Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Decisão

As palavras finais no telefonema foram:

" - Você vai chorar amanhã".

A voz era relativamente alterada pelo álcool, mas do outro lado da linha, ele, sóbrio, ouvia aquilo e sentia-se mais seguro em sua decisão. Sem resposta, desligou o telefone. Foi até a cômoda. Abriu a gaveta. Ao lado da flâmula antiga com o símbolo de seu time de coração, estava a foto do outro. Olhou-a. Num instinto, cuspiu na direção do rosto retratado e, logo em seguida, guardou a foto.

Desviou o olhar para o relógio. Passava da meia-noite. O jogo seria às quatro da tarde. Tinha tempo para digerir as doses de rancor com tudo que ainda viria pela frente.

Demorou a dormir, e só acordou por volta das onze horas com o barulho do celular. Olhou no visor. Era o outro de novo. Em vez do "alô", ouviu como saudação o grito do nome de um clube. Respondeu com um "oi" seco. Estava frio por dentro. Esperou as palavras de provocação cessarem para dizer:

" - Passo na sua casa à uma, e de lá a gente vai pro estádio".

Do outro lado da linha, veio a recomendação de que ele levasse lenços brancos. Sua resposta foi um "não, obrigado", seguido do ato de desligar o celular. Por volta do meio-dia, comeu alguma coisa. Tomou um banho. Arrumou-se, com o cuidado de deixar por último a camisa de seu clube de coração. Pegou a carteira e as chaves de casa e do carro.

Deu a partida e passou o caminho em silêncio. Viu as bandeiras de seu clube e do adversário da tarde. Perto do local que combinou, ligou e disse "desce". Ouviu como resposta o mesmo grito que mais cedo escutara como saudação. Desligou e continuou o percurso.

Viu o outro entrar no carro. Seguiu em silêncio, enquanto o rapaz alternava o grito constante com comentários sobre o time que torcia. Fazia previsões sobre a humilhação ao rival. Em resposta, o silêncio.

Avistaram o entorno do estádio às duas e meia. Mais vinte minutos, acharam um local para estacionar o carro. Ele começou a esboçar um sorriso quando viu torcedores com camisas e bandeiras de seu time desfilando pela rua. Alegria logo interrompida novamente pela veemência da mesma voz:

" - Tudo sofredor que nem você".

Olhou para o relógio. Já faltava uma hora para o jogo. Começaram a se encaminhar para o setor que permitiria que os dois assistissem à partida lado a lado.

Entraram, sentaram-se e esperaram mais meia hora. Seu time entrou primeiro. Resumiu-se a bater palmas, enquanto ao seu lado vinham vaias e provocações diversas. O adversário entrou em campo. Limitou-se a ver, e o outro esganiçava a voz para declarar juras de amor.

A bola rolou. Preparou-se para ficar 90 minutos com um olho no campo e outro nas reações que viriam ao seu lado.

Era quase estático, um verdadeiro contraste com os movimentos que vinham das jogadas do gramado e das reações das arquibancadas. O jogo era bom, equilibrado, com chances de gol. Apreensão e expectativa se alteravam dentro dele. O outro explodia o que sentia em gestos e palavras. Fim de primeiro tempo. Empate.

O outro foi ao banheiro. Ele prosseguiu atento. Suava frio com o olhar no campo vazio. Tinha a seu redor o silêncio de um estádio vazio, mesmo na companhia de mais de 70 mil pessoas.

Segundo tempo, e praticamente o mesmo panorama. A diferença era que seu time começava a errar passes e permitia a chegada adversária. O outro se inflamava e já o chamava de freguês, de sofredor. Tudo intercalado com o grito ao pé do ouvido, que repetia o nome do clube rival.

Últimos minutos. Seu time cada vez mais acuado. Chutes que iam perto do gol. Goleiro se consagrando a cada defesa. Zagueiros se superando. Placar em branco. Seus sentimentos em branco.

Acréscimos. Um ataque rival é desarmado na lateral. A bola chega à intermediária vazia. O atacante vai em velocidade, supera o zagueiro adversário na corrida. O goleiro se desespera, sai da área e arrisca um carrinho. Em vão. A bola sela seu destino na rede.

Seu silêncio é interrompido pelo grito emocionado de gol. Bate no peito e berra o nome de seu time. Depois, observa a reação do outro. Desolado. Frustrado. Abatido.

Fim de jogo. Ele ouve as reclamações ao seu lado. Árbitro comprado, sorte adversária...

Saem do estádio. Andam até o local onde está o carro. Ele paga o flanelinha e os dois entram. Passam pelo engarrafamento natural de pós-jogo com casa cheia.

Aos poucos, o caminho vai ficando mais tranquilo. Mais deserto. Mais ermo. O outro substitui os lamentos da derrota por um ar de estranheza.

Serenamente, ele para o carro. Abre o porta-luvas, estica-se para abrir o banco do carona e empurra o outro para fora. Fecha as portas com trinco e corre para ver o outro caído. Sorri e aponta uma arma na altura da cabeça dele. Um esboço de movimento é suficiente para ele irromper o silêncio:

" - No chão! No chão!" - a voz vem com frieza.

O outro desliza o olhar pelo asfalto, mas logo ouve:

" - Olha pra mim!".

Obecede e escuta:

" - Quem é que ia chorar hoje?" - nova pausa - "Quem?".

Vê o outro em silêncio, e tripudia:

" - Grita o nome do teu time agora".

Espera, atento em sua alegria sádica. Ouve o outro dizer:

" - Você é meu irmão..."

Logo o interrompe:

" - Coisa que você esqueceu nesta semana!".

Silêncio. Abre o sorriso ao ver o outro chorando. Segura a gargalhada para dizer:

" - Acabou! Acabou! E eu ganhei... Eu sou campeão!".

" - Para com essa brincadeira..."

Direciona a arma para a cabeça do irmão, e fala:

" - Fim de jogo!".

O irmão fecha os olhos, resignado.

Primeiro tiro. Um grito ensurdecedor de gol. Segundo tiro. No peito. E um doce grito com o nome de seu time de coração. O corpo do outro fica estático, esvaído no sangue de uma derrota.

Ele entra no carro. Pisa fundo no acelerador. Parte e começa a buzinar. Sorri, gritando alucinadamente "é campeão". Saboreava com sangue o doce prazer da sua vitória.

*****

Que prazer, depois de tanto tempo, rever você, inspiração. Foi falta de tempo com tudo o que aconteceu em 2011. Sei que suas visitas são mais inconstantes, mas você será sempre bem-vinda quando quiser chegar.

Assim como todos os leitores que quiserem aparecer por aqui.

Vinícius Faustini

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Microconto do salafrário

Mais uma tentativa de microconto nos moldes do Twitter - em 140 caracteres, e sem título.

*****

Olhares. Mãos dadas. "Sim". Pularam. Eram um misto de desamor e dependência. Era melhor terminar assim. Juntos, se separavam pra sempre.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Inferno

"Você não disse que eu estava bonita..."

Um pouco bêbada, muito mansa, esta foi a forma de pedir um pouco de carinho depois da festa. Já fazia um tempo que se acostumara com a falta de amor e se fingia feliz apenas com o fato de adormecer e acordar ao lado dele na cama. Num suspiro de enfado, ele se encaminhou para o quarto.

Chorosa, ela se escondeu no banheiro e começou o ritual de desfazer a maquiagem. Suas primeiras lágrimas começavam a deslizar no seu rosto quando ouviu o primeiro ressonar dele. Sentiu amargura pois passaria por mais uma noite mal-dormida e de um tédio que não iria embora com o clarear do dia. Olhou-se de novo e se achou mais bonita. Experimentou sorrir, mas seu sonho foi interrompido por um ronco. O segundo ronco despertou nela uma irritação, que a fez se ver no espelho com um novo reflexo de olhar.

Com os olhos, se devorava. Se via mais sensual. Mais desejável. Retocou o pouco de maquiagem que se esvaiu em seu choro. Abriu o estojo de batons, e escolheu o mais avermelhado. Numa carícia ao ego, deu um beijo no espelho.

Revirou o armário até achar uma peruca. Saiu do quarto na ponta dos pés. Tomou um café na cozinha, e esperou por alguns instantes até sentir-se sóbria. Procurou os sapatos na sala. Pegou a bolsa. No elevador, deixou o vestido mais decotado e, alegre, sussurrou um "gostosa" para sua própria imagem. Foi até a garagem, saiu com o carro. Com a memória pouco sóbria, rodou alguns quarteirões até chegar ao local que queria. Àquela hora, não era recomendável pedir informações, e muito menos revelar em qual destino pretendia chegar.

Desceu do carro. Olhou para o relógio do celular, que marcava três e meia. Respirou fundo e adentrou pela porta do inferninho. A música techno tinha o compasso de um bate-estaca. Uma estaca que cravara em seu coração a certeza da indiferença na qual estava entregue.

Casais se abraçavam. Trios se abraçavam. Mulheres e homens se ofereciam a ela. Encabulada, ela notava o ambiente com ares temerosos. Pediu uma bebida - a mais forte - e colocou o dinheiro na mão do barman. Bebeu num gole só e teve vontade de dançar no balanço da música. Viu as mulheres, tão selvagens no pole dance, e, enquanto passava dançando pela pista, sentiu mãos fortes apertarem sua bunda.

Aproveitou o palco vazio e subiu. Não discernia rostos, mas gostava de ouvir os aplausos e os elogios gritados por ambos os sexos. Colocou o dedo indicador em sua boca, e foi descendo no ritmo do "chão, chão, chão" que ouvia da plateia que agora era toda sua.

Levantou-se e passou a mão por seu colo até exibir um pouco mais do seio. Com a outra mão, colocou o outro seio para fora do decote. Virou-se de costas e foi subindo o vestido até exibir um pouco da calcinha. As pessoas pediram para ela tirar, e ela, passando a língua entre os lábios, jogou o vestido no chão. Jogou também um beijo para o velho com cara de caipira que lhe erguia uma taça de champagne.

Empinou a bunda e colocou para a frente seus seios médios. Balançou o corpo e, de costas para a plateia, desabotoou o sutiã e colocou-o em seus dentes. Com olhar sensual, escolheu um homem e atirou o sutiã na direção dele. Colocou os seios em suas mãos e fez menção de quem estava servindo para seus espectadores. Erótica, passou a língua num dos mamilos, e fechou os olhos para ouvir melhor as explosões de desejo que seus gestos despertavam.

Exibiu a bunda vestida com uma calcinha. A calcinha fio-dental vermelha que escolhera para o homem que amara e, novamente de costas para a plateia, rebolou ao som de seu instinto. Já não descia o corpo e subia com a ansiedade de quem queria se perder no corpo de seu amado. A sensação era a de ser deflorada por completo por todos aqueles que agora a admiravam.

Com as pontas dos dedos, foi descendo a calcinha até as canelas. Virou-se de frente para o público. Sentada no palco vagabundo do inferninho, com o sexo escancarado, atirou a calcinha na direção de um sujeito malhado que vestia camiseta. Dançava freneticamente, alegre, solta, alternando entre a volúpia de ser possuída por muitos olhares e o êxtase de quem se descobria em meio a tanto desejo guardado.

A música acabou. Agradeceu os aplausos. Escondeu novamente o corpo no vestido. Passeou pela pista com uma incredulidade capaz de deixá-la apenas agradecida a tantos assédios que despertara com apenas uma dança.

Saiu da boate. Na porta do estacionamento, hesitou por um instante. Voltou até a porta e perguntou ao segurança o horário do fechamento. Ele respondeu "seis horas". Ela olhou para o relógio do celular. Tinha ficado apenas meia hora.

Riu alto. Foi até o carro. Deu a partida, mas logo desligou novamente. Teve angústia por saber que, ao voltar para casa, sua outra face a abandonaria novamente. Quis viver mais um pouco, mesmo ciente de que logo voltaria a morrer em seu tédio.

Só que agora, ela queria viver um pouco mais daquele breve sonho sozinha. E depois de exibir sua beleza aos olhos de tantas pessoas sedentas de prazer, deitou-se com sua nudez no banco de trás do carro. Fez do vestido cheirando a uísque falsificado o seu cobertor. E caiu adormecida, amparada por todo o paraíso que encontrara dentro de um inferninho.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

O primeiro microconto de 2011

Neste reinício do Diário de um salafrário, este que vos escreve se arrisca novamente no formato de microconto. Um aperitivo para tanta coisa por dizer em 2011.

Abraços a todos,

Vinícius Faustini


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Lingerie. Perfume. Olhar sedutor. Pele arrepiada. Desejo de ser amada. Em resposta, indiferença. E um breve "vamos dormir".