Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Noite em claro

Mais um atrevimento poético. Este que vos escreve espera não estar numa mesmice...

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"Boa noite"
E dói o silêncio como resposta
Na amargura insone que tanto desgosta
E que permite que ela se debilite

Os olhos se fecham e a tristeza se escancara
Os ouvidos procuram suspiros de amor e de tara
Os lábios se molham na espera que vira lágrimas
Sussurros de amor para um silêncio sem rimas

O que sentia não era mera vontade
O que feria era ter criado aquela saudade
Por sua insegurança, por sua ingenuidade
Mentiu para si mesma e sofreu com a nova verdade

A razão dela permitira apenas sexo
Ele respirava um amor cada vez mais latente
Quando ele se exilou, na quarentena de um amor doente
Ela enxergou-se num universo sem nexo

Na noite vazia, esconde-se entre os lençóis
Foge em vão da solidão, companheira tão atroz
Que a seduziu, propondo um coração com independência
Mas omitiu as feridas ocasionadas pela carência

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Guimbas de cigarro

Entre uma tragada e outra no cigarro, olhava para o corpo dela adormecido e repetia para si: "Ela não significa nada para mim". Esquivou sua cabeça até fazer com que seus olhos pudessem enxergar o sorriso dela, agora mergulhados naquele misto de êxtase e satisfação que os dois tinham sentido a dois por uma noite inteira na qual, a cada minuto, ele desejara um pouco mais que o dia não clareasse.

Mudou de ideia por um instante, quando a fresta da cortina fez escapar um pouco da luz do raiar do dia. Brilhava a pureza dos cabelos dela, loiros e molhados do banho que tiveram a dois. Forçava a vista para novamente vê-la por inteira, ainda com o corpo banhado por suas mãos intensas, sedentas, em delírio.

Repousou o cigarro sobre o cinzeiro e vestiu-se em silêncio. Anos de prática tornaram esta parte uma das mais fáceis. Mas seu coração partia por ter apenas de observá-la assim, a uma distância considerável, e agora lhe dava náusea sentir o cheiro de álcool que criara para aquele ambiente outrora perfumado por tanta sensualidade.

Foi traído por um raro momento de compaixão, e quando teve certeza de que ela ainda estava dormindo, aproximou-se e cheirou o pescoço dela. Sorriu num soluço de choro por notar que seu coração batia com mais intensidade à medida que o perfume dela dominava suas narinas.

Deu passos curtos, de costas para a porta. De relance, olhou para o cinzeiro e certificou-se de que o cigarro estava apagado. A cada passo, balbuciava um "eu te amo". Dizia e repetia "eu te amo, eu te amo", porque sabia que nunca mais pronunciaria aquela frase com sinceridade novamente.

Quando conformou-se em não mais ter a visão dela por perto, deixou tudo em ordem no apartamento. Deixou sobre a mesa da sala todo o dinheiro que planejara roubar dela e a carta na qual confessava também a maneira como pretendia matá-la.

Bateu a porta do apartamento com raiva, e saiu correndo pelas escadas do prédio. Fugia. Fugia dela. Fugia da vergonha de ter se apaixonado pela vítima de seu golpe. E depois de amá-la de verdade, tentava acostumar novamente seu coração à frieza de caçar vítimas.

O perfume do amor dela já não estaria a mais ao alcance do seu querer. A ele, sobrariam apenas as cinzas de falsos amores, queimados com guimbas de cigarro, sempre após noites intensas de erotismo. De um erotismo mercenário, do qual sabia que seria refém pelo resto de sua vida.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Madrugada adentro

Caiu sobre ele, deixando escapar um último e leve gemido de prazer. Ela estave exausta, mas não queria se deixar vencer pelo cansaço. Permanecia, teimosa, lutando contra os próprios olhos para que o sono não tomasse seu corpo e acabasse por fazer as horas passarem à revelia do que desejava para sua madrugada.

Notou que os olhos dele também ameaçavam se fechar, mas em vez de desespero, deu um risinho doce, de menina travessa. Pousou suas mãos sobre o peito dele e foi deslizando minuciosamente cada parte que desejava. Começou a beijar seu pescoço e aos poucos associava seus beijos à vontade com a qual tateava o corpo do seu homem.

Viu o olhar dele se entreabrir e roubou-lhe um beijo selvagem. Pôde sentir entre suas mãos o desejo dominá-lo de acordo com o que ela permitia, e isto a fazia oscilar a intensidade com a qual acariciava o êxtase dele. Por um momento não sentia-se apenas dele, sentia que ele era posse dela, na confirmação do prazer a dois que sempre procurara ter com um homem que amasse.

Levantou um pouco seu corpo para que os seios estivessem à altura dos lábios dele. Por um momento, deixou-se ser traída por sua própria vontade e arriscou até um leve acariciar em seus próprios pelos pubianos. Mas seu breve devaneio foi tomado pelos sussurros mais intensos que ele dizia ao seu ouvido, no ápice de um delírio seguido da imagem dele, arfando, sorrindo.

Repousou a cabeça sobre o peito dele. Estava dominada pela paz de sentir-se uma mulher que sabia controlar os sentimentos de seu homem, e nem percebeu quando seus olhos caíram adormecidos. Acordou com o sol já alto, e viu-se nua, solitária naquela cama. Não pôde fazer nada para que ele continuasse junto dela. Ela levantou-se e começou aquele mesmo ritual. O de se arrumar para passar o dia como uma figura nula, à espera do amor que chegava na sua mente através de intensos desejos insones.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Amor vendado

Mais um atrevimento poético de toques sensuais. Este salafrário não toma jeito mesmo...

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O primeiro olhar veio num "sem querer"
Chorou desculpas, mas começava a perceber
Enxergara desejo onde não devia
Despertara amor de uma forma que não podia

Passou os dias trancada em seu silêncio
Passou as tardes calando seu sacrifício
Passou as noites em claro com suas querências
Para, na madrugada, gemer baixinho suas confidências

Seguiu em angústia, atrás de uma reação
Sentindo nos cabelos a carícia de seu sonho
Até que pudesse esquecer o quanto era medonho
E estivesse, enfim, disposta a uma ação

Não teve medo da dor que traria a ele aquela pancada
Encontrou forças para carregá-lo até seu carro
No caminho, não se achou mais digna de escarro
Achava-se, finalmente, digna de ser amada

Instigada pelos olhos dele estarem vendados
Excitava-se por vê-lo com os braços amarrados
Estava disposta a ser uma pervertida
Tudo para cicatrizar a dor daquela ferida

Em resposta à raiva dele, sussurrou um "você é só meu"
Ao alcance do tato dele, deixou toda sua nudez
Transmitia a ele o cheiro da sua grande insenstatez
Num amor insaciável, seu desejo tremeu

As mãos atadas entrelaçaram em suas costas
A cabeça agora se perdia entre seus seios
Ele já não mais exigia respostas
A dois, eram agora apenas devaneios

Num sobressalto, pensou estar no céu
E contemplava seu homem através dos espelhos do motel
De tanto sonhar, mergulhara na realidade
Agora doiría a verdade, mas sabia que o amor requer lealdade

Dos olhos dele, retirou a venda
Sabia que a esperava uma reação horrenda
E que dos minutos de tanta ternura
Viria uma eternidade de amargura

Ainda assim, sentiria seu corpo quente
Por mais que ele a julgasse doente
No sexo dela, estaria um amor tão leve e tão ofegante
Por mais que seu filho por uma noite tenha sido seu amante

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Mãos de sangue

Três balas. Duas delas no coração. A primeira fulminando o amor que ela dilacerou em troca de um prazer barato, quem sabe achado na esquina. A segunda é a extrema-unção, sacramento do meu calvário diante desta doença que prostituiu nossa história, que transformou em duas a nossa vida.

E o tiro de misericórdia? Atira na nuca! A nuca, local onde ela se insinuava toda arrepiada ao sentir a carícia das minhas mãos e a lascívia da minha boca, a beijá-la, a mordê-la. Gasta as três balas. Mesmo que ela se vá logo ao sofrer o primeiro tiro.

Não, não, no rosto não. Sua beleza jovem deve ficar imóvel, tão pura quanto na foto que carrego aqui na minha carteira. Com a imagem bem distante da cena na qual vi sua boca vulgarizada, violada pelos lábios de outro. Não quero ter como última lembrança seus cabelos despenteados pelas mãos de alguém que não a soube tocar, que marcou seu corpo apenas com manchas de uma voracidade travestida de paixão.

Eu a amo. Muito. Um amor que não sabe se despedir. Um amor incapaz de ser asfixiado por minhas próprias mãos. Por isto é que eu vim aqui. Um serviço como este deve ser realizado por mãos sangradas como as suas. Mãos que carregam anos de vida amarga, na qual um momento de tristeza a mais não fará diferença.

Pouco me importa se seus olhos debocham de mim e me acusam de covardia. Não é este o sentimento que ata minha ira neste momento. O que me toma é a incapacidade de dar qualquer desprazer a ela. Mesmo que ela tenha sussurrado palavras de carinho no ouvido de outro.

O dinheiro está de acordo com o combinado. Eu lhe agradeço, você estipulou uma quantia a algo que pra mim não tem preço. Sei que o remorso um dia pode me cobrar pelo que estou fazendo. Não vou conseguir amenizar com arrependimento o momento de rancor no qual me deixei ser levado pela maré de tamanha atrocidade.

Mas, de qualquer forma, minhas mãos estarão limpas. Inertes, amarradas por tanto amor que não se esfria a ponto de sangrar a culpada por minhas dores. Não a faça sofrer muito. Se possível, faça com que o rosto dela sorria. Dê a ela um lampejo de alegria, mesmo que asfixiada por mãos de sangue. Mãos do meu sangue, que ardeu no amor dela e que escorreu em tristezas quando foi cortado pela luxúria praticada com outro.

Que ela descanse em paz. E que eu permaneça em guerra, remoendo minha culpa, mas que tudo passe quando eu voltar a olhar a imagem dela, imortalizada na foto que carrego em minha carteira.