Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Pelé, 70




Passaram 70 anos, e do despertar de Três Corações

Entrou em campo aquele menino capaz de encantar multidões

Literatura nenhuma descreveu até hoje tantos gols bonitos

És sonho, és gol, és vitória, és glória, és soco no ar, és quatro letras e tantos tratos à bola que jamais em poemas serão reescritos


MILÉSIMO GOL DE PELÉ - Vasco 1 x 2 Santos, 1969

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Coxia

A imprensa vem anunciando nas últimas semanas que a TV Globo está produzindo um seriado inteiro em homenagem a Chico Buarque. Serão episódios independentes, cada um em homenagem a uma canção de sua maravilhosa obra. Este humilde salafrário resolveu se arriscar neste desafio, mas através das letras.

A canção que inspirou o conto que segue aparece ao final, numa gravação do You Tube. Trata-se de uma belíssima canção que Chico Buarque fez especialmente para Cauby Peixoto.

Fiquem à vontade para comentar.

Vinícius Faustini


*****

COXIA

A Chico Buarque

Sob o olhar de espanto da bilheteira, escolheu o lugar mais distante do palco. Enquanto passava o dedo pelo painel da plateia, não sabia se sua atitude era para não ser visto ou por receio de que seus olhos enchessem definitivamente de lágrimas ao ver a imagem tão doce dela cantando. Sentou no lugar marcado e chamou a garçonete para pedir um suco de laranja. Num instante, decidiu ficar sóbrio durante toda aquela apresentação.

Tinha sido o primeiro a chegar. Assim como fazia em todos os shows dela. Gostava de ouvir a casa de espetáculos sendo tomada por burbúrios de espectadores. Via cada vez mais pessoas chegando, rostos sorridentes, e à medida que se aproximava da hora do show, mais as conversas iam girando em torno dela. Do talento dela, da voz dela, do repertório dela, do quanto ela é gostosa.

Olhou para o relógio. Ela estava atrasada por 10 minutos. Justo ela, que tinha pavor de atrasos. Ele esboçou um sorriso, quando, numa ilusão auditiva, escutou um "Essas pessoas pagaram ingresso pra ver na hora marcada. Vão ficar sentidas se eu demorar muito para chegar". Ainda podia sentir o sabor de gim que vinha da boca de sua estrela, minutos antes de conversar com ela no camarim. Invariavelmente, ele passava para lá e dizia "casa lotada". Mas naquela noite ele via lugares desocupados.

As luzes se apagaram. Vieram as primeiras notas, e triunfalmente, ela saiu da coxia, desfilando enquanto cantava um de seus sucessos mais retumbantes. Recebeu os primeiros e efusivos aplausos. Agradeceu à presença de todos, e ao final soltou um "vocês nunca me abandonam". Ele sentiu-se constrangido. Talvez alguém o tivesse reconhecido por baixo do disfarce e contado para ela de sua presença.

A voz dela continuava belíssima, só que ele percebeu que em meio a tanta afinação, ouvia um tom desafinado pela amargura. De cima, não conseguia ver direito o rosto dela. A cantora ficava o tempo todo embaixo da luz, e ficavam evidenciados os muitos brilhos que tinham em seu vestido.

Não resistiu. Tinha de vê-la mais uma vez. A cada música, ficava mais intensa a saudade de sua voz. E ele cantava, cantava, e como era cruel cantar assim depois de tanto tempo. Desde que saíra de casa, evitava escutar seus discos, mudava de estação quando anunciavam o nome dela. Chegava a mudar de calçada quando aparecia um cartaz no qual ela aparecesse.

A última imagem era a mais cruel. O rosto dela, com os lábios ensanguentados. Dos olhos, intensos de paixão e vorazes de desejo, restara um olhar ferino de ódio, de um ódio entristecido. Da voz, que ele achava afinada até mesmo quando ela sussurrava carícias sensuais, viera uma desafinação amarga, entre soluços de choro. E o último verso tinha sido um "você nunca mais encosta a mão em mim".

Não teve pudores. Retirou o disfarce. Desceu as escadas. Atravessou entre as mesas, e chegou a uma distância que pudesse vê-la melhor sem que fosse visto. Começava aquela música. Sim, talvez fosse o maior sucesso dela, mas não achava que ela ainda incluísse a canção no repertório. A única parceria deles. O único momento no qual ele se atrevera a fazer uma letra.

Estático. De pé, próximo ao bar, ouviu-a com uma ternura ainda maior do que quando eram namorados. Parecia que finalmente a conhecia. O intimismo com o qual ela cantou, carregada de emoção, quase num grito de resistência. De perfil, ela soltou a voz no último verso, e desabou no palco.

Aos poucos, foi se recompondo, e deixou-se dominar pelo sorriso de satisfação diante dos aplausos febris. Experimentou um certo carinho em seu ego, quando viu nos rostos daqueles bêbados que eles estavam a se rasgar por ela.

Mas ao virar-se para o lado do bar, os olhos dela se cruzaram. As luzes da plateia já estavam acesa, e ele teve certeza de que foi visto. O semblante dela, cercado da alegria que costumeiramente acontecia entre os dois, se fechou subitamente num susto. Ele, de pé, repentinamente fechou o sorriso e ficou constrangido de continuar com os aplausos. Tentou recuperar-se, num riso amarelo e em palmas insossas.

Ela esboçou novo sorriso e saiu, a passos largos em direção à coxia. Vieram os pedidos de "bis". Mas a casa de shows logo colocou uma gravação na qual agradecia à presença de todos e anunciava os espetáculos dos outros dias.

Ele ficou assustado. Era a primeira vez que ela não voltava ao palco para o bis. Quis sair da casa, mas foi abordado por um dos funcionários, que o disse para ir ao caixa pagar a conta.

Dominado pela angústia, viu que era inútil achar que a fila se dissiparia logo. Lamentou ter como última lembrança do maravilhoso espetáculo uma expressão fechada e a imagem de uma fuga desesperada. E vindo de um rosto que ele tanto gostava de acariciar.

Com a conta paga, saiu e foi em direção ao seu carro. No meio do caminho, notou que estava fazendo o mesmo trajeto ao qual era guiado pela solidão. Ia parar num lugar cercado de prostitutas, e entre elas escolheria a mais parecida com sua cantora.

Sabia que o repertório daquela companhia descartável seria muito inferior. De sua voz, viriam sussurros fingidos, mecânicos, prontos para fazê-lo vaidoso sentir-se o maior, e que possuía não o corpo da moça, mas o corpo que sabia que nunca mais ficaria ao seu alcance. Num instinto, parou o carro próximo ao meio-fio. E, com a cabeça no vidro do carro, chorou, chorou, até ficar com dó de si.



BASTIDORES, de Chico Buarque

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Bola na rede

Alguns anos atrás, a seção Prosa & Verso, do jornal O Globo, abriu um concurso com o tema futebol. Este que vos escreve mandou um conto, que foi cortado da lista final, e ficou esquecido nos arquivos.

Quatro anos depois, ao pensar em como registrar uma homenagem do Diário de um salafrário ao Dia das Crianças, veio a lembrança deste texto, que fala sobre uma amizade de infância, tendo como pano de fundo o esporte mais popular do país.

Com algumas adaptações (coisa de escritor perfeccionista), incluindo a mudança de título, segue o texto. Fiquem à vontade pra comentar.

Grato,

Vinícius Faustini


*****

O nascimento de uma grande amizade apareceu na mesma época em que veio a paixão pelo futebol. Antônio tinha oito anos e Luciano seis quando os dois, no mesmo bar, viram seus pais e uma multidão com a camisa cruzmaltina vibrar depois que a bomba de Cocada morreu no fundo da rede de Zé Carlos, aos 44 do segundo tempo.

O 1 a 0 do Vasco em cima do Flamengo causou nos garotos uma sensação de euforia que parecia não acabar nunca. Por um momento, os vascaínos Antônio e Luciano podiam sorrir e esquecer da penúria em que viviam. Mais do que nunca, o grito de “é campeão” trazia um alento pra duas crianças que não sabiam o que era alegria.

No dia seguinte, os dois foram para a escola com a camisa do Vasco, e passaram toda a hora do recreio no campinho improvisado. Tentavam repetir o lance do gol de Cocada, Antônio chutando e Luciano no gol.

Os problemas de casa tomaram conta das conversas dos garotos. Mais do que amigos, eram confidentes, com histórias que coincidiam, como a infância pobre e a falta de suas mães, ambas mortas no parto. Já pareciam aceitar a situação, quando Luciano sugeriu ao amigo:

" – Toninho, por que é que a gente não vai jogar futebol?"

Diante do espanto de Antônio, ele continuou:

" – É! Já pensou? Você fazendo igual o Cocada, que acabou de entrar e deu título pro Vasco?" – e improvisou uma narração – "e lá vai Geovani, passa por Edinho, estica pra Bismarck, ele passa pra Toninho, Toninho apontou e gol!"

Toda a rua ouviu o grito de gol e a comemoração dos dois garotos. Decidiram. Convenceram os pais a levá-los na escolinha do Vasco, e começaram a jogar. Por ter uma altura acima da média, Luciano foi para o gol.

Antônio, agora Toninho, mostrou habilidade com os pés, mas era muito franzino. Além disso, tinham outros jogadores com o mesmo talento e sem necessidade de tratamento físico. Acabou dispensado. Ainda tentou vaga no Botafogo, Fluminense, e acabou no Madureira.

Prestes a ganhar uma chance nos profissionais do Vasco, Luciano recebeu uma proposta irrecusável: jogar num time do Japão, com um salário bom o suficiente para sustentar o pai no Brasil. Ele e Toninho choraram muito na despedida, mas Luciano avisou:

" – Um dia eu volto. Mas de lá do Japão dou um jeito de mandar uma grana pra você e seu pai".

Toninho agradeceu, esboçou um sorriso, mas estava muito triste por imaginar a falta do amigo para apóiá-lo num recomeço em qualquer clube. Até o momento não conseguia se firmar em nenhum time. Seu melhor momento tinha sido no Bangu, quando fez um belo gol de falta num empate contra o Botafogo.

Oito anos depois, Luciano voltou ao Brasil. O período no futebol japonês foi proveitoso, mas a vontade de retornar estava cada vez mais forte. Com 28 anos, acertou sua volta para o Vasco, clube onde tudo começou – sua carreira no futebol e sua amizade com Toninho.

Toninho não acreditou quando ouviu o amigo dizer:

" – Estou de volta. Já vi na tabela que a gente vai se enfrentar na última rodada. Garante o seu que eu garanto o meu".

A tabela marcava para a última rodada da Taça Rio a partida do Vasco de Luciano contra o Olaria de Toninho. A ideia do goleiro era que os dois times ficassem bem colocados, e o jogo fosse um reencontro dentro das quatro linhas.

No entanto, o campeonato não transcorreu tão bem assim. Com alguns tropeços contra times de menor expressão, o Vasco chegou à última rodada tendo de vencer o Olaria para ir à final da Taça Rio. Já o Olaria estava numa grande crise, disputando ponto a ponto com a Portuguesa da Ilha do Governador para não ser rebaixado.

Os dois entraram em campo divididos. Sabiam que precisavam honrar a camisa de seus respectivos times, como profissionais do futebol. No entanto, uma derrota poderia ser muito dolorosa para qualquer um dos lados.

A partida começou, e o primeiro tempo trouxe poucas chances de gol. Luciano não teve trabalho nas poucas vezes em que foi exigido, e Toninho mal conseguiu tocar na bola com um jogo tão truncado.

No intervalo, Luciano descia para o vestiário quando ouviu, do outro lado, a bronca do técnico do Olaria:

" – Com esse timeco a gente não vai chegar a lugar nenhum. Escuta bem, se não der pra fazer um gol no início e ganhar, já era. Todo mundo na rua. Inclusive eu!"

Antes do reinício do jogo, Luciano e Toninho se viram pela primeira vez desde o início da partida. Apesar da insegurança com sua situação no Olaria, Toninho tentou sorrir quando viu o amigo de infância ostentando a camisa 1 do Vasco. Luciano recordou os problemas que Antônio teve desde o começo da carreira, e se sentiu bem ao olhar para ele, por ver que agora eram colegas de profissão. Atrás do sonho de uma vida melhor, de uma felicidade que buscavam desde meninos.

Luciano correu em silêncio até o gol. Toninho foi para o centro do meio-de-campo, à espera do apito para começar o segundo tempo. Nenhum dos dois sabia exatamente o que estava sentindo.

Com poucos minutos da etapa final, um cabeça-de-área do Olaria roubou a bola no centro do campo e jogou para frente. A bola sobrou para Toninho na intermediária, e pegou a zaga vascaína desprotegida.

Sem hesitar, Toninho direcionou a bola para o gol. O coração pulsava, esperando o resultado do lance. Mas o chute saiu mascado, seria fácil a defesa do goleiro. Luciano ficou atento. Não à bola, mas à frustração de Toninho. Sabia que era a melhor chance do jogo, e que também estava em jogo o futuro do amigo como jogador.

O tempo entre o chute de Toninho e a chegada da bola a Luciano parecia uma eternidade. Por um momento, os dois pensaram nas suas trajetórias. Na decisão de jogar futebol, nos motivos que fizeram com que eles fossem para esse caminho. No sucesso de um, nas frustrações do outro.

O estádio agora era o de São Januário, mas a recordação do gol de Cocada no Maracanã tomava conta daqueles meninos em campo. A bola chegou até Luciano. O goleiro, lentamente, se agachou para pegá-la, mas ela escorreu entre seus dedos e passou por suas pernas até, lentamente, atravessar a linha do gol.

Os outros jogadores comemoraram como se fosse um título. Mas, atônito, Toninho não comemorou o gol. Caminhou em silêncio e foi esperar a saída de meio-de-campo. Luciano pediu para ser substituído. Reclamou que tinha deslocado um dos dedos.

Em vez de ir embora, passou o resto do jogo no vestiário, com um radinho de pilha no ouvido, esperando o final. Confirmada a vitória do Olaria por 1 a 0, dirigiu-se para o vestiário do time adversário.

Viu Toninho retirando os meiões, e estendeu a camisa 1 para ele. O amigo espantou-se com a presença dele. Ia balbuciar alguma coisa, mas foi interrompido por Luciano:

" - Golaço, hein?".

Não, não tinha sido um golaço, e Luciano sabia bem disso. Se não soubesse, saberia através das resenhas esportivas de rádio e televisão, além das reportagens que circulariam nos jornais do dia seguinte, que tinha cometido uma falha clamorosa, falha que custara a eliminação do Vasco na Taça Rio. Mas o que importava naquele momento era a certeza de que não tinha falhado com o amigo, quando ele mais precisara.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Todo sentimento

"Foi bom pra você?".

Ele mesmo sabia que não tinha sido, mas não custava nada tentar demonstrar compaixão. Antes de dormir, ainda foi obrigado a ver a crueza do olhar dela, tão feroz em meio àquele rosto fechado pela amargura. Ele levantou-se e foi ao banheiro, lamentando pela má ideia que teve de compartilhar um desejo sexual com quem não merecia.

Olhou-se no espelho. Teve raiva por ver que aceitava que o casamento acabava com o resto de sua vida. Suspirou, e refletiu que já estava com idade avançada para ficar sozinho. E provavelmente ela pensava o mesmo. Por isto que ela o tolerava nas poucas vezes em que era dominado por uma volúpia tão incontrolável a ponto de precisar de outra pessoa para dividir sua solidão.

Escutou o som dela, que já se entregava ao sono e estava alheia a qualquer prazer que acontecera nos instantes anteriores. Sim, estava acostumado a tanta indiferença vinda do próprio quarto. Mas pela primeira vez deixou-se levar por uma amargura de um amor que deteriorou-se pouco a pouco.

Ligou a ducha de água quente. Fechou os olhos e aos poucos foi desenhando as feições da mulher que amara intensamente. A memória turvava, a vista penava para encontrar, em meio a recentes tristezas, os longínquos momentos cercados de alegria e de êxtase. Nos quais não era necessário perguntar se havia sido bom para ela, pois ambos sabiam a ternura que envolvia cada sentimento.

Das feições, passou a desenhar os traços do corpo no qual ele podia se esquentar a cada noite. E a cada gota, ele tentava reviver a própria quentura. Reconstituía aquelas carícias. O carinho dos lábios a rodear pela orelha, pelo rosto e pelos lábios dela. Seus dedos longos se perdendo nas costas, cravando a unha com tanta voracidade que ambos sentiam sem qualquer pudor.

Aquilo tudo tão vivo, tão presente, tão real, tão intenso, cada vez mais intenso. E ele mergulhava, transbordando uma sensualidade guardada durante anos. Ansiava por distinguir todos os cheiros dos momentos vividos naquela quentura. Mas não esboçou nenhum receio quando o cheiro de gás começou a se espalhar pelo banheiro.

Estava esparramado em suas lembranças, tão ternas, tão densas, e sua alma se aproveitava de todas as vontades que estavam ao seu alcance. Quando se permitiu ficar extasiado, foi completamente sufocado pelo gás do aquecedor. Mas levou consigo a certeza de que em seus últimos minutos de vida compensara os tantos anos nos quais morrera atado à infelicidade de um casamento.