Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Objeto

Mal cobriu-se com a capa que a esperava nos bastidores e a sua colega já a fez atentar para o rapaz da mesa do centro, que vinha já há algumas semanas, fiel e atento a todas as apresentações dela. Ela espiou pela fresta da cortina rasgada, e ele agora parecia mais entretido com as garrafas de cerveja. Suspirou um: "É só um bêbado", e depois repetiu para si as próprias palavras. Defesa, criada pelo receio de se desiludir, ainda mais naquele universo sórdido.

Desde que aceitou o emprego de dançarina no inferninho, decidiu que não se submeteria aos programas. Achava que o dinheiro por fora não era suficiente para suportar o asco de dividir seu corpo com homens que nunca desejou ter. E aos poucos começava a sentir-se valorizada, desejada.

Notava os espectadores cada vez mais ansiosos, sedentos, degustando a nudez que acontecia somente quando ela permitia. E a cada apresentação dava um tom a mais de malícia. Sabia que o olhar da plateia seguiria seu rebolar para o lado que fosse. E estendia a dança a seus dedos, guiando os olhos ansiosos por conhecer seus seios. Contava dois acordes a mais da música até os dedinhos desenlaçarem a calcinha do biquíni de oncinha, e quando via que a música ia acabar, apoiava-se na escadinha do palco para deitar-se, de bumbum empinado, e conseguir os poucos aplausos dos mais sóbrios ou mais atentos.

O mistério em relação ao homem permaneceu todos os dias que ela subiu ao palco. Não tinha como vê-lo de lá, as luzes rosa e amarela quase a cegavam. Por isto, decidiu a cada noite dançar como nunca, com seu desejo à flor da pele sendo transmitido a cada movimento. Não era só cênico, não era só dança. Ela vivia tudo aquilo, e já não se importava em compartilhar seus sentimentos mais voluptuosos com os espectadores insones, solitários e depravados que a comeriam com os olhos em troca de um preço irrisório e de muita bebida.

Sexta-feira. "Ele veio e tá na mesa do centro, como sempre", a prostituta cochichou pouco antes de ela se dirigir ao palco. Olhou para o cabide. Escolheu a fantasia de enfermeira, mas manteve o biquíni de oncinha por baixo da roupa. Era uma retribuição ao dia em que soube pela primeira vez que ele ia lá pra vê-la.

Seguiu de salto alto pelo corredor, não se importando mais com o cheiro misturado de urina e fosso que vinha do banheiro. Viu de relance o show das duas mulheres que simulavam lesbianismo completamente nuas. Timidamente, aplaudiu as colegas de dança. Por detrás da cortina rasgada, fitou-o. Ele tinha em seu semblante um ar de ansiedade, mesclado ao fascínio causado pelo casal de mulheres.

As luzes da plateia se acenderam. Ela ouviu ao longe o voto de "vai lá, garota" que uma das dançarinas anteriores fez para ela. Só prestava atenção nas reações dele. Foi despertada de seu devaneio pelo som do locutor "Senhoras e senhores, uma salva de palmas para nossa atração mais desejada: a enfermeira".

Foi a passos fortes para o palco. Seguia o som da balada internacional, rodopiando pelo palco. Parou no proscênio. Acariciou seu corpo por cima da roupa. Deslizou a mão por seus seios, parando até a altura da saia. Olhou para ele e entrabriu a língua para molhar seus lábios. Abriu a blusa botão por botão até revelar a parte de cima do biquíni. Já não via os demais presentes (umas 10 ou 15 pessoas).

Foi para ele que empinou o bumbum para revelar a calcinha fio dental. Desceu o corpo até o chão, num rebolar cheio de erotismo. Bruscamente, levantou-se e facilmente se desfez da saia. Passou os dedos pela barriguinha, brincou com seu dedilhar, hesitando entre subir para o sutiã e descer até a calcinha. Abriu um pouco o sutiã para mostrar sutilmente os bicos dos seios. Espantou-se por eles estarem firmes, quentes de tanto desejo. Num desenlaçar, livrou-se até ficar seminua.

Desfez os dois lacinhos da calcinha e mostrou sua nudez completa para ele. Um facho de luz pôde permitir que ela visse a excitação dele. Ela experimentou uma leve carícia em si mesma e escondeu um gemido. No último segundo da música, ainda passou a ponta da língua em seus lábios. Saiu ovacionada do palco. Mas só os aplausos dos olhos dele é que interessavam para o seu coração.

Saiu correndo para o camarim, sem se importar com a própria nudez. Pegou em sua bolsa um batom vermelho. Escreveu "Me encontra na segunda porta à direita", e pediu ao garçom que estava mais próximo da cortina para entregar ao rapaz. Ainda viu que ele recebeu o bilhete, e correu para o lugar com o estojo de maquiagem.

Passou uma lavanda, ajeitou os cabelos e passou o mesmo batom vermelho. Deitou-se de bruços no sofá, completamente nua. Ouviu duas batidas na porta. Ordenou que entrasse. Era ele. Enfim, era ele. Sentiu-se ainda mais excitada. Num sopro, disse: "Vem". Mal ele fechou a porta e ela se aproximou. Acariciava seu corpo até deixá-lo tão nu quanto ela. Sentou-se, deslizando entre carícias e afetos, e o barulho das molas do sofá quase se sobrepunha ao som vindo do jukebox do inferninho.

Não se importava em colocar para fora toda a vontade de estar com aquele homem para quem dançara nesta e em outras noites. Agarrava-se, apertando suas costas e cravando as unhas em seu pescoço. Na iminência de seu desejo, ansiou por um beijo dele. Deu um, dois beijos em seu rosto, até os dois se encontrarem em suas bocas. Calou um último suspiro no encontro de línguas, e caiu em delírio sobre o corpo dele.

Voltou a despertar e roçou levemente um beijo. Ele se desvencilhou do corpo dela. Sentou-se, e começou a vestir suas roupas. Colocou as calças e ela perguntou: "Você já vai?". Ele vestiu a camisa e puxou da carteira duas notas de 20. Sem olhar pra ela, disse: "Acho que esse tanto tá bom, é mais do que o preço do show".

Ficou espantada. Levantou-se no sofá e tapou sua nudez. Parecia constrangida dela. Ele esticou o braço. Ela virou o rosto e ele jogou o dinheiro no sofá. Antes de bater a porta, falou um "Qualquer dia eu volto pra te ver, meu bem".

Sozinha, procurou com o olhar alguma coisa para se cobrir. Foi em vão. Estava nua naquele quartinho. E experimentava a amargura por ter se tornado mais um mero objeto presente em um inferninho.

3 comentários:

Armindo Guimarães disse...

Estas meninas nem ao menos na ficção conseguem ser felizes.

A gente sabe que infelizmente a realidade é mesmo essa, mas...

Senhor Salafrário: e se os leitores lhe pedissem pra você continuar o "Objeto" dando-lhe outro fim?

Faça isso pelas meninas, carago!

Dê uma chance pra elas, tá?

Ficamos esperando, viu?

Abração

:)

Feer Amaral disse...

concordo com o amigo... podia ter um final feliz...
mas da nada não, eu prefiro os infelizes...
hehehehe

bjo Sr. Vinícius...

CON disse...

O Vinícius tem este dom, de nos deixar esperando mais, rsrsrs
outro fim, outro conto...
Você é fera meu amigo!!!
Demais!!!

Beijos azuisss