Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Coxia

A imprensa vem anunciando nas últimas semanas que a TV Globo está produzindo um seriado inteiro em homenagem a Chico Buarque. Serão episódios independentes, cada um em homenagem a uma canção de sua maravilhosa obra. Este humilde salafrário resolveu se arriscar neste desafio, mas através das letras.

A canção que inspirou o conto que segue aparece ao final, numa gravação do You Tube. Trata-se de uma belíssima canção que Chico Buarque fez especialmente para Cauby Peixoto.

Fiquem à vontade para comentar.

Vinícius Faustini


*****

COXIA

A Chico Buarque

Sob o olhar de espanto da bilheteira, escolheu o lugar mais distante do palco. Enquanto passava o dedo pelo painel da plateia, não sabia se sua atitude era para não ser visto ou por receio de que seus olhos enchessem definitivamente de lágrimas ao ver a imagem tão doce dela cantando. Sentou no lugar marcado e chamou a garçonete para pedir um suco de laranja. Num instante, decidiu ficar sóbrio durante toda aquela apresentação.

Tinha sido o primeiro a chegar. Assim como fazia em todos os shows dela. Gostava de ouvir a casa de espetáculos sendo tomada por burbúrios de espectadores. Via cada vez mais pessoas chegando, rostos sorridentes, e à medida que se aproximava da hora do show, mais as conversas iam girando em torno dela. Do talento dela, da voz dela, do repertório dela, do quanto ela é gostosa.

Olhou para o relógio. Ela estava atrasada por 10 minutos. Justo ela, que tinha pavor de atrasos. Ele esboçou um sorriso, quando, numa ilusão auditiva, escutou um "Essas pessoas pagaram ingresso pra ver na hora marcada. Vão ficar sentidas se eu demorar muito para chegar". Ainda podia sentir o sabor de gim que vinha da boca de sua estrela, minutos antes de conversar com ela no camarim. Invariavelmente, ele passava para lá e dizia "casa lotada". Mas naquela noite ele via lugares desocupados.

As luzes se apagaram. Vieram as primeiras notas, e triunfalmente, ela saiu da coxia, desfilando enquanto cantava um de seus sucessos mais retumbantes. Recebeu os primeiros e efusivos aplausos. Agradeceu à presença de todos, e ao final soltou um "vocês nunca me abandonam". Ele sentiu-se constrangido. Talvez alguém o tivesse reconhecido por baixo do disfarce e contado para ela de sua presença.

A voz dela continuava belíssima, só que ele percebeu que em meio a tanta afinação, ouvia um tom desafinado pela amargura. De cima, não conseguia ver direito o rosto dela. A cantora ficava o tempo todo embaixo da luz, e ficavam evidenciados os muitos brilhos que tinham em seu vestido.

Não resistiu. Tinha de vê-la mais uma vez. A cada música, ficava mais intensa a saudade de sua voz. E ele cantava, cantava, e como era cruel cantar assim depois de tanto tempo. Desde que saíra de casa, evitava escutar seus discos, mudava de estação quando anunciavam o nome dela. Chegava a mudar de calçada quando aparecia um cartaz no qual ela aparecesse.

A última imagem era a mais cruel. O rosto dela, com os lábios ensanguentados. Dos olhos, intensos de paixão e vorazes de desejo, restara um olhar ferino de ódio, de um ódio entristecido. Da voz, que ele achava afinada até mesmo quando ela sussurrava carícias sensuais, viera uma desafinação amarga, entre soluços de choro. E o último verso tinha sido um "você nunca mais encosta a mão em mim".

Não teve pudores. Retirou o disfarce. Desceu as escadas. Atravessou entre as mesas, e chegou a uma distância que pudesse vê-la melhor sem que fosse visto. Começava aquela música. Sim, talvez fosse o maior sucesso dela, mas não achava que ela ainda incluísse a canção no repertório. A única parceria deles. O único momento no qual ele se atrevera a fazer uma letra.

Estático. De pé, próximo ao bar, ouviu-a com uma ternura ainda maior do que quando eram namorados. Parecia que finalmente a conhecia. O intimismo com o qual ela cantou, carregada de emoção, quase num grito de resistência. De perfil, ela soltou a voz no último verso, e desabou no palco.

Aos poucos, foi se recompondo, e deixou-se dominar pelo sorriso de satisfação diante dos aplausos febris. Experimentou um certo carinho em seu ego, quando viu nos rostos daqueles bêbados que eles estavam a se rasgar por ela.

Mas ao virar-se para o lado do bar, os olhos dela se cruzaram. As luzes da plateia já estavam acesa, e ele teve certeza de que foi visto. O semblante dela, cercado da alegria que costumeiramente acontecia entre os dois, se fechou subitamente num susto. Ele, de pé, repentinamente fechou o sorriso e ficou constrangido de continuar com os aplausos. Tentou recuperar-se, num riso amarelo e em palmas insossas.

Ela esboçou novo sorriso e saiu, a passos largos em direção à coxia. Vieram os pedidos de "bis". Mas a casa de shows logo colocou uma gravação na qual agradecia à presença de todos e anunciava os espetáculos dos outros dias.

Ele ficou assustado. Era a primeira vez que ela não voltava ao palco para o bis. Quis sair da casa, mas foi abordado por um dos funcionários, que o disse para ir ao caixa pagar a conta.

Dominado pela angústia, viu que era inútil achar que a fila se dissiparia logo. Lamentou ter como última lembrança do maravilhoso espetáculo uma expressão fechada e a imagem de uma fuga desesperada. E vindo de um rosto que ele tanto gostava de acariciar.

Com a conta paga, saiu e foi em direção ao seu carro. No meio do caminho, notou que estava fazendo o mesmo trajeto ao qual era guiado pela solidão. Ia parar num lugar cercado de prostitutas, e entre elas escolheria a mais parecida com sua cantora.

Sabia que o repertório daquela companhia descartável seria muito inferior. De sua voz, viriam sussurros fingidos, mecânicos, prontos para fazê-lo vaidoso sentir-se o maior, e que possuía não o corpo da moça, mas o corpo que sabia que nunca mais ficaria ao seu alcance. Num instinto, parou o carro próximo ao meio-fio. E, com a cabeça no vidro do carro, chorou, chorou, até ficar com dó de si.



BASTIDORES, de Chico Buarque

Um comentário:

Carmen Augusta disse...

Olá Vinicius!

Muito bem escrita, como sempre, e envolvente.
Mas triste...
Se Chico ler ou outro grandão da Globo ler, com certeza vão gostar, como eu gostei.
Não, acho que eu gostei mais, porque li com uma dose muito grande de carinho.

Parabéns meu amigo, você está cada vez melhor, viu?

Beijos,
Carmen Augusta