Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Meia-noite

Vestiu-se de branco da cabeça aos pés. Já estava na porta quando decidiu tirar os chinelos. Era o último dia do ano, sabia que ao entrar janeiro voltaria à rotina cercada de estafas por todos os lados. Por isto, precisava fazer seus pés criarem uma carcaça alheia a cacos de vidro, a espinhos de rosas, a guimbas de cigarro e a todos os malefícios que ficariam no ano anterior.

Desceu no elevador, desejou Feliz Ano Novo aos vizinhos que também desciam e ao porteiro. Ganhou a rua e sua vista ganhou aquela multidão alegre e ensandecida. Abriu um sorriso e navegou pelo mar de azuis, brancos, amarelos e as demais cores das superstições de festas de fim de ano.

O relógio marcava onze e meia. Seguiu, sereno, entre pessoas e macumbas, até chegar à beira do mar. Arriscou um suspiro quando uma onda molhou seus pés. Era o alívio de um caco de vidro no qual ele quase pisara a fundo. Olhou para o mar iluminado por barcos em festa. Virou o corpo e passou o olhar por todas as milhões de pessoas que cantavam, riam e se divertiam com o passar das horas.

Seu relógio marcava onze e quarenta e cinco. A cada passo, procurava afundar o pé na areia, a ponto de deixar todos os males no ano passado. Cantarolava "marcas do que se foi, sonhos que vão e vêm", num desafinar aguçado pelo choro. Choro porque seus males iam se despedindo, um por um.

Chegou à colônia de pescadores, perto do Forte de Copacabana. Ofegante, mas ainda a cinco minutos da contagem regressiva. Ficou na beira do cais, com o coração ansioso e com o olfato mesclando Sidra, peixe e churrasquinho. Mas agora não pensava mais no Ano Novo.

Chegara. Chegara ao local combinado, e na hora marcada. Ela prometera vir pra passagem de ano ao lado dele. De mãos dadas. De bocas entrelaçadas. De sorrisos plenos e amorosos, alimentando a expectativa de uma nova caminhada.

Onze e cinquenta e seis. Uma moça parecida com ela. Mas ao chegar perto, os olhos eram de outra cor. Onze e cinquenta e sete. Outra, mas estava na companhia de um homem de barba por fazer e com tatuagem escrita "Amor eterno" no braço. Onze e cinquenta e oito. Mais uma mulher parecida com ela. Agora trajada em roupas minúsculas, submetida aos amassos de um branquelo que parecia ser gringo.

Onze e cinquenta e nove. E ele só a enxergava em todas as mulheres que ansiavam pela passagem de ano. Seguiu em sua impaciência, procurando-a em meio à multidão que agora buscava um lugar na construção perto da colônia. Todos conversando e olhando para o mar, à expectativa dos fogos. Menos ele.

Seus olhos derramavam lágrimas amarguradas, sedentas de um aceno ou um sorriso que indicasse que era ela. Vinte segundos. A lentidão das horas trincava pouco a pouco seu coração. Até que milhões de pessoas começaram a gritar.

"Dez". Ele sentou-se e olhou atentamente para o mar. "Nove". Mesmo com a vista embaçada pela sujeira do mar, via sua repentina infelicidade. "Oito". O semblante de frustração padeceria com ele por mais um ano. "Sete". Via um 31 de dezembro tão semelhante quanto os outros 364 dias nos quais ela se ausentou do coração dele. "Seis". Seus ouvidos discriminavam murmúrios de beijos e de "eu te amo", coisas que agora iam se afastando dele.

"Cinco". Não teve pudor de despejar seu corpo no mar. O longínquo som da contagem regressiva misturou-se com o barulho de uma onda forte que o levou contra as pedras do Forte de Copacabana. Os fogos de artifício pareciam uma rajada a fulminar a certeza de que ela nunca mais viria.

A vista embaçada ainda permitiu que ele notasse o branco de suas roupas se sujarem do vermelho do sangue que saía provavelmente de sua cabeça. Experimentou sorrir, pois era a paixão se manifestando, pronta para se sobressair a toda e qualquer paz que existira um dia em sua vida.

Não se debatia diante das pancadas que seu corpo sofria, espremido entre as ondas e as pedras. Nos lampejos de fogos do Reveillon, delirava com a imagem dela, passeando em sua mente, até que sua meia-noite anoitecesse. Definitivamente.

*****

Amigos, com este texto o Diário de um salafrário se despede do ano de 2009. Um ano cercado de emoções e carinhos que só aconteceram graças à leitura de vocês. Vocês, que leram, comentaram e prestigiaram um diário virtual que chegou às páginas de um livro.

Às vésperas das festas de fim de ano, quero dizer muito obrigado a cada um que passou por aqui. A cada um que foi ao lançamento do livro na Bienal. A cada um que foi ao lançamento de Vitória. A cada um que me escreveu comprando um exemplar do livro.

Graças a vocês, o ano deste que vos escreve foi repleto de realizações. Em retribuição, prometo trazer sempre mais e mais palavras para vocês. Afinal, esta é a única promessa de fim de ano que eu sei que vou cumprir.


FELIZ NATAL E UM ANO NOVO MARAVILHOSO!

Vinícius Faustini

P.S.: o Diário de um salafrário volta às suas atualizações em 13 de janeiro de 2010.

8 comentários:

Ricardo Heleno Ribeiro disse...

BRILHANTE COMO SEMPRE. MEIA NOITE ME LEMBRA O ULTIMO TEXTO DO SALÁFRARIO, O LIVRO.
QUE 2010 SEJA AINDA MELHOR, MAIS PRODUTIVO E PROSPERO. GRAND ABRAÇO.

Carmen Augusta disse...

Olá Vinicius!

Lindo conto, como sempre.
Mas também sempre a deixar a gente pensando mil coisa.
Não foi precipitado? Porque não esperou mais um pouco.Será que ela não estava perdida ali naquela multidão e não chegou a tempo?

Grande Vini!

Beijos,
Carmen Augusta

Saudades....

Márcia Tristão-Bennett disse...

O meu poetinha!!!!!!!!!!!!!!!!


Concordo com a Carmen...ela estava ali perdida na multidao!!!!!!!!!!! ja vai chegar, ao priemiro minuto depois da meia noite. Me parece que em algum lugar voce falou que o fim deste texto se completa no proximo texto...porque ele nao vai fazer isto nao...

Ele esta lah esperando ainda por ela, ainda que triste...

Feliz Ano Novo para todos!!!!!!!!!!!!!!

Muito bom te ver!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Beijos!!!!!!!!!!!

CON disse...

Meu querido amigo poetinha...Feliz 2010!!!
Você como sempre ousando e nos fazendo esperar por mais e mais!
Espero que em 2010 possamos estar por aqui,e cada vez mais "de boca aberta" pensando ...E ele é só um menino!!!


Beijos azuissss

Armindo Guimarães disse...

Caramba, pá!

Cada vez melhor. Um conto empolgante. Dificilmente a malta se desenquadra dele e quando damos por ela já estamos envolvidos na contagem regressiva para só acordarmos depois da Hora H.

Fantástico!

Grande Salafrário!!!

Abração

James Lima disse...

Bicho, o texto tá bem legal e envolvente. E muito triste também. Poxa, o cara poderia ter esperado.
Me emocionou, sinceramente.
Meus parabéns !

Que em 2010 nossos olhos sejam sempre regados a linhas escritas por você, e que nossas emoções sejam cada vez mais despertadas com essas linhas.

Um Forte Abraço do amigo de sempre
James Lima
www.robertocarlosbraga.com.br

Everaldo Farias disse...

Olha tá muito legal esse texto e também queria destacar a imagem do Nelson lá no final da página. Acho que você consegue seguir bem sua linha, inclusive nesse texto temos isso claramente.
E vê se volta logo porque queremos mais bons textos assim!

Blog Música do Brasil
www.everaldofarias.blogspot.com

Um forte abraço a todos!

Armindo Guimarães disse...
Este comentário foi removido pelo autor.