"Foi bom pra você?".
Ele mesmo sabia que não tinha sido, mas não custava nada tentar demonstrar compaixão. Antes de dormir, ainda foi obrigado a ver a crueza do olhar dela, tão feroz em meio àquele rosto fechado pela amargura. Ele levantou-se e foi ao banheiro, lamentando pela má ideia que teve de compartilhar um desejo sexual com quem não merecia.
Olhou-se no espelho. Teve raiva por ver que aceitava que o casamento acabava com o resto de sua vida. Suspirou, e refletiu que já estava com idade avançada para ficar sozinho. E provavelmente ela pensava o mesmo. Por isto que ela o tolerava nas poucas vezes em que era dominado por uma volúpia tão incontrolável a ponto de precisar de outra pessoa para dividir sua solidão.
Escutou o som dela, que já se entregava ao sono e estava alheia a qualquer prazer que acontecera nos instantes anteriores. Sim, estava acostumado a tanta indiferença vinda do próprio quarto. Mas pela primeira vez deixou-se levar por uma amargura de um amor que deteriorou-se pouco a pouco.
Ligou a ducha de água quente. Fechou os olhos e aos poucos foi desenhando as feições da mulher que amara intensamente. A memória turvava, a vista penava para encontrar, em meio a recentes tristezas, os longínquos momentos cercados de alegria e de êxtase. Nos quais não era necessário perguntar se havia sido bom para ela, pois ambos sabiam a ternura que envolvia cada sentimento.
Das feições, passou a desenhar os traços do corpo no qual ele podia se esquentar a cada noite. E a cada gota, ele tentava reviver a própria quentura. Reconstituía aquelas carícias. O carinho dos lábios a rodear pela orelha, pelo rosto e pelos lábios dela. Seus dedos longos se perdendo nas costas, cravando a unha com tanta voracidade que ambos sentiam sem qualquer pudor.
Aquilo tudo tão vivo, tão presente, tão real, tão intenso, cada vez mais intenso. E ele mergulhava, transbordando uma sensualidade guardada durante anos. Ansiava por distinguir todos os cheiros dos momentos vividos naquela quentura. Mas não esboçou nenhum receio quando o cheiro de gás começou a se espalhar pelo banheiro.
Estava esparramado em suas lembranças, tão ternas, tão densas, e sua alma se aproveitava de todas as vontades que estavam ao seu alcance. Quando se permitiu ficar extasiado, foi completamente sufocado pelo gás do aquecedor. Mas levou consigo a certeza de que em seus últimos minutos de vida compensara os tantos anos nos quais morrera atado à infelicidade de um casamento.
Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.
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2 comentários:
Olá Vinicius!
O que faz um casamento infeliz!
Mas Vini, será que um dia você escreverá um conto com final feliz?
Beijos da amiga,
Carmen Augusta
Oi meu poetinha...
Como sempre cheio de supresas e concordo com minha madrinha, finais trágicos, rs
Mas na verdade trágica foi a vida dele né? Viver sem amor é morrer aos poucos...
Parabéns, belo texto!
Beijos azuisss
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