Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Cristal japonês

Aproveitou que ele estava de olhos fechados e desviou bruscamente a vista para o relógio da cabeceira. Para evitar que ele desconfiasse de seu enfado, deu mais um falso gemido de prazer. Ele respondeu ao seu afeto de mentira com uma mordida de verdade em sua orelha. Por alguns instantes, ela teve receio de ficar com o lóbulo ensanguentado, mas logo voltou a atenção para ele. Queria que aquilo tudo acabasse de uma vez.

Deixou que ele acariciasse seus seios, pois muitas vezes ele disse que era a parte dela que ele mais gostava. Achou que já era uma concessão muito grande, tamanho o desajeito do apalpar dos dedos dele. Ia empurrá-lo, mas hesitou ao sentir que a respiração dele ficava mais ofegante. Abraçou-o com súbito afeto, um abraço de despedida daquele momento a dois que iria terminar. Um último grito até ele cair em cansaço sobre ela. Novo olhar para o relógio. Um leve roçar de lábios, e ele pendeu para o lado esquerdo da cama. Ela permaneceu de costas para ele. Puxou o braço e fez com que ele a envolvesse pela cintura. O hálito dele se aproximou de seu ouvido e sussurrou um "boa noite" seguido de um beijo no pescoço. Ela respirou fundo, agradecida pelo "boa noite" que só aconteceu às duas e quarenta e oito da manhã. Fez um afago em sua mão e não disse mais nada. Não demorou muito para ele adormecer.

Mentalmente, começou a enumerar todas as justificativas para o que ia fazer logo que ele despertasse. Relembrou, palavra por palavra, cada incômodo que aumentava ainda mais depois de mais uma noite de insônia. Falou para si tudo o que iria falar para ele. Voltou a olhar para o relógio, tinham passado poucos minutos. Enumerou novamente. Outros pouquíssimos minutos. Tentou dizer pausadamente (com intervalos mais longos entre um tópico e outro) para ver se conseguia fazer com que o dia raiasse. Pouco adiantou.

Prosseguiu a relatar todas as suas amarguras, numa cantilena que parecia um contar de carneirinhos - ironicamente, para contar as razões de sua falta de sono. Sentiu raiva. Tédio. Amargura. Insegurança. Ódio. Pena. Dele e de si. Mas em nenhum momento conseguiu forçar uma lágrima que a deixasse menos insensível.

O relógio anunciou cinco da manhã. Faltava cerca de uma hora. Teve de recorrer a uma última ideia. Coçou o nariz com violência até forçar um espirro. Ele veio. Fez o mesmo por três vezes, até deixá-lo bem entupido. Cinco e meia. O dia saía. Em silêncio, retirou o braço dele de sua cintura e foi em direção à gaveta da cabeceira. Abriu seu estojinho de maquiagem e encontrou o cristal japonês. Passou por seus olhos e conseguiu, finalmente, um lacrimejar. Suspirou aliviada.

Deitou-se novamente com ele. Agora experimentava uma certa dose de liberdade. Começou a pensar em outros horizontes, e assim o tempo passou mais rápido. Cinco e quarenta. Outro coçar de nariz, novos espirros e uma dose maior de cristal japonês nos olhos.

Cinco e cinquenta. A última dose do líquido e agora ficar sentada na cama. Mais cinco minutos, ele despertou. Notou-a sentada e tentando esconder o rosto entre seus joelhos. Ainda com hálito de sono, disse um "bom dia". Ela levantou um pouco o corpo e afagou a face, de forma a ele perceber que seu rosto tinha chorado.

Ele prontamente "despertou". Perguntou o que tinha acontecido, se podia ajudar. Ainda mais patético do que ela imaginava que seria num momento desses. Mas ela teve sorte de a congestão nasal alterar sua voz. Aquelas palavras duras pareciam mais amenas ditas por uma mulher que chorou a madrugada toda. Escancarou todas as mágoas de anos de relacionamento, amparada pelo cinismo que sua conduta criou.

A cada esboço de insistência, ela forçava a vista e derramava mais lágrimas. Ele se solidarizava, a deixava envolvida em seus braços, a procurava em sua boca. Mas sempre o que achava era o choro da mulher que amava.

Enfim, desistiu. Disse que a imagem dela com suas olheiras de sono e de choro eram feridas em seu coração. Ela sentiu vontade de rir de tamanha breguice, mas segurou-se na feição de coitada. Disse que ia arrumar as malas.

Ele lacrimejou. Desviou seu olhar do dela e, com a voz verdadeiramente chorosa, disse apenas um "tudo bem". Em silêncio, ela vestiu-se. Preencheu duas malas com roupas, maquiagem, cremes, escovas de dente e de cabelo, alguns bichinhos de pelúcia e um colar que ele deu de presente. Olhou para o anel de compromisso que trazia na mão direita. Achava ele bonito, mas pensou que a pieguice dele teria um afago neste simbolismo barato.

Foi em direção a ele, afagou sua mão. Ao deixá-la aberta, fez o movimento de retirar o anel e colocá-lo na mão dele. Ele escondeu o rosto em prantos. Ela ainda soltou o clichê "seja feliz" e, mesmo com a boca dele esboçando um último beijo, ela deu um suave roçar de lábios em sua testa.

Levou as duas malas e o deixou solitário no quarto, sem olhar para trás. Carregava consigo uma última imagem dele: a de um sujeito fraco, desolado. E com as emoções manipuladas facilmente pelas artimanhas de um cristal japonês.

6 comentários:

Feer Amaral disse...

Texto como sempre perfeito!
Pois é meu querido..que mulher ardilosa eim.. bahh.. homem não pode ver mulher chorando...nem que seja de mentira...

BjoO.. tô com saudade suas!!

Te adoroo!!

Fer Amaral...

CON disse...

Concordo...Perfeito!!!
Eu sempre me envolvo...Você consegue me transportar para a cena...Um barato!!!

Mas será que esta mulher me ensina hein? rsrsrs

Beijos azuisss

Márcia Tristão-Bennett disse...

Muito bem escrito!!!!! Que texto!!!!!
Seus contos sao sempre assim.....

Parabens!!!!!!!!!!!


Beijos!!!!!!!!!!!!!

Everaldo Farias disse...

Eu concordo, seus textos estão cada vez mais perfeitos! E como sempre, eles nos prendem de uma forma fascinante!

Blog Música do Brasil
www.everaldofarias.blogspot.com

Um forte abraço a todos!

Carmen Augusta disse...

Vinicius você é demais!
Eu vivo a cena enquanto leio.
Impressionante!

Parabéns!!!!


Beijos,
Carmen Augusta

Armindo Guimarães disse...

Olá, pá!

Creio que a Feefeh disse tudo: "homem não pode ver mulher chorando...nem que seja de mentira...".

eheheheh

Grande abraço