Porta entreaberta. Ele deu passos lentos, movidos pelo desejo de fazer o mínimo de silêncio e pela ansiedade de que tudo não passasse de um susto. Num primeiro momento, não deu por falta de nenhum objeto de valor. Aos poucos, foi se tranquilizando do pânico de que ainda tivesse alguma pessoa dentro do apartamento.
Relaxou. Desfez-se das roupas cotidianas. Foi até a cozinha e abriu a porta da geladeira. As mãos ficaram trêmulas diante do que viu. Um pedaço de seu doce favorito. Do doce que ela fazia com tanto carinho. Não teve forças para fechar a porta.
Foi em direção ao banheiro. De olhos fechados, permitiu que a ducha tomasse conta de sua pele, e esboçou um sorriso. Que se esvaiu no momento em que seus olhos se abriram e viram calcinhas e sutiãs pendurados. Roupas íntimas que tanto fizeram parte do cotidiano do casal e que ele queria que fossem embora de sua memória.
Enxugou-se afoitamente. Quis refugiar-se em seu quarto. Ofegava debaixo dos lençóis. Apoiou a cabeça no travesseiro mas despertou logo na hora em que seus olhos entreabertos viram a camisola branca, o sutiã vermelho e a calcinha fio-dental de cor avermelhada tão associada à sensualidade dela.
Olhou para a cabeceira. Os dois sorrindo, foto tirada durante uma viagem na qual ficaram cada vez mais unidos. Levantou-se. Viu ao lado do aparelho de som, o primeiro disco que recebeu de presente - e que tantas vezes ouviram para dançar de rosto colado. Correu os olhos pelo quarto. A roupa dela deitada sobre a poltrona. A bolsa sobre a cômoda. Ela, ela, ela, ela.
Procurou recordar seus passos. O carro. O lugar ermo, no meio do nada. O silêncio, quebrado por dois estampidos. O grito. Ela, atônita, caindo desacordada no chão. Eram os fatos, eram os fatos. Nada havia sido imaginação.
Sim, havia se livrado da presença dela. Mas agora percebera que ainda estaria por muito tempo apegado aos pormenores da história vivida a dois. A profecia se concretizara. Por mais que ele se separasse dela, ainda não conseguiria se desatar de uma história tão intensa.
Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.
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Um comentário:
Olá Vini!
Belo conto!
É ele se livrou dela, mas esqueceu que as lembranças não morrem.
Parabéns!
Beijos,
Carmen Augusta
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