Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Guimbas de cigarro

Entre uma tragada e outra no cigarro, olhava para o corpo dela adormecido e repetia para si: "Ela não significa nada para mim". Esquivou sua cabeça até fazer com que seus olhos pudessem enxergar o sorriso dela, agora mergulhados naquele misto de êxtase e satisfação que os dois tinham sentido a dois por uma noite inteira na qual, a cada minuto, ele desejara um pouco mais que o dia não clareasse.

Mudou de ideia por um instante, quando a fresta da cortina fez escapar um pouco da luz do raiar do dia. Brilhava a pureza dos cabelos dela, loiros e molhados do banho que tiveram a dois. Forçava a vista para novamente vê-la por inteira, ainda com o corpo banhado por suas mãos intensas, sedentas, em delírio.

Repousou o cigarro sobre o cinzeiro e vestiu-se em silêncio. Anos de prática tornaram esta parte uma das mais fáceis. Mas seu coração partia por ter apenas de observá-la assim, a uma distância considerável, e agora lhe dava náusea sentir o cheiro de álcool que criara para aquele ambiente outrora perfumado por tanta sensualidade.

Foi traído por um raro momento de compaixão, e quando teve certeza de que ela ainda estava dormindo, aproximou-se e cheirou o pescoço dela. Sorriu num soluço de choro por notar que seu coração batia com mais intensidade à medida que o perfume dela dominava suas narinas.

Deu passos curtos, de costas para a porta. De relance, olhou para o cinzeiro e certificou-se de que o cigarro estava apagado. A cada passo, balbuciava um "eu te amo". Dizia e repetia "eu te amo, eu te amo", porque sabia que nunca mais pronunciaria aquela frase com sinceridade novamente.

Quando conformou-se em não mais ter a visão dela por perto, deixou tudo em ordem no apartamento. Deixou sobre a mesa da sala todo o dinheiro que planejara roubar dela e a carta na qual confessava também a maneira como pretendia matá-la.

Bateu a porta do apartamento com raiva, e saiu correndo pelas escadas do prédio. Fugia. Fugia dela. Fugia da vergonha de ter se apaixonado pela vítima de seu golpe. E depois de amá-la de verdade, tentava acostumar novamente seu coração à frieza de caçar vítimas.

O perfume do amor dela já não estaria a mais ao alcance do seu querer. A ele, sobrariam apenas as cinzas de falsos amores, queimados com guimbas de cigarro, sempre após noites intensas de erotismo. De um erotismo mercenário, do qual sabia que seria refém pelo resto de sua vida.

Um comentário:

Carmen Augusta disse...

Olá Vinicius!

Pelo jeito o feitiço virou contra o feiticeiro....
Bem feito!

Beijos,
Carmen Augusta