Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Inferno

"Você não disse que eu estava bonita..."

Um pouco bêbada, muito mansa, esta foi a forma de pedir um pouco de carinho depois da festa. Já fazia um tempo que se acostumara com a falta de amor e se fingia feliz apenas com o fato de adormecer e acordar ao lado dele na cama. Num suspiro de enfado, ele se encaminhou para o quarto.

Chorosa, ela se escondeu no banheiro e começou o ritual de desfazer a maquiagem. Suas primeiras lágrimas começavam a deslizar no seu rosto quando ouviu o primeiro ressonar dele. Sentiu amargura pois passaria por mais uma noite mal-dormida e de um tédio que não iria embora com o clarear do dia. Olhou-se de novo e se achou mais bonita. Experimentou sorrir, mas seu sonho foi interrompido por um ronco. O segundo ronco despertou nela uma irritação, que a fez se ver no espelho com um novo reflexo de olhar.

Com os olhos, se devorava. Se via mais sensual. Mais desejável. Retocou o pouco de maquiagem que se esvaiu em seu choro. Abriu o estojo de batons, e escolheu o mais avermelhado. Numa carícia ao ego, deu um beijo no espelho.

Revirou o armário até achar uma peruca. Saiu do quarto na ponta dos pés. Tomou um café na cozinha, e esperou por alguns instantes até sentir-se sóbria. Procurou os sapatos na sala. Pegou a bolsa. No elevador, deixou o vestido mais decotado e, alegre, sussurrou um "gostosa" para sua própria imagem. Foi até a garagem, saiu com o carro. Com a memória pouco sóbria, rodou alguns quarteirões até chegar ao local que queria. Àquela hora, não era recomendável pedir informações, e muito menos revelar em qual destino pretendia chegar.

Desceu do carro. Olhou para o relógio do celular, que marcava três e meia. Respirou fundo e adentrou pela porta do inferninho. A música techno tinha o compasso de um bate-estaca. Uma estaca que cravara em seu coração a certeza da indiferença na qual estava entregue.

Casais se abraçavam. Trios se abraçavam. Mulheres e homens se ofereciam a ela. Encabulada, ela notava o ambiente com ares temerosos. Pediu uma bebida - a mais forte - e colocou o dinheiro na mão do barman. Bebeu num gole só e teve vontade de dançar no balanço da música. Viu as mulheres, tão selvagens no pole dance, e, enquanto passava dançando pela pista, sentiu mãos fortes apertarem sua bunda.

Aproveitou o palco vazio e subiu. Não discernia rostos, mas gostava de ouvir os aplausos e os elogios gritados por ambos os sexos. Colocou o dedo indicador em sua boca, e foi descendo no ritmo do "chão, chão, chão" que ouvia da plateia que agora era toda sua.

Levantou-se e passou a mão por seu colo até exibir um pouco mais do seio. Com a outra mão, colocou o outro seio para fora do decote. Virou-se de costas e foi subindo o vestido até exibir um pouco da calcinha. As pessoas pediram para ela tirar, e ela, passando a língua entre os lábios, jogou o vestido no chão. Jogou também um beijo para o velho com cara de caipira que lhe erguia uma taça de champagne.

Empinou a bunda e colocou para a frente seus seios médios. Balançou o corpo e, de costas para a plateia, desabotoou o sutiã e colocou-o em seus dentes. Com olhar sensual, escolheu um homem e atirou o sutiã na direção dele. Colocou os seios em suas mãos e fez menção de quem estava servindo para seus espectadores. Erótica, passou a língua num dos mamilos, e fechou os olhos para ouvir melhor as explosões de desejo que seus gestos despertavam.

Exibiu a bunda vestida com uma calcinha. A calcinha fio-dental vermelha que escolhera para o homem que amara e, novamente de costas para a plateia, rebolou ao som de seu instinto. Já não descia o corpo e subia com a ansiedade de quem queria se perder no corpo de seu amado. A sensação era a de ser deflorada por completo por todos aqueles que agora a admiravam.

Com as pontas dos dedos, foi descendo a calcinha até as canelas. Virou-se de frente para o público. Sentada no palco vagabundo do inferninho, com o sexo escancarado, atirou a calcinha na direção de um sujeito malhado que vestia camiseta. Dançava freneticamente, alegre, solta, alternando entre a volúpia de ser possuída por muitos olhares e o êxtase de quem se descobria em meio a tanto desejo guardado.

A música acabou. Agradeceu os aplausos. Escondeu novamente o corpo no vestido. Passeou pela pista com uma incredulidade capaz de deixá-la apenas agradecida a tantos assédios que despertara com apenas uma dança.

Saiu da boate. Na porta do estacionamento, hesitou por um instante. Voltou até a porta e perguntou ao segurança o horário do fechamento. Ele respondeu "seis horas". Ela olhou para o relógio do celular. Tinha ficado apenas meia hora.

Riu alto. Foi até o carro. Deu a partida, mas logo desligou novamente. Teve angústia por saber que, ao voltar para casa, sua outra face a abandonaria novamente. Quis viver mais um pouco, mesmo ciente de que logo voltaria a morrer em seu tédio.

Só que agora, ela queria viver um pouco mais daquele breve sonho sozinha. E depois de exibir sua beleza aos olhos de tantas pessoas sedentas de prazer, deitou-se com sua nudez no banco de trás do carro. Fez do vestido cheirando a uísque falsificado o seu cobertor. E caiu adormecida, amparada por todo o paraíso que encontrara dentro de um inferninho.

3 comentários:

Carmen Augusta disse...

Olá Vini!

Voltou inspiradíssimo meu querido amigo!
Beleza de conto!Parabéns!

Olhe só o que faz o desprêso...
Dá desespêro.

Beijos,
Carmen Augusta

Armindo Guimarães disse...

Olá, Vina!

Para não variar, eis mais um conto que prende o leitor.

No final d o conto tive por um momento a sensação de ouvir ela a sussurrar: “de que vale o céu azul…”, ao mesmo tempo que se ouvia “Quero que vá tudo pro inferno” como música de fundo.

:)

Maravilha, pá!

Abraços

Guilherme Peruchi disse...

Muito massa!!!