de seu prazer e estava disposta a contar para ele. E era tanto, tanto para falar.

Enrolou-se na toalha, abriu a porta do banheiro e sentiu uma corrente de ar gelar sua espinha. Ele já estava vestido, pronto para ir embora. Avisou que tinha pago o motel e ofereceu uma carona.

Hesitou, mas por fim recusou, disse que chamaria um táxi. Ele entregou o dinheiro. Na hora da despedida, ela empinou o corpo à procura dos seus lábios. Recebeu um beijo na testa.

Pela porta aberta, viu o carro dele partir. Refugiou-se na cama, e se encolheu até os lençóis envolverem sua nudez. A vontade era intensa de perfumar-se com o cheiro do corpo dele. Com o cheiro do amor dele. Um alento à frustração de um amor que morreu com tanta coisa ainda por dizer.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Soneto dos condenados

Há alguns meses, este que vos escreve arriscou-se, em meio a seus atrevimentos poéticos, a escrever um soneto. Na postagem de hoje, o Diário de um salafrário resolveu contar uma nova história neste formato de poema.

Nova ousadia deste que vos escreve e que não toma jeito. Agora, trazendo uma história para contar em dois quartetos e dois tercetos.

Abraços a todos,

Vinícius Faustini


*****

Doía mesmo era o silêncio
As palavras fugiam a cada reencontro
Frieza sentida com assombro
E receio de dizer o fim ou de cogitar um prenúncio

Em seus rostos, expressões de indiferença
No café da manhã, gotas de descrença
Amargura em pedaços na hora do almoço
No jantar, um marasmo a cada dia mais insosso

A uma mulher barata, numa fraqueza ele se entrega
Grava em vídeo os dois no cenário de motel e ao som de música brega
E ao voltar para casa, mostra à companheira a lamúria que tanto carrega

Sórdidos, sádicos, sôfregos, por um ranço de desejo se sentem tentados
Sabem que a perversão não conseguiu deixá-los novamente apaixonados
Se aceitam com ardor porque sabem que um ao outro estão condenados

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Memória afetiva

Novo atrevimento poético. Os versos sempre querem adentrar neste blogue.

*****

As tantas lágrimas se esvaziaram
Seus murmúrios de choro se calaram
Nenhum suplício, nenhum descontrole
Nenhuma amargura que em seu pensamento embole

Não mais lembranças de afetos
Não mais recordar um abraço
Não mais desejos irriquietos
Da música para os ouvidos, não mais um compasso

Falta a amargura do amor que tanto angustia
Falta beber da paixão que tanto inebria
Num lapso do coração, ela foi-se embora
Mal sobrou resquício do afeto que implora

Vazio

Receio de que o coração estivesse por um fio
Do frio da solidão recebeu um forte arrepio
O dissabor de uma indiferença
Tornava a falta de amor uma presença

Abriu as gavetas, olhou todos os retratos
Ao próprio coração queria demonstrar todos os fatos
Para que a frieza, com seus argumentos
Não tomasse conta do poder de amar com todos os arrebatamentos

Nas fotos dela encontrou a doçura que fez seu amor pulsar
Nas cartas para ela, achou as palavras do desejo sempre pronto para extravasar
No erotismo de seus poemas, viu uma sensualidade incessante se aflorar
Na lembrança da voz dela, sussurros de amores e vontade de chorar

Chorar de saudade
Sua memória parecia trazer de volta tudo só de maldade
Mas, em vez de pedir piedade
Mastigava a tristeza por ela como se venerasse uma divindade

O pânico tomara posse dele de maneira corrosiva
O silêncio da alma era um forte torturador
E, na ânsia de não esvair a força do seu amor
Decidiu não se desfazer mais de sua memória afetiva