Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Fuga

Indicação do salafrário: leiam o atrevimento poético na horizontal e na vertical. Quem sabe vocês terão uma surpresa...

*****

Acata todas as palavras que ouviu ao telefone
Mexe em algumas coisas na pequena mala arrumada às pressas
Olha ao redor, por medo que aquilo a aprisione
Receio de trocar o aconchego por incertezas tão intensas

Beijos dele vêm agora doloridos
Amarga-se no passado e quase perde os sentidos
Numa nova bofetada se apega aos momentos vividos
Deixa a saudade se esvair nos carinhos quase doídos
Insinua-se, em busca de um novo bem como migalha
Dores recentes somem enquanto ela geme e gargalha
Onde a menina se esconde, e se faz mulher de um bandido canalha

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Bomba-relógio

Eu te amo. E nunca foi pouco. Pouco foi o caso que você fez com tudo o que eu senti por você, tudo o que eu disse pra você em tanto tempo. Cruzei tantas vezes o seu caminho e você não fez questão nem de me dar um "oi". Só seu desprezo, sua indiferença, e o seu "não" em todos os caminhos que fiz para entrar na sua vida.

Meu coração ganhou um compasso avassalador, do qual não tive qualquer dimensão para perceber. Eu apenas vivi. Eu apenas senti. E você jamais me deixou compartilhar tudo isto com você. Quanto tempo esperando ao menos um sorriso amarelo, um afago nos cabelos, como se faz a uma criança. Sim, você me fez criança. Através do seu rosto me enxerguei mais puro. Através das suas mãos pude alcançar meus raros momentos de ternura. De despreocupação. Meus raros momentos de vida.

Porque depois que você chegou à minha vida, eu passei a viver por você instintivamente. Sem receios, sem pudores, só amores à sua espera. À espera do dia em que você viria. E a cada hora eu me aproximava de você. Intensamente, sorrateiramente, sabendo que meu amanhã ficaria mais próximo do seu.

Mas as coisas mudaram. Por você meu coração se fez adolescente. Impulsivo, descontrolado, vislumbrando somente uma consequência, que era a de estar diante de você. E aos poucos foi envelhecendo, até se tornar adulto, decidido, com tudo calculado para te cuidar.

Até de mim restar esta bomba-relógio. A rastrear tanta pólvora guardada para os fogos de artifício que guardei para nosso maior encontro, a ter fôlego suficiente para disparar uma rajada de grandes proporções que seria rever você. Você, agora, olhando diretamente para mim, sem qualquer distração, sem qualquer nebulosidade para atrapalhar nossos olhos.

Meus olhos que te amam enquanto seus olhos dizem que você me odeia. Estamos sem palavras. Afago seu rosto, agora alheio à frustração de que, ao tocar seus lábios, vem apenas a textura da mordaça. Seus sussurros cada vez mais lancinantes enquanto meu toque conhece o fascínio do seu corpo.

Seus braços amarrados, em vão tentando evitar que eu comece a descobrir cada parte de você. E meu coração pulsa, intenso, enquanto você me odeia e me espera beijar seus seios. Sigo a contemplar sua nudez, inteiramente minha, entregue entre as cordas que passam por seu corpo.

Olho para o relógio. O "tic-tac" permanece insistente, e a ânsia toma conta por completo de mim. Finalmente, meu amor, você e eu andamos num tempo só. Em contagem regressiva. Meu tempo de vida vai encurtando, mas fica eterno à medida que nos unimos pela última vez. Um amor tão intenso que não é digno de deixar qualquer rastro. A bomba-relógio deixa toda esta história para a eternidade. Para a nossa eternidade.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Malas prontas



Saudade da Copa vem em forma de atrevimento poético no Diário de um salafrário. E este que vos escreve se atreve a tentar tirar poesia de um lado tão contraditório deste esporte chamado futebol.

*****

Do vestiário ouviu a chegada das torcidas
Podia discernir todos os olhares que estavam nas arquibancadas
Aqueceu compenetrado suas pernas adormecidas
Mais do que nunca, batalhava para que elas fossem consagradas

As negociações aconteceram em sigilo
Ele vivera toda madrugada intensa
De insônias, de sonhos, em viver com estilo
Guardou seu deslumbre até da imprensa

Vestiria aquela 10 pela última vez
Rezou mais forte com seus companheiros na corrente
Pedia garra, mas pedia pra ser prudente
Era o medo de ser mais uma promessa que se desfez

Foi o mais saudado ao entrar em campo
Ritual que acontecia há tanto tempo
Mas que naquela noite ganhou outro sabor
O amargor da despedida, e uma pontinha de dor

Sentiu as pernas tremerem
Foi um primeiro tempo apagado
Ia fazer eles perceberem
Que logo estaria tudo acabado

Voltou ao jogo na segunda etapa
O técnico falou para ele ficar entre os zagueiros
Uma, duas oportunidades, mas a bola escapa
Ouviu o repórter dizer que estes erros não eram costumeiros

De relance, vê no banco o treinador chamar o reserva imediato
A cada corrida do moleque, ele, bem marcado, no campo padece
Queria tanto o gol, passar em branco era um desacato
Olha para seus próprios pés e se entristece

Volta a atenção para o jogo, e vem cobrança de escanteio
Corre até ficar perto do segundo pau
Respira fundo e tem sua concentração total
Vai para a disputa sem qualquer receio

Cobrança feita, ele se adianta
De costas para o gol, sente a bola desviar em sua cabeça
A fração de segundos dá um nó na garganta
É a espera de que seu desejo prevaleça

A vista turva desenha sorrisos de torcedores
Sorrisos de seus companheiros e a bola na rede
Grita palavrões e sorri sem pudores
Sente-se na doçura de sua estreia agora, no dia em que se despede

Permanece em campo por alguns minutos
Tem ainda duas chances, mas a bola vai pra fora
É substituído, vai pro vestiário ainda saboreando seus frutos
No radinho de pilha, torce para que a vitória venha em boa hora

O juiz apita, os três pontos são conquistados
A felicidade do gol marcado e amargura do fim desta sua temporada
Um futuro vem, e com ele a ansiedade de mais fama e títulos a serem conquistados
E o pavor de amanhã, por todas as coisas serem reveladas

Lembra o contrato milionário na Europa, a chegada como grande promessa
Seu coração passa a ser outro, conseguiu seu feito, a alegria agora não cessa
Pensa nos aplausos de crítica e público, ficará alheio àquele coro de um "bando de otário"
Estará no avião e nem ouvirá os intensos gritos de "mercenário"