As palavras finais no telefonema foram:
" - Você vai chorar amanhã".
A voz era relativamente alterada pelo álcool, mas do outro lado da linha, ele, sóbrio, ouvia aquilo e sentia-se mais seguro em sua decisão. Sem resposta, desligou o telefone. Foi até a cômoda. Abriu a gaveta. Ao lado da flâmula antiga com o símbolo de seu time de coração, estava a foto do outro. Olhou-a. Num instinto, cuspiu na direção do rosto retratado e, logo em seguida, guardou a foto.
Desviou o olhar para o relógio. Passava da meia-noite. O jogo seria às quatro da tarde. Tinha tempo para digerir as doses de rancor com tudo que ainda viria pela frente.
Demorou a dormir, e só acordou por volta das onze horas com o barulho do celular. Olhou no visor. Era o outro de novo. Em vez do "alô", ouviu como saudação o grito do nome de um clube. Respondeu com um "oi" seco. Estava frio por dentro. Esperou as palavras de provocação cessarem para dizer:
" - Passo na sua casa à uma, e de lá a gente vai pro estádio".
Do outro lado da linha, veio a recomendação de que ele levasse lenços brancos. Sua resposta foi um "não, obrigado", seguido do ato de desligar o celular. Por volta do meio-dia, comeu alguma coisa. Tomou um banho. Arrumou-se, com o cuidado de deixar por último a camisa de seu clube de coração. Pegou a carteira e as chaves de casa e do carro.
Deu a partida e passou o caminho em silêncio. Viu as bandeiras de seu clube e do adversário da tarde. Perto do local que combinou, ligou e disse "desce". Ouviu como resposta o mesmo grito que mais cedo escutara como saudação. Desligou e continuou o percurso.
Viu o outro entrar no carro. Seguiu em silêncio, enquanto o rapaz alternava o grito constante com comentários sobre o time que torcia. Fazia previsões sobre a humilhação ao rival. Em resposta, o silêncio.
Avistaram o entorno do estádio às duas e meia. Mais vinte minutos, acharam um local para estacionar o carro. Ele começou a esboçar um sorriso quando viu torcedores com camisas e bandeiras de seu time desfilando pela rua. Alegria logo interrompida novamente pela veemência da mesma voz:
" - Tudo sofredor que nem você".
Olhou para o relógio. Já faltava uma hora para o jogo. Começaram a se encaminhar para o setor que permitiria que os dois assistissem à partida lado a lado.
Entraram, sentaram-se e esperaram mais meia hora. Seu time entrou primeiro. Resumiu-se a bater palmas, enquanto ao seu lado vinham vaias e provocações diversas. O adversário entrou em campo. Limitou-se a ver, e o outro esganiçava a voz para declarar juras de amor.
A bola rolou. Preparou-se para ficar 90 minutos com um olho no campo e outro nas reações que viriam ao seu lado.
Era quase estático, um verdadeiro contraste com os movimentos que vinham das jogadas do gramado e das reações das arquibancadas. O jogo era bom, equilibrado, com chances de gol. Apreensão e expectativa se alteravam dentro dele. O outro explodia o que sentia em gestos e palavras. Fim de primeiro tempo. Empate.
O outro foi ao banheiro. Ele prosseguiu atento. Suava frio com o olhar no campo vazio. Tinha a seu redor o silêncio de um estádio vazio, mesmo na companhia de mais de 70 mil pessoas.
Segundo tempo, e praticamente o mesmo panorama. A diferença era que seu time começava a errar passes e permitia a chegada adversária. O outro se inflamava e já o chamava de freguês, de sofredor. Tudo intercalado com o grito ao pé do ouvido, que repetia o nome do clube rival.
Últimos minutos. Seu time cada vez mais acuado. Chutes que iam perto do gol. Goleiro se consagrando a cada defesa. Zagueiros se superando. Placar em branco. Seus sentimentos em branco.
Acréscimos. Um ataque rival é desarmado na lateral. A bola chega à intermediária vazia. O atacante vai em velocidade, supera o zagueiro adversário na corrida. O goleiro se desespera, sai da área e arrisca um carrinho. Em vão. A bola sela seu destino na rede.
Seu silêncio é interrompido pelo grito emocionado de gol. Bate no peito e berra o nome de seu time. Depois, observa a reação do outro. Desolado. Frustrado. Abatido.
Fim de jogo. Ele ouve as reclamações ao seu lado. Árbitro comprado, sorte adversária...
Saem do estádio. Andam até o local onde está o carro. Ele paga o flanelinha e os dois entram. Passam pelo engarrafamento natural de pós-jogo com casa cheia.
Aos poucos, o caminho vai ficando mais tranquilo. Mais deserto. Mais ermo. O outro substitui os lamentos da derrota por um ar de estranheza.
Serenamente, ele para o carro. Abre o porta-luvas, estica-se para abrir o banco do carona e empurra o outro para fora. Fecha as portas com trinco e corre para ver o outro caído. Sorri e aponta uma arma na altura da cabeça dele. Um esboço de movimento é suficiente para ele irromper o silêncio:
" - No chão! No chão!" - a voz vem com frieza.
O outro desliza o olhar pelo asfalto, mas logo ouve:
" - Olha pra mim!".
Obecede e escuta:
" - Quem é que ia chorar hoje?" - nova pausa - "Quem?".
Vê o outro em silêncio, e tripudia:
" - Grita o nome do teu time agora".
Espera, atento em sua alegria sádica. Ouve o outro dizer:
" - Você é meu irmão..."
Logo o interrompe:
" - Coisa que você esqueceu nesta semana!".
Silêncio. Abre o sorriso ao ver o outro chorando. Segura a gargalhada para dizer:
" - Acabou! Acabou! E eu ganhei... Eu sou campeão!".
" - Para com essa brincadeira..."
Direciona a arma para a cabeça do irmão, e fala:
" - Fim de jogo!".
O irmão fecha os olhos, resignado.
Primeiro tiro. Um grito ensurdecedor de gol. Segundo tiro. No peito. E um doce grito com o nome de seu time de coração. O corpo do outro fica estático, esvaído no sangue de uma derrota.
Ele entra no carro. Pisa fundo no acelerador. Parte e começa a buzinar. Sorri, gritando alucinadamente "é campeão". Saboreava com sangue o doce prazer da sua vitória.
*****
Que prazer, depois de tanto tempo, rever você, inspiração. Foi falta de tempo com tudo o que aconteceu em 2011. Sei que suas visitas são mais inconstantes, mas você será sempre bem-vinda quando quiser chegar.
Assim como todos os leitores que quiserem aparecer por aqui.
Vinícius Faustini
Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.
sábado, 3 de dezembro de 2011
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