Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Duas palavras

"Tô grávida".

Lembrei da reação dele quando eu disse aquelas duas palavras. Tentativa desesperada para que a dor que o meu corpo sente mude para o meu pensamento. Trinco os dentes, para parecer um pouco mais forte diante daquele homem estranho no qual eu entrego minhas duas vidas. O médico dizia: "Calma, eu sei que está doendo, mas a anestesia em alguns minutos fará efeito".

Olho para o teto, meus olhos estão cada vez mais cheios de lágrimas. Bom pretexto para eu chorar por todos os motivos que me levaram a ficar aqui, deitada nesta maca. Reconstituí tudo o que aconteceu depois da minha revelação. Os olhos dele, arregalados, desviaram para o chão. Ele se levantou, se vestiu e meramente disse: "Vou te levar pra casa".

Saímos do apartamento dele e não trocamos nenhuma palavra no caminho. Antes de eu descer do carro, apoiei a cabeça em seu ombro e tentei procurar sua boca com a minha. Prestes a nos beijarmos, ele desviou o rosto. Disse apenas um "te ligo". Fiquei tão enojada com sua atitude que em vez de subir ao apartamento, tive de parar no banheiro da portaria para vomitar. Era a náusea do que ele me fez - da criança que começava a crescer em mim - e do que ele deixara e ainda iria deixar de fazer.

Todos os dias eu dormia implorando um movimento qualquer dele em direção a mim, mas acordava tendo apenas a companhia do som do silêncio. O silêncio, que era a trilha dos nossos beijos, agora era do vazio, da ausência.

Os dias se passavam sem palavras, num desamor que me mutilava pouco a pouco. Não era justo que tudo isto acontecesse com o meu coração somente por causa de duas palavras. Duas palavras que fecharam minhas portas para as palavras dele, e agora eu não tinha mais como me vingar.

Não aguento mais. Sinto uma compulsão por chorar as minhas dores. Acho que o médico e a enfermeira não vão se importar, quantas outras já choraram na presença deles... Eu sei. Estou me mutilando. Mas preciso me livrar de tudo o que sinto.

Experimento sorrir enquanto vejo o sangue nas luvas do médico. Ele está indo embora. Ele me mutilou e agora estou mutilando o resto de amor que ele deixou em mim. Ele agora se vai, de dentro do meu coração e de dentro do meu corpo.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Retorno

Caminhou a passos lentos no corredor. Experimentou, por alguns instantes, dar dois passos para frente e retornar três passos, de volta ao elevador. Sim, sabia que seria doloroso retornar a aquele lugar depois de tanto tempo distante. Sentiu as pernas cambaleando. Apoiou-se na parede, tenso, fraquejando cada vez mais.

O vizinho saía de casa com roupa de caminhada. Notou que ele estava debilitado, perguntou se precisava de ajuda. Ele ergueu o corpo, fincou os dois pés no chão e balbuciou um "tudo bem". Recebeu um "bom dia" em troca. Sentiu-se mais vivo depois deste breve diálogo. Quis aproveitar o sopro de vida para, enfim, encarar a situação com a qual iria se deparar em casa.

Com os passos largos, alcançou a porta. As mãos trêmulas atrapalhavam a abrir a porta de casa, ainda mais que a chave do portão do prédio e a do apartamento ficavam muito próximas em seu chaveiro. Enfim, abriu. Fechou a porta e ficou, ofegante, agarrado a ela. Tinha receio de tudo o que iria encontrar.

Passou o olhar por todo o conjugado. Tudo permanecia do jeito que ele deixara. As muitas guimbas de cigarro abandonadas no cinzeiro. A xícara com um resto do café, fiéis companheiros quando optava por jornadas noite adentro. Criou certa coragem e foi, lentamente, na ponta dos pés, até a escrivaninha.

Sentou-se na cadeira, ligou o abajur de lâmpada fluorescente. Debruçou-se sobre a escrivaninha. Com o olhar vidrado nos papéis, tentou alcançar os cigarros. Esquecera que não tinha comprado nenhum maço. Na hora não importava. Começou a ler tudo o que aqueles papéis traziam.

Lia. Cada vez ficava mais ofegante, ansioso a cada página que ia embora de suas mãos naquele manuscrito. Tentava ser menos afoito, mas sua leitura era rápida, praticamente devorando as palavras que estavam naquelas folhas. Naquelas 84 folhas, preenchidas em frente e verso, que agora ele, com pesar, terminava.

Em seu rosto agora vinha um semblante de alívio. E de uma certeza. A certeza de que não podia viver sem ela. Sem sua obra-prima. Durante algum tempo fugira, por diferentes estradas e lugares, para tentar escapar de tudo o que tinha feito, do tanto que havia sido consumido.

Mas estava vencido. Como um bom filho, à casa retornava. Retornava para sua rotina. E retornava para a obra-prima que escrevera a mão e da qual ninguém deixaria mais que ele se separasse. Pelos próximos dias do resto de sua vida, dedicaria ao menos uns minutos do dia para ler aquele texto tão magnífico novamente. Precisava ter sempre a certeza de que aquelas palavras saíram de seu manuscrito.

sábado, 14 de março de 2009

Sarjeta

"Você tá se masturbando?".

O tom de indignação dela quase me fez dar um pulo da cama. Virei o rosto e baixei os olhos diante de seu ferino olhar de reprovação. Respirei fundo, e a encarei, com a voz carregada de mágoa:

"Isso faz alguma diferença pra você?".

Ela desviou o rosto novamente para a revista de moda. Parecia indiferente, quase vitoriosa de ter interrompido meu prazer momentâneo. O desejo que eu sentia ao me imaginar dentro de uma mulher. De uma mulher de cabelos castanhos, com a face e a pele da minha esposa 20 anos mais jovem, só que com o corpo mais magro e os seios mais firmes.

Sentei na cama e olhei pela janela. Ri ao lembrar que eu me acariciava pensando na minha própria mulher, e a cena ficava ainda mais patética quando eu olhava pra cama e a via aparentemente atenta à revista. Levantei, fui até o armário. Coloquei uma camisa, troquei a bermuda do pijama por uma calça e disse: "Vou sair".

Já sabendo que ela iria protestar, peguei as chaves e fechei a porta bruscamente. Desci até a garagem, abri o portão e fiquei um tempo na calçada até esperar o porteiro fechá-lo. Quando o carro saiu da calçada, decidi pegar o caminho do Centro.

Liguei o rádio numa estação de música clássica e senti um alívio pela solidão. Peguei o trajeto da praia, movimentado por ser sábado à noite. Segui por Ipanema, virei para Copacabana, passei pela Avenida Princesa Izabel para chegar ao túnel que vai até Botafogo. O tráfego estava tranquilo, e em 20 minutos eu já saía do Aterro do Flamengo rumo à Avenida Presidente Antônio Carlos.

Dei uma volta e estacionei o carro numa ruazinha próxima do Theatro Municipal. Deixei a aliança de casamento enrolada num guardanapo, dentro do porta-luvas. Tomei o caminho da Cinelândia. Ouvia a música de qualidade duvidosa, via os casais de namorados aos beijos, alegres se entretendo por amor, sentimento que me jogavam fora na minha própria casa. Outros se divertiam, entre risos e bebidas, numa alegria que me parecia distante. Cada sorriso dos outros se transformava numa lágrima do meu coração. Apertei o passo até chegar na Rua Álvaro Alvim. Algumas pessoas ainda permaneciam nos minúsculos bares da calçada, mas o movimento do pós-show no Teatro Rival já estava menor.

Comecei a caminhar lentamente, com os olhos para o chão, observando cada pedregulho da calçada. Desde menino, quando eu trabalhava perto da Avenida Almirante Barroso, gostava de escapar e ir para a Álvaro Alvim, só por causa do clima de Rio antigo que aquela rua me causa. Parei em frente ao cinema, que exibia nos letreiros quebrados: "Exibe filmes pornográficos".

Comprei um ingresso e entrei na sala de exibição. O ar condicionado quebrado e o cheiro de mofo das cadeiras tornavam ainda mais obscuro aquele ambiente - formado de pessoas que se agarravam enquanto ouviam gemidos e assistiam aos atores fazendo sexo explícito em tela grande. Timidamente, abri a braguilha da calça e comecei a me tocar. Mas não consegui me sentir à vontade vendo os seios fartos e siliconados daquela loira numa dimensão tão maior que a habitual. Saí da sala, fui ao banheiro e lavei o rosto. Quando passei pela entrada, ainda olhei o relógio de parede. Eu não tinha ficado nem 15 minutos no cinema.

Voltei pra rua. Alguns catadores reviravam o lixo de um restaurante que serve galetos. Eu já me encaminhava para o bar que fica atrás do Cine Odeon quando ouvi uma voz feminina:

"Me dá um trocado, tio?".

Virei para trás. Era uma moça de mais ou menos 1,60m, cabelos pretos cacheados visivelmente maltratados. Seu cheiro misturava suor e bebida. Vestia uma camisa rasgada no ombro esquerdo e um short minúsculo que exibia as pernas finas. Olhei-a de cima a baixo e, num impulso, disse:

"Não tenho não. Mas se você deixar eu te comer, te dou 40 reais".

Aquilo me fez tão bem... Tanto tempo resignado diante de um casamento que se esfarelava e, agora, naquele momento, eu sabia novamente ser sórdido. Olhava para os dentes tortos da mendiga e por dentro eu me empolgava. Dizia para mim mesmo: "eu sei ser o mais baixo possível".

Ela balançou a cabeça afirmativamente. Fomos caminhando lado a lado até o meu carro. Entramos e eu peguei a direção da Rua do Senado. Não trocamos uma palavra. Só abri a boca quando pedi uma suíte à atendente do motel.

Entramos no quarto. Ela olhava para todos os lados, a cama, o espelho, e tentava com as mãos amenizar o frio do ar condicionado. Sentei no canto da cama e disse pra ela:

"Olha, vai tomar um banho. Eu te espero aqui".

Mais uma vez balançou a cabeça afirmativamente. Tirou a blusa e deixou à mostra os seios pequenos com bicos negros. Desceu o short de costas para mim, mostrando o bumbum firme. Eu babava, já ficando excitado por saber que ela faria tudo o que eu quisesse. Mas quis fazer um pouco mais de maldade:

"Fica de frente pra mim".

Ela se virou timidamente. Deixava os seios nus, mas cobria a genitália com as duas mãos. Tirei a camisa e disse:

"Deixa eu ver, gostosa".

Ela riu, envergonhada, e mostrou os dentes tortos. Lentamente, foi tirando as mãos, até exibir a fartura de pelos pubianos que tinha. Passo a passo, se aproximava de mim, mas a interrompi:

"Vai lá tomar banho".

Ela fechou o sorriso e foi correndo para dentro do banheiro. Parecia ter ficado com vergonha da própria sujeira.

Tirei o resto da roupa e fiquei deitado, excitado enquanto ouvia o barulho do chuveiro. 10 minutos depois, ela abriu a porta do banheiro. Parecia ainda mais deliciosa de banho tomado. Fiz com a mão sinal de que ela se aproximasse. Coloquei a camisinha e sentei na cama. Passei minha mão pela sua nuca e desci seu corpo até o meu joelho, para que ela me chupasse. Eu fazia devagarinho os movimentos para que sua boca subisse e descesse em mim, cada vez mais excitado com o prazer que o sexo oral dela me proporcionava. Eu delirava, sentindo devagarinho a ponta dos dentes dela roçando em mim.

Levantei seu corpo, fazendo com que ela se esfregasse em mim. Eu me deitei e senti seus seios subindo primeiro por minhas pernas, depois pelo meu sexo, pela minha barriga, até chegar ao meu peito e, em seguida, parar na altura da minha boca. Ela sorria e alternava o seio direito e o seio esquerdo para que eu sugasse. Com a mão, me acariciou e colocou para que ele acariciasse meu sexo no dela.

Ela tirou a camisinha, colocou outra e ficou cavalgando em mim. Seu gemido de prazer parecia sincero, e não resisti em me agarrar a ela. Senti suas mãos nas minhas costas, e quando ela cravou suas unhas, meu instinto falou mais alto e dei um beijo de língua em sua boca. Não me preocupava com nada. Era somente aquele prazer sórdido que tomava conta do meu corpo.

Éramos olhares, gemidos e sussurros, até ela dizer, baixinho no meu ouvido: "Eu não vou aguentar". Eu me deitei sobre ela e comecei a dar movimentos mais intensos. Ela gritou uma, duas, três vezes, até quase desfalecer nos meus braços. Caí do lado dela, extasiado.

Levantei e mandei que ela se vestisse, porque íamos embora. Ela me olhou com um ar de frustração. Por alguns instantes, tive uma empatia com a mendiga, eu certamente já havia feito aquele olhar em alguns momentos lá em casa. Mas logo fui tomado por um cinismo, e disse, em tom autoritário:

"Eu tenho hora pra chegar em casa".

Nos vestimos. Entramos no carro. Paguei a conta na saída do motel. Peguei o rumo da Cinelândia. Parei em frente aos bares de lá. Coloquei uma nota de 50 reais na mão dela. Ela se espantou. Segurei o rosto dela com a ponta dos dedos, e disse:

"Você é muito gostosa. Qualquer hora passo aqui".

Ela abriu o sorriso de dentes tortos, provavelmente por causa dos 10 reais a mais que o combinado. Fiz sinal para que descesse, e ela saiu. Liguei o rádio na estação de música clássica, e me arrisquei a cantarolar o que os instrumentos musicais faziam. Eu estava leve, vingado.

Estacionei o carro na garagem. Abri o porta-luvas, coloquei de novo a aliança de casamento no dedo e saí do carro. Passei pela portaria e vi no relógio digital do porteiro que passava da uma da manhã. Entrei no elevador. Desci no meu andar, abri a porta do apartamento.

Minha mulher estava sentada no sofá da sala. Olhou para mim de cima a baixo. Com naturalidade, eu disse:

"Vou tomar uma ducha e depois dormir".

Ela balançou a cabeça afirmativamente. Notei que seus olhos estavam marejados. Meu coração estava mais pleno ainda. Da sujeira da sarjeta, eu tinha encontrado a limpeza da minha alma. Com toda a sordidez que eu acumulara durante todos estes anos em minha própria casa.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Como sempre

Como sempre, quando fechou a porta logo depois de ele se despedir com um beijo no seu rosto, deu um suspiro de lamento e engoliu um pouco do choro que insistia em saltar aos seus olhos. Num olhar, notou todas as marcas do amor que acabaram de ter, tudo tão intenso no tão curto espaço de tempo que tinham sempre que estavam juntos.

Caminhou pela cozinha, olhou a mesa na qual ele, minutos antes, apoiou-a para os dois saciarem o desejo que seguravam há quase 20 dias (desta vez ele tinha demorado mais para conseguir se livrar da rotina e achar um tempo pra ela). Viu na pia os copos nos quais eles beberam cerveja e o prato no qual ela serviu uma fornada de pães de queijo. Teve um pouco de orgulho, achou que tinha cuidado bem do que "é dela". Mas, como sempre, logo em seguida constatou que mais uma vez tentava se enganar.

Como sempre, se despiu em frente ao espelho, tão grande que refletia todo o seu corpo. Seu corpo com as marcas que ele deixara nela mais uma vez. As mordidas no pescoço. O sangue quase escorrendo no lábio. O roxo no seio, cor que ficara ainda mais forte hoje, com tanta voracidade com a qual ele sugara desta vez. E principalmente o vermelho. O vermelho dos olhos marejados, chorando pela certeza de que ela não sabia quando ele voltaria, e se ele voltaria a ficar perto dela mais uma vez.

Como sempre, refletiu sobre esta escravidão amorosa na qual vivia. Como sempre, ele dizia que as coisas iam mudar, que os dois em breve poderiam viver a dois, sem nada impedir. Como sempre, ele falou que pensava nos filhos pequenos, no receio dos dois ficarem traumatizados com a ausência do pai.

Como sempre, decidiu. A partir daquele instante, não ia mais esperá-lo. Não podia e não merecia mais viver assim, à mercê de uma falsa segurança, da espera de um dia, talvez, poder estar ao lado daquele que amava. Como sempre, no dia seguinte aos dois terem se encontrado no apartamento dela, foi procurá-lo para romper com ele.

Mas agora não iria fazer tudo como sempre - tentar propor uma conversa quando eles voltassem a se encontrar. Sabia que a saudade, a volúpia, o cheiro, o amor dele vinham com tanta opulência que calavam qualquer coisa que ela dissesse.

Às cinco da tarde pegou o metrô. Olhava para o espelho de maquiagem e com o olhar na própria imagem começava a ensaiar, baixinho, tudo o que iria falar para ele neste encontro inesperado. Ouviu o nome da estação na qual ia descer.

Saiu do vagão. Ficou a alguns prédios do local onde ele trabalhava. Já anoitecia quando ele desceu. Ele foi andando na direção oposta à que ela estava. Ela o seguiu por algumas ruas. Ia abordá-lo, mas estacou quando o viu encontrar outra mulher. A mulher trazia duas crianças a tiracolo. Ela, escondida em sua insignificância, teve um aperto no coração quando a menininha disse "papai".

A mulher deu o braço a ele. A garotinha segurou na barra da saia da mãe. O garoto, mais velho, deu a mão para o pai. Ao longe, ela via aquela família feliz, unida. E enquanto isto, ela, apoiada em uma coluna de um prédio, chorava sua solidão.

Pegou um lenço. Limpou as lágrimas que borraram sua maquiagem. Num impulso, limpou todo o rosto. Ficou com a face limpa, não achava que tinha mais para quem se maquiar naquela noite.

Sentou-se no vagão do metrô, e ficou cabisbaixa o trajeto inteiro. Desceu na estação perto de casa, e foi caminhando sem notar nada que vinha ao seu redor. Abriu a porta do apartamento. Tirou o vestido e abriu uma das gavetas perto do armário.

Das gavetas foi retirando algumas lingeries. Eram novas roupas íntimas que tinha achado sensuais e comprado para o homem que amava. Iria passar algumas horas escolhendo qual seria a próxima roupa a usar para seduzi-lo. Como sempre. E sonhava com o dia no qual ele novamente iria bater na sua porta e se deitar com ela em sua cama. Como sempre.

domingo, 8 de março de 2009

Ela



Este salafrário que vos apresenta seu diário hoje abre espaço para uma tímida homenagem às mulheres que acompanham seu blogue. É mais um atrevimento de autor, mas por uma justa causa: uma homenagem sincera às mulheres.

FELIZ DIA INTERNACIONAL DA MULHER a todas!

Do salafrário,

Vinícius Faustini


*****

"Como você tá se sentindo?", ele perguntou, quase sem voz.

Ela se uniu ao seu corpo, ambos ainda quentes depois do êxtase amoroso que tiveram juntos alguns minutos antes. Os dois ficaram de lado, frente a frente em seus olhares, e a perna dela levemente dobrada na altura do quadril dele. Uma lágrima saiu do olhar dela, enquanto ela dizia uma palavra apenas: "Mulher".

Mulher. Era o que ela se tornara através dele. Do amor de menina quase virando mocinha, o encanto em beijos e olhos que a cada encontro ficavam ainda mais ardentes. Mais doces, mais suaves, mais sinceros, mais calorosos, mais apaixonados, mais excitantes, mais sensuais, mais sexo, mais, mais, vai, vai... Até o desejo a dois acontecer como se fossem (e eram naquela fração de segundo) um só.

Notava o pouco de sangue que saíra dela própria. Ficou com vergonha, mas logo ele pegou seu queixo e disse: "Não tem problema, a camareira do motel lava para o próximo casal". Os dois explodiram em riso e passaram as próximas horas juntos. E outras horas juntos, em dias de carícias e noites de amor.

Viveram uma felicidade plena até o dia em que ele foi embora. Disse que não era a mesma coisa, que o momento da paixão se esvaía a cada encontro. Não a enxergava como mulher, e sim como irmã. Não era, para ele, mais uma amante, e sim uma amiga.

Ela chorou, feito uma garotinha. Tomou um banho, e as gotas do chuveiro se misturavam com suas lágrimas (logo ela, que achava que esta comparação era mera licença poética que autor usa quando não tem ideia pra descrever uma cena de alguém chorando enquanto toma banho). Saiu do box.

Olhou-se no espelho. Olhava para si mesma e enxergava sua própria alma. As incômodas espinhas ainda incomodavam, mas aos poucos iam embora. Os seios, que cresceram aos pouquinhos, agora pareciam estar modelados no tamanho ideal para seu corpo. Os pelos pubianos já apareciam com mais frequência, e, definitivamente, inspirariam ainda mais desejo.

Ela sorria. Agora notava que realmente tudo acontece ao seu tempo. Não era no erotismo, no momento em que decidiu compartilhar pela primeira vez sua intimidade com um homem, que conhecera o que era ser adulta. Foi através do seu primeiro olhar e do primeiro instante diante de sua alma que ela então se fez mulher.

quarta-feira, 4 de março de 2009

De um homem só

Ninguém inventou. Ninguém exagerou. Todo mundo viu. Ninguém suavizou. Depois do que fez, ele olhou para a multidão que o cercava. Pessoas de todas as idades, de todos os tipos. Recriminando, xingando, gritando. Ele olhava para tudo, mais atônito com aquela reação que despertou o seu ato do que com o ato em si.

Olhou para a arma que segurava na mão direita. Não sabia o que dizer, de que jeito ia se justificar. Dizia para si mesmo: "Não tive culpa. Eu não pude suportar. Eu não podia aguentar aquilo calado". Olhou para a mesa revirada.

Tentava reatar com ela mais uma vez. Ele tinha ido para lá cercado de esperanças, disposto a aceitar tudo o que ela ordenasse. Mesmo que, mais uma vez, ela jogasse sua honra na lama, do mesmo jeito que fizera tantas vezes. Sabia que era somente um prêmio de consolação, alguém para o qual ela recorria quando todos os homens pelos quais ela se interessava esnobavam sua companhia.

Ela chegou. Na hora de cumprimentá-lo, se esquivou quando ele quis somente beijar seu rosto. Renegava sua consideração por ele a um aperto de mão. Em outros momentos era suficiente para desmanchar com aquela cena, só que ele sabia que naquela hora ele iria até o fim. Chamou o garçom. Os dois pediram os pratos.

"Eu quis trazer você aqui porque... Ah, eu ainda acho que a gente tem muito o que viver. Juntos!", ele disse, segurando a mão dela.

Ela o olhou, com um misto de pena e constrangimento, tentando ter um pouco de piedade com o homem pelo qual sentia desprezo. Respirou fundo, e disse, pausadamente, na esperança que ele compreendesse de uma vez por todas:

"Chega! Eu já disse que não tem mais volta. Acabou! De uma vez por todas, acabou".

"Mas eu te amo!", ele dizia, mais suplicante ainda.

"Mas eu não! O amor acabou, é hora de cada um seguir a sua vida. Eu quero fazer a minha, e sem você!".

Olhou para o lado, receosa com alguns olhares que vinham das outras mesas. Pigarreou e aproveitou a chegada do garçom com os pratos para tentar esfriar a cabeça. Momento de silêncio. Os dois se serviram. Ela comia depressa, tentando não olhar para ele. Ele degustava o peixe, olhando atentamente para ela, com todo o carinho que podia sentir. E sentia. Amava, com a mesma paixão do primeiro instante em que a viu. Tentou segurar novamente a mão dela, dizendo:

"Nenhum homem vai te amar como eu".

Ela trincava os dentes, já perdendo um pouco a paciência:

"Porque você não deixa, seu cachorro!"

Ele, natural:

"Claro que não deixo... Eu cuido do que é meu! E você é toda minha".

Uma lágrima de raiva começava a rolar do rosto dela:

"Não sou, e me arrependo de um dia ter sido".

Ele tentava beijar sua mão, mas ela foi afastada com um tapa.

"Me larga! Esquece que eu existo. Me deixa ter um pouco de vida, e uma vida longe de você". - ela começava a chorar longamente, e fraquejava a ponto de ceder ao abraço que ele começava a dar.

Lembrava-se do primeiro homem que conheceu depois do fim deste namoro. E dos outros que ela tentava começar, mas que iam se afastando sempre pelo mesmo motivo. Ele aparecia nos momentos em que ela estava acompanhada na noite, ligava para a casa dela de madrugada, deixava declarações de amor na secretária eletrônica, deixava chamadas perdidas no celular. Nenhum homem aguentava conviver com esta obsessão.

Movida por todas estas lembranças, esqueceu que o restaurante estava cheio e se levantou, aos berros:

"Sai da minha vida! Eu te odeio! Eu nunca mais quero te ver, não quero saber de você!".

Ele, que mantinha a calma, começava a ficar levemente constrangido, olhando para os lados. Sorria amarelado para as pessoas que começavam a olhar com certa reprovação. Segurou o braço dela, para machucar, mas esbanjando ternura:

"Sem cena, minha criança. Você é só minha, e vai ser sempre minha".

Depois de muito tempo, ela soube ser cruel:

"Eu nunca vou ser sua. Eu fico do lado de qualquer homem, por pior que seja. Menos você. Você não é homem pra mim".

Aquela última frase doeu nele como um soco. A calma se dissipou numa irritação:

"Retire o que disse".

E ela continuava:

"Frouxo!" - e falava aos berros para humilhá-lo na frente de todos - "Eu te traio, eu te esnobo, falo que não quero mais, e você aí, retribuindo com essa merda que você chama de amor. Meu filho, isso não é amor. É falta de vergonha na cara! Não sabe ser homem suficiente com uma mulher, fica desse jeito, controlando, fingindo que "cuida do que é seu". Se fosse macho o suficiente, não precisava me trazer pra perto de você na marra, na força. E tem mais: eu dormi com muitos homens melhores que você. E todos foram DE-LI-CI-O-SOS".

Ele começava a ficar ofegante. Balançava a cabeça negativamente. Pedia para que ela parasse. Implorava, e só sabia responder "eu te amo, eu te amo". Até que não aguentou mais.

O tempo entre ele pular da cadeira e sacar a arma foi uma fração de segundos. Com os lábios trincados e os olhos vermelhos das lágrimas, não pestanejou em atirar nela. Acertou no coração, o órgão que ele mais desejava ter dela. Sentiu um alívio tão grande que se esqueceu da multidão que agora ficava ao seu redor. Ao redor daquela cena. Ele, de pé, arma em punho. Ela, com sua beleza interrompida por uma bala. Seus olhos verdes ficavam ainda mais lindos parados.

Um gerente do restaurante retirava a arma de sua mão. Dois garçons o seguravam pelos braços. Uma pessoa, pelo celular, chamava a polícia. Ele passava com os olhos por tudo o que acontecia, mas nada mais importava. Ele agora estava em paz. Tinha certeza de que o maior amor de sua vida seria, definitivamente, mulher de um homem só.