Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Reflexos

Sentiu os olhos gotejarem as últimas lágrimas daquela madrugada. Viu pela fresta da cortina o dia começar a clarear. Deu um suspiro de alívio por ainda estar começando o domingo. Nenhum colega de rotina precisaria compartilhar seus olhos vermelhos e tristes.

Levantou-se da cama e abriu as cortinas. Parou diante do espelho. Tirou a camisola e passou o olhar pelo próprio corpo. Por um momento, compadeceu-se de sua nudez, achou-se bonita. Mas logo seus olhos se maltrataram com as marcas da realidade.

Enxergou o roxo do tapa que ele deu em seu rosto. Deslizou o olhar e passou a ponta dos dedos nos arranhões que passaram pelo seu colo. Notou que os pulsos estavam se clareando, e suspirou aliviada. Seus olhos em breve parariam de conviver com a lembrança dos punhos dele, repreendendo suas mãos e a obrigando a olhar para ele em seus acessos de fúria.

Sentiu uma ardência nas costas e lembrou-se do momento em que ele a jogou na cama. Virou-se, e viu o roxo quase à altura dos ombros. Doía também. Os olhos ainda testemunharam a marca avermelhada de quatro dedos que, em seu pensamento, poderiam até furar sua própria carne.

Ficou frente a frente com seu reflexo e parou em seu olhar. Intimamente, pediu para vir um novo momento de choro. Não veio. Olhando em seus próprios olhos, balbuciou: "chora...". Uma, duas vezes, três vezes. Em vão. Foi aumentando a voz, quase ordenando: "chora, chora...".

Mas o sentimento que vinha não era de tristeza. Em meio a toda aquela dor, enxergava a carícia de um prazer. Aos poucos, começava a sentir as mãos dele. Fortes, firmes, a estapeando e dizendo que era para todo mundo saber de quem ela era propriedade. E desceu um pouco os olhos até enxergar um primeiro lampejo de desejo.

Movimentou seus dedos, reconstituindo gestos selvagens do toque dele. E sentiu a ausência daquelas unhas. Cravando sua carne. Cortando feito navalha. E ela esboçava um sorriso, ansiosa por andar no fio desta navalha.

Já sentada na cama, olhou-se no espelho e deu um riso safado ao ver o tamanho de suas unhas. Primeiro acariciou-se com elas. Sussurrava o nome dele, e dizia: "me corta...". Seu desejo deixou que a carícia tomasse conta inteiramente dela.

Contorceu-se, delirou... Lembrava dos palavrões que ele direcionava a ela, e a lembrança tornava sua carícia ainda mais intensa. Pedia para ser a mulherzinha dele. E se olhava nua, inteiramente entregue, ardente. Era só dele.

Seus olhos selvagens deliravam, ansiosos para que naquele espelho refletisse também a imagem do corpo dele, por cima dela, por baixo dela. E que ao desviar o olho de seu reflexo, só visse o rosto da perversão dele, e se aproximando até que pudesse ver através dos olhos dele toda a submissão dela.

Viu os bicos dos seus seios endurecidos. Viu seu sexo se desmanchar em todo o prazer que a falta dele lhe proporcionava. Viu seus toques ondularem seu corpo, ansiando pelo encontro com o corpo dele. E suspirou até o fim, sempre gritando pelo nome dele.

Ainda tonteava quando se levantou. Olhou-se novamente por inteira no espelho. Daquelas dores agora trazia marcas de amores. De amores vorazes, que só das mãos dele poderia conseguir.

Experimentou um leve olhar no reflexo de seus olhos. Mas logo desviou. Correu para um banho quente. E lá permaneceria de olhos fechados. Sem qualquer risco de voltar a ver marcas que eram reflexos de amargura.

4 comentários:

Carmen Augusta disse...

Olá Vinicius!

Tudo o que li é um conto, uma história. Mas isso existe tanto na vida real. Alíás num outro comentário já falei isso.Mulheres que deixam o amor falar mais alto, e sofrem.Sofrem e continuam lá...

Beijos,
Carmen Augusta

James Lima disse...

Vinícius,

Cara, você vê "isso" em tudo, né?
kkkkkkkkkkkkkkkkkkk

Adorei, muito legal. Tem gente pra tudo no mundo, até mesmo pra sentir prazer com essas coisas.

Um Forte Abraço
James Lima
www.robertocarlosbraga.com.br

Armindo Guimarães disse...

Grande Vinícius!

A Carmen e o James já disseram tudo.

O particular dos teus contos é que o suspense é continuo e o final uma surpresa.

Abração

Everaldo Farias disse...

Mais um grandioso texto que me faz ser repetitivo em elogiar a capacidade de prender o leitor, numa viagem agradável de palavras e imaginação!

Blog Música do Brasil
www.everaldofarias.blogspot.com

Um forte abraço a todos!