Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Noite de autógrafos

As mãos. Sim, eu já sabia que era ela só de ver a mão que me entregava o livro. Ela era mais uma a querer que eu deixasse meu manuscrito de autor no início das folhas de papel que eu escrevi e que uma editora se arriscou a publicar. Logo ela, que por muitas vezes era a primeira a passar os olhos no que eu escrevia. Às vezes, eu ficava até sem graça por ela se prestar a ler minha caligrafia afoita passeando pelo papel através de um lápis mal apontado.

Peguei o livro e, por impulso, acariciei as costas da mão dela, até deixar que se desvencilhasse dos meus dedos. Do mesmo jeito que ela se desvencilhou de mim algum tempo atrás. Ela estava sorrindo quando meus olhos alcançaram seu rosto. Parecia com mais vivacidade, embora não conseguisse esconder que estava um pouco tensa com a situação.

"A dedicatória é só pra você?", foi minha saída para evitar que a tensão de ambos os lados fosse percebida pelos demais. Neste momento senti que valia a pena ser um escritor recluso e, principalmente, ela não estar ligada ao meio artístico. Seria constrangedor o burbúrio das pessoas cessar na hora em que ela estivesse à beira da minha mesa.

Ela respondeu um "sim" quase sem voz. Escrevi o nome dela e ao pousar a caneta novamente, me faltou inspiração para escrever. Enquanto alguns autores veem na dor-de-cotovelo uma razão para a escrita acontecer, minha literatura trava diante de uma situação como esta. Com o rosto fechado, olhei para os olhos dela querendo achar alguma palavra, e me apeguei à única que surgiu à minha vista. "Saudades".

Entreguei o livro a ela. Ao ler, ela teve uma reação de espanto. Engoliu em seco. Maquinalmente, olhou para mim e de sorriso amarelado disse "obrigada". Acenei e pedi para o próximo da fila se encaminhar. Assinei. Procurei-a com os olhos e acabei a achando, no café da livraria, sentada, lendo e bebericando uma xícara de café. Assinei mais um. Ela continuava lá. Continuava lendo. Assinei outro. E ela continuava lendo. Entreguei o livro para o último da fila. Agradeci às pessoas que ainda estavam lá e segui para a rua.

Ela cutucou meu ombro. Sua mão continuava com a mesma carícia. Respirei fundo. Logo que desviei ela me disse:

"Parabéns. O livro é muito bom".

Pausou. Desviou o olhar, disse constrangida:

"Não li todo ainda. Li boa parte, enquanto você ficava autografando, mas...".

Novo silêncio. Ela ajeitou os cabelos e pude notar que algumas lágrimas tinham passado por seus olhos.

"Eu queria falar com você...".

Balancei a cabeça afirmativamente. Andamos lado a lado na calçada. Paramos no cruzamento de uma das ruas. Atravessamos na faixa de pedestres. Passamos a praça. Atravessamos outra faixa de pedestres. Chegamos à orla. Paramos no calçadão, ficamos sentados perto de um quiosque. Os dois olhando para o mar.

"Sou eu, né?".

"Quem?".

"A moça" - ela olhou para mim - "A moça do livro".

Desviei o rosto. "Faz alguma diferença isso?".

Ela ficou cabisbaixa. Fingia coçar os olhos para evitar que alguma lágrima voltasse a saltar. De costas pra mim, disse. "É tanta coisa, uma atrás da outra que...". Parou novamente. Senti sua voz embargada de choro.

"Bem que as pessoas me disseram, "olha, o livro dele é lindo, é best-seller na certa". Claro que eu já imaginava que era bom, mas...".

Parou de novo. Meu rosto continuou intacto, apenas atento aos movimentos dela. Ela colocava as mãos na altura do nariz e tinha os primeiros soluços de choro. Dizia "Tá doendo... Dói muito". Fraquejou e recostou a cabeça no meu ombro. Passou as costas da mão nos olhos e falou, ofegante.

"Dói muito... Ler isso tudo aqui dói muito. Ficar revivendo isso aqui, registrado em papel, pra todo mundo saber da nossa história. Dói muito. Eu não aguentei ler até o final porque sei como isso tudo vai acabar. E eu não quero ver o fim, eu não quero".

Ela escondeu a cabeça no meu peito e enquanto chorava suas mãos me batiam, com descontrole e falta de força. Permaneci recebendo cada golpe dela. Parecia que eu estava cicatrizado contra qualquer soco. Aos poucos, ela foi se cansando. Saiu dos meus braços e com a manga do casaco enxugou as lágrimas. Mais serena, disse:

"Dói muito. Tanto que não aguento mais. Eu não quero viver pra ver esse livro nos mais vendidos. Não quero mais que me perguntem do que achei do seu livro. Não quero mais ler os seus textos. Não quero mais saber que você escreve. Não quero mais lembrar que você fez uma linha".

Abriu a bolsa. De lá retirou um canivete e me entregou. Sem olhar pra mim, continuou dizendo:

"Olha... Aqui tem uma carta que eu escrevi pra você. Não sou boa com as palavras feito você, mas eu escrevi tudo o que sinto" - e me entregou. Continuou: "essa outra você apresenta lá na polícia, pra saberem que você me matou por minha vontade".

"O quê?".

"É isso mesmo. Eu vim aqui pra você me matar. Dói muito ter de conviver com você. Mesmo depois que você foi embora da minha vida, você sempre volta, sempre. As pessoas perguntam, tudo me lembra você. E você continua escrevendo, mesmo depois que eu fui embora. E agora, esse livro... Pra mim chega, eu não quero mais. Olha, eu tentei mas não consigo me matar. Então pensei em você. Você é uma pessoa confiável, e você mata os seus personagens quando você bem entende. Eu sou só mais uma, né? Mais uma personagem que passou pela sua vida e que vai ter final trágico. Só isso, eu te peço...".

Ela arregaçou as mangas do casaco, fechou os olhos e estendeu os pulsos. Trincava os dentes em choro e em compasso de espera para o fim de uma dor. Passei a mão em seus cabelos, afaguei seu rosto, seus olhos e beijei longamente sua boca - um beijo que ela retribuiu. Numa das mãos pousei o canivete. Na outra, entreguei meu livro, e ainda fiz um afago nas costas da mão dela antes que se desvencilhasse dos meus dedos. Uma lembrança que chegou a ser sádica. Durante muito tempo na vida dela eu ainda pretendia viver.

2 comentários:

Patricia disse...

Que conto lindo e surpreendente! Muito bom!

CON disse...

Estou sem palavras...


Beijos azuisss