Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Segura na mão de Deus...

Pai Nosso, que estais no céu. Comecei a rezar sem olhar nos olhos do crucifixo. Temi qual seria o olhar divino que Ele lançaria sobre mim depois do que eu fiz. Do sacrilégio. Da perversão. Respirei fundo e deixei a oração do "Pai Nosso" de lado. Não seria através de umas palavras designadas pela igreja como forma de falar com Deus que me fariam dizer, justificar o que eu fiz. Enfim eu estava lá, de joelhos, disposto a me confessar. Sem pudor desta verdade que tanto destruía o meu coração.

Levantei e fui em direção ao jarro de água da minha cabeceira. Hesitei e decidi voltar a me ajoelhar. Eu sentia sede. E devia conviver com o suplício da sede agora, diante de Deus, ao falar sobre o que fiz. Fui até uma outra salinha, achei alguns grãos de milho que o professor de catecismo guardava numa gaveta, a fim de que as crianças fossem castigadas por suas travessuras. O resto da igreja permanecia às escuras, naquele silêncio sepulcral que ainda mais me aterrorizava.

Coloquei os grãos de milho no chão e me ajoelhei sobre eles. Chorei de dor até conseguir me acostumar com o incômodo do milho em meus joelhos. Encarei novamente a cruz, e acho que o efeito da luz do poste energia nos meus óculos deu a impressão de que eu iria ser punido com uma cegueira. Nada mais justo. Foram os meus olhos que iniciaram toda esta devassidão da minha alma.

Senhor, eu me arrependo... Pausei. Assustado, disse: não! Eu não me arrependo! Eu não me arrependo de nada, nada do que senti, do que vivi. Não foi ela! Fui eu. Eu que retribuí seu olhar. Em vez de ter meus olhos destinados às almas de todos os fiéis, acabei me perdendo nos olhos dela, que, com um movimento me fizeram olhar seu decote. Aquele decote no vestido branco, aparecendo de leve um pedaço do sutiã vermelho. A santa que escondia em si toda a volúpia de uma diaba.

Diaba que agora me arrasta a este inferno, inferno da minha alma que foi tão facilmente alvo de uma tentação pela carne. Por sua carne morena, na qual eu me vi de uma hora de outro disposto a conhecer não só a cor do pecado. O cheiro, o sabor do pecado.

Seu rosto de olhos sedutores e de um sorriso enigmático ao abrir a porta de seu apartamento e dizer, baixinho: "Tô nua pra você... Sou sua tentação!". Aquela voz sensual me fez, sim, querer conhecer cada detalhe daquele pedaço de mau caminho. Sua carne macia parecia reagindo com suavidade a cada toque de minhas mãos hesitantes, mãos virgens ao toque no corpo de uma mulher.

E eu, hipnotizado por seus olhos, seguia, como um fiel à sua santificada nudez. Sim, porque uma nudez tão bem arquitetada não pode ter sido feita por obra de outro que não o Criador. As mãos pérfidas do Diabo não seriam capazes de copiar tão bem uma criação divina como esta. E eu, um homem que me desapeguei de todas as coisas mundanas, agora repetia no ouvido dela: "Você é minha, você é minha...", alternando meus beijos entre seus seios e o crucifixo que ela trazia no pescoço. Com os lábios, senti o gosto da tatuagem "Jesus" desenhada em sua nuca. Senti que minha boca queria dizer "não", mas quando ela se misturava ao hálito dela eu dizia "sim".

E eu disse "sim". Uma, duas, tantas vezes em seu apartamento. E ontem. E ontem de madrugada, o Senhor viu. O Senhor foi testemunha de que eu estava estudando a Bíblia quando ela chegou. Vestida num hábito de freira, mas de lingerie preta por baixo. Seus olhos em fogo ardendo meu corpo de tanta luxúria. Tirou o sutiã e jogou-o próximo do meu terço. Ao descer sua calcinha, fez com que ela caísse sobre a Bíblia.

Cada passada de sua língua me doía como um açoite. Ela gemia "segura na mão de Deus...", e sua dor de prazer vinha de maneira lancinante a ferir minha alma.A voz lasciva "segura na mão de Deus" e o grito "vai, vai". Ela conduziu minha mão a segurá-la pelo quadril, com seu corpo cada vez mais oscilando diante de mim.

Senhor, tende piedade de mim! Ou melhor, não tende... Desde o início fui infiel a todos os juramentos que fiz como padre. Não será a absolvição pelo que fiz que irá aplacar todos os meus pecados. Ao menos, em razão de sua bondade, escute o que vou Lhe contar.

Naquele instante em que nós íamos juntos à plenitude de nossas almas, na hora em que eu já sentia que ela e eu éramos um só, eu consegui ver. Conseguir encontrar em seu corpo santo os traços endemoninhados aos quais eu me tornava submisso. Sua língua ferina envolvida pela boca de batom cor-de-sangue, sugou toda minha pureza e sugaria ainda mais a cada momento que eu conversasse com seu olhar.

Sei que posso estar cometendo um sacrilégio, Senhor. Mas sei, tenho plena consciência de que foi a mão do Senhor que me guiou para fazer o que fiz. Também só pode ter sido de Vossa vontade o desejo de ela ter perdido os sentidos logo que caiu no chão. E de me dar forças ao fazer com que ninguém me notasse na calada da noite, carregando um corpo morto debaixo da vestimenta de uma freira. Ninguém testemunhou quando eu a atirei definitivamente no meio de um terreno baldio. Todos estavam dormindo - inclusive os cachorros.

Pois agora, este pecador Vos implora, Senhor. Pare com tamanha tortura em minha alma! Eu... Eu ainda a ouço! Todas as noites eu escuto sua voz. Ela cantarola, com toda sua volúpia, num sussurro de sedução, só para que eu a ouça: "segura na mão de Deus, segura na mão de Deus...".

Um comentário:

Carmen Augusta disse...

Olá Vinicius!

Bonito o conto, com um certo mistério no começo, mas que também não deixou de existir no final.

Gostei, parabéns amigo.

Um beijo,
Carmen Augusta