Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Círculo vicioso

"E agora, o que você quer?".

Eu mesmo acabei me assustando com o tom brusco que minha voz ganhou ao atender o celular. O visor tinha dito que era ela novamente. Tanto tempo de submissão quase cega mesmo depois de um fim de amor sepultado em três palavras ("gosto de outro"), e pela primeira vez eu demonstrava irritação com um telefonema dela.

Ela perguntou "que bicho te mordeu?" e antes que eu começasse a pensar numa resposta, destilou os problemas de um novo relacionamento amoroso mal resolvido. Cada pormenor de sua intimidade era relatado com tamanha voracidade que eu me sentia novamente conhecendo todas as carícias de seu corpo. Tinha vezes que eu precisava controlar uma ereção do outro lado da linha.

Súbito, o novo tórrido amor que ela me contava foi ganhando contornos mais distorcidos. Mais drásticos. Com diálogos ásperos, quase doentios, e o gran finale trágico, capaz de deixar uma plateia em prantos. E sempre a plateia dela era eu.

Ouvi tudo silenciosamente, como sempre. Minha adoração incondicional por ela calava qualquer chance de uma frase gramaticalmente bem construída que não tivesse um "eu te amo" como vírgula. Escutei as juras de amor e desamor a outra pessoa. Só porque vinham de sua voz.

"E então?". Ofegante, buscava uma resposta para o que ela deveria fazer em relação a um homem que eu conhecia apenas do retrato falado que ela me ditava por telefone. Minha mente de escritor talvez entregasse a ela palavras que ela não sabia dizer.

Comecei a dedilhar internamente algumas palavras. Não para ele, mas para ela. Parecia que todas as amarguras de tantos anos estavam prestes a escapar. Formava frase e as repetia uma, duas vezes. Não para decorá-las. Era uma forma de saber exatamente todas as palavras que iriam me afastar dela. Estar a par de toda a culpa que eu carregaria em meus ombros toda vez que revirasse as fotos dela na minha gaveta.

Pronunciei seu nome, mas fui interrompido por um ruído de movimento brusco na porta. Ela disse "espera um minuto". Ouvi, intercaladas, as vozes dela e de um homem. Em tons não muito amistosos. Aos poucos, um falando e o outro replicando de maneira mais acelerada. Os dois falando ao mesmo tempo, discutindo coisas que não davam para ouvidos compreenderem.

Até escutar o primeiro barulho. Silêncio. Outro barulho. Silêncio, movimento de algo caindo sobre uma cama. Um ofegar misturado com um choro quase em surdina. O pranto aumentou gradativamente, e explodiu na voz dela, ordenando em um berro:

"Vai embora daqui! Covarde!".

Ainda pude ouvir um novo balbuciar da palavra "covarde", seguido de um choro convulsivo. Permaneci com as mãos e ouvidos trêmulos, esperando o desenrolar da cena que eu apenas podia ouvir. Com a voz alterada pelo pranto, ela sussurrou: "você está aí?".

Desabei em choro, e só consegui dizer "sim". Novo silêncio entre nós. Ela, em lamento quase de criança, disse: "nem minha mãe me bateu". Fez o movimento de quem se levantava da cama. Dizia que estava se olhando no espelho e que seu rosto ia ficar feio se não fosse cuidado. Ao fim, perguntou se podia dormir na minha casa naquela noite.

Esqueci todos os dias cinzentos sem sua companhia. Esqueci todo o sofrer que a ausência dela me apresentava. Esqueci que este constante retorno dela à minha vida feria ainda mais toda vez que ela ia embora.

Ela ia chegar. Ia voltar frágil, indefesa. E eu ia estar aqui, de braços abertos, pronto para recebê-la e para cuidar dela com todo o amor. Para a cada volta, ela guardar na lembrança que em meus braços sempre tem o mesmo carinho de antes.

4 comentários:

Carmen Augusta disse...

Oi Vinicius!

Conto lindo, como sempre, mas esse seu personagem deve ser masoquista.
Eu estava esperando um Não dele...
Que nada...

Parabéns!

Beijos,
Carmen Augusta

Everaldo Farias disse...

Mais um texto hilário! Eu pareço um papagaio a repetir isso, mas é verdade: como você consegue nos prender no texto!
E mais, como isso tem a ver com a vida real: muitas pessoas preferem aquilo que de repente, seria mais nocivo a elas! Ou, como dizem alguns: as pessoas só buscam o que não presta!

Blog Música do Brasil
www.everaldofarias.blogspot.com

Um forte abraço a todos!

Armindo Guimarães disse...

Olá, Vinícius!

O que é que eu vou dizer que a Guta e o Everaldo não disseram?

Mais um 5 estrelas!

Abração

Patricia Rezende disse...

Muito bom! Excelente desenvolvimento textual.

Conseguir prender o leitor virtual, instigando-o a ir adiante, é realmente uma enorme façanha. Por isso, estou agora a perscrutar as entrelinhas das páginas do seu blog...

Parabéns!

Patrícia Rezende