Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Quarto de motel

Você não vai tirar a roupa?
Ele perguntou sem pestanejar
Sua voz era tomada pelo descaso
E eu tinha de amargar seu afeto raso

Encaminhei meus passos para o banheiro
Ele justificou que era por um bom dinheiro
Ameacei protestar, mas ele logo ficou faceiro
Implorando que eu o saciasse por inteiro

Comecei a dançar conforme a música, constrangida
Ele deixou o quarto à meia-luz
Dancei selvagem, com raiva da vida
Ele me louvando, por ser uma mulher que seduz

No limiar entre o sensual e o vulgar
Aos poucos, fui fazendo ele se assanhar
Cada parte do meu corpo que eu começava a mostrar
Vinha um suspiro dele, a me elogiar

Encaixei meu corpo em seu colo
Ele parecia outro com minha nudez a tiracolo
Aos poucos, eu gostava de ser uma mulher de subsolo
Dei-lhe uma mordida nos lábios, quebrando o protocolo

Mas minha fragilidade foi um raro momento
O prazer dele se diluiu num mero lamento
Tinha a inutilidade de uma camisinha
Descartável, no lixo, resto de uma aventurazinha

Obedeci ao seu “vamos embora”
Ele alegou que era tarde, e tinha hora
Eu mal tive tempo de tomar um banho
Ou de acertar a lente de olho castanho

Terminei a noite abandonada numa rua
Com minha tristeza amparada por uma ideia crua
A de que não sou biscate encontrada em bordel
Para eu ser sua puta, só no luxo de um quarto de motel

*****

Texto publicado originalmente na página eletrônica Segunda a Sexta.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Sentimentos

Sentiu culpa quando ela expôs todo o descontentamento da relação deles dois. Sentiu um vazio quando, pela janela, a viu ir embora num táxi, levando no porta-malas tantas recordações (boas ou más) de uma vida amorosa com pitacos de desamores. Sentiu náusea ao pensar no gosto de seus lábios sem os lábios dela.

Sentiu iminentes apetites sexuais ao encontrar, perdida em meio às roupas dele, uma calcinha mais sexy que ele a dera de presente numa data qualquer. Sentiu ânsia de acariciar seu próprio corpo, de olhos fechados e sussurrando o nome dela. Sentiu seu desejo ir embora quando atinou que seu sexo teria, naquela hora, a companhia exclusiva de sua própria mão.

Sentiu um irônico deleite ao imaginar que ela estaria às vistas de outro homem, que certamente tocaria com tanto sacrilégio e com tamanhas heresias um corpo que ele aprendera, passo a passo, a idolatrar. Sentiu pena ao ver dois sorrisos constantes nas tantas fotos que registraram os momentos deles. Sentiu um aperto no coração ao saber que o sorriso daquele casal se transformara bruscamente em duas infelicidades solteiras.

Sentiu um desejo mórbido de levar ao pé da letra a certeza que tivera desde a primeira vez que os olhos deles se cruzaram: “morrer por ela”. Sentiu que aos poucos já se matava, atropelado por um desafeto que nem se preocupou em olhar pelo retrovisor para checar o tamanho do estrago. Sentiu piedade de si ao ver pelo espelho as olheiras de lágrimas que previam o inevitável.

Sentiu ódio. Sentiu rancor. Sentiu amargura. Sentiu vontade de se vingar, mesmo sabendo que a vingança apunhalaria seu próprio peito. Sentiu que era hora de tomar alguma atitude. Sentiu que deixar a calcinha que restara na porta da vizinha pudesse ser uma traição. Sentiu que borrifar o “Bom Ar” pela casa exorcizaria os perfumes que vinham dela. Sentiu que a solução era rasgar, um por um, cada registro do passado deles. Sentiu as lágrimas rolarem à medida que uma foto se transformava em vários pedaços. Sentiu uma história que se apagava, gradualmente, de trás para frente, até que entre eles não aparecesse mais nenhum sorriso.

Sentiu que estava ofegante ao final daquela jornada. Sentiu-se um homem sem passado, perdido no presente e à mercê de um futuro que não desejava ter. Sentiu-se impotente. Sentiu que sem ela sua vida não teria o menor sentido. Sentiu certo alívio quando decidiu reconstruir o passado. Sentia uma certa felicidade quando encaixavam as peças do quebra-cabeças que sua raiva fez com as fotos.

Sentiu uma tempestade de sentimentos em tão pouco tempo entre a despedida dela e a certeza de que estava irremediavelmente atrelado a todas as vontades daquela mulher. E mesmo dentre tantas nuances de seu coração, ao final de tudo, veio a sensação terna de que o sentimento do amor falaria, para sempre, mais alto.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Fim de festa

Com um atrevimento poético, o Diário de um salafrário retoma suas atividades no ano que começa. Este que vos escreve espera que seja uma boa forma de iniciar 2010. Bom, vocês responderão se fiz bem...

Abraços a todos,

Vinícius Faustini


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Últimos diálogos cercados de bobagens
Poucos vestígios de insinuações de sacanagens
Alguns bêbados expondo seus vômitos
Outros querendo que creiam em seus mitos

Para a música, não chegam novos presentes
O frio do ar-condicionado se sobressai aos calores latentes
Ele pode mergulhar em uma lamúria doente
E sentir os dissabores de sua doce ausente

Àquela hora ela adormece
De seu aniversário ela se esquece
Sai pelos cantos, sabe que enlouquece
E se pergunta: com quem ela agora se aquece?

Abraça-se ao poste, acordado em seu sonho
Tudo ao redor parece enfadonho
Sem ela, tudo perde o sentido
Sem ela, nenhum bom momento merece ser vivido

Sussurra para si um “ela não veio”
Saudade de recostar a cabeça em seu seio
De a cada noite os dois entrelaçarem suas pernas
E adormecerem juntos, após longas carícias ternas

Pra ficar perto dela aceitaria trocar tudo
Os convidados, a música, tudo ficaria mudo
De aniversário, desejava apenas um convite
Para os dois viverem um momento de deleite

A lua trazia uma noite promissora
E agora passa a se esconder em uma nuvem opressora
A dor dele permanece abrigada
No frio arrepiante da madrugada

É fim de festa
Seu coração deixara para ela uma fresta
O esquecimento pelo álcool não mais se manifesta
De resquício da noite, fica apenas uma azia indigesta