Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Escape

Olhou pela terceira vez o resultado do exame. Suspirou com certo sarcasmo, não seria daquela forma que as letrinhas mudariam de lugar. Viu seu rosto no espelho, os cabelos molhados do banho quente e a pele com gotas de água desenhadas nos ombros.

Enxugou-se longe do espelho, com vergonha de sua nudez e de todas as consequências. Tinha receio de amaldiçoá-la novamente. Era uma longa noite de culpa para remoer, as memórias vinham desde a primeira peça de roupa que havia tirado na frente de um homem.

Por um momento, sentiu que não tinha vivido nada. Recorreu ao clichê de "o que é que eu fiz para merecer isso?" e se lamuriou de tanto recato. A lamúria a entorpecia e a deixava ainda mais amargurada. Respirou fundo e deixou escapar um grito.

Abriu a gaveta e pegou o conjuntinho mais erótico que achou - uma calcinha fio dental e um sutiã meia-taça, ambos vermelhos, cor do sangue que lhe subia à cabeça. Pegou o perfume mais vagabundo e passou em seu pescoço e seus punhos. Instintivamente, passou pelos seus braços, suas axilas, seus seios e molhou até seu sexo. Tinha ódio até de seu cheiro verdadeiro. Queria ser outra, e agora começava a ser.

Cobriu o rosto com maquiagem pesada. Viu o último resquício da sua face ser coberto por um batom vermelho bem berrante. O aplique de cabelos castanhos se sobressaiu à sua morenice original. Pensou em usar o vestido mais luxuoso que encontrou no armário. Logo mudou de ideia, e preferiu o vestidinho mais florido e cafona. A bolsa de camelô e o salto 17 foram os últimos detalhes antes do interfone tocar anunciando o táxi.

Desceu pelas escadas. Não era vergonha de encarar os vizinhos insones, só queria poupar seu tempo de responder a algumas perguntas de curiosos da vida alheia. Passou rapidamente pela portaria evitando fitar o porteiro. Deu o endereço para o taxista e ele relutou de início. Mas logo concordou em levá-la quando ela propôs pagar o dobro do taxímetro. Foram o caminho inteiro em silêncio. Olhando sempre pela janela, tentava reconhecer as ruas para esquecer tudo o que estava fazendo. Despertou somente quando ele falou que tinham chegado ao destino. Ela sacou o dinheiro da bolsa. Ele agradeceu. Ela disse que tinha muito mais para agradecer.

Abriu a porta do carona, ajoelhou-se no banco e apoiou-se diante dele. Abriu seu zíper, puxou sua cueca e começou a acariciá-lo. Sentiu que suas mãos o faziam ainda mais inebriado e começou a usar a língua. Riu ao ouvir o gemido dele e começou a acariciá-lo com os lábios. A cabeça dela oscilava e ela cravava as unhas em seu peito. Num último sussurro dele, seus carinhos voltaram a ser com as mãos. Ele ainda pediu mais, mas ela falou que era só um "aquecimento". No espelho retrovisor retocou o batom. Deu um tímido "tchau" ao taxista e seguiu, ainda cambaleante, pela rua.

Parou diante de um poste de luz. Ergueu o corpo, deixou o decote ainda mais à mostra. Aproveitou a rua deserta e decidiu tirar o sutiã. Ajeitou o vestido de forma que o decote mostrasse parte dos bicos de seus seios. Poucos carros passavam pela rua e pareciam não notá-la. Viu que tinham se passado 15 minutos e chegou a pensar em desistir da noite. Mas respirou fundo, empinou os seios e o bumbum, e um carro parou.

Teve um arrepio quando o homem do banco do carona se dirigiu a ela com um "aí, piranha". Ela chegou mais perto e apoiou os braços na janela. Ele perguntou o preço. Ela respondeu que custava o quanto ele tinha na carteira, mas faria um desconto pelo preço do motel. Depois de balançar a cabeça concordando, entrou no carro pelo banco de trás. Ao entrar, descobriu que eram três homens. Assustou-se, mas logo lembrou do seu propósito e até sorriu quando um deles a chamou de "branquinha de pele de bebê".

A pedido de um deles, tirou a calcinha dentro do carro mesmo e começou a se acariciar. Nem notara que agora expunha o sexo sem o menor pudor que vinha antes do banho. O homem que dividia o banco de trás fez menção de agarrá-la mas os que estavam no banco da frente protestaram, dizendo que somente no motel ele poderia tocar "a piranha". Ela se deliciava ao ser xingada deste jeito.

Chegaram a um motel fuleiro. Colocaram uma música e ordenaram que ela fizesse um striptease. Ela se despia sem olhar para o próprio corpo. Gostando de olhar somente para eles, pra maneira como eles estavam em êxtase com uma vadia desconhecida. Eles riam, atiravam moedas. Chamavam-na de todos os nomes. E ela se deixava ficar nua.

Escolheu primeiro o moreno claro alto. O homem ficou nu e se atirou com ela na cama. Ia sacar a camisinha do bolso da calça mas ela disse "não precisa". Foram alguns segundos em silêncio seguidos de uma gargalhada. Ele gritou para os outros dois que iriam transar sem camisinha e eles gargalharam também.

Deixou-se ser tomada por ele. Ardia de desejo e de ódio e de culpa. Remoía o desejo reprimido de ter sido uma garota casta. Remoía o ódio de quem tinha abreviado sua vida e a condenado para sempre. Remoía sua culpa por não ter se cuidado antes. Mas agora se vingava. Ia se vingando em desconhecidos pervertidos. Nos homens tolos que acreditavam nela, que além de falsa bondade ao se entregar sem proteção era uma falsa prostituta.

Extasiava, um por um, sabendo que mais tarde eles iriam compartilhar toda a culpa que ela carregava desde o momento em que recebera o exame. Deixava-se levar por eles. Aceitava que três homens desconhecidos conhecessem toda a pureza de seus traços, de suas curvas somente em troca de prazer. Num último sobressalto, experimentou sorrir até se deixar cair definitivamente sobre o corpo dos três.

Já começava a pegar no sono quando os três se levantaram e falaram que iam embora. Ela pediu que deixassem o dinheiro do motel e algum troco que sobrasse pro programa. Algumas notas de dez reais ficaram amassadas sobre a mesa de cabeceira.

Esperou os três saírem e tomou uma ducha. No banho saiu toda a maquiagem que ainda lhe restava. Tirou o aplique e o deixou numa lata de lixo. Arrumou um pouco os cabelos verdadeiros. Pediu um táxi.

Foi em silêncio até sua casa. Viu o dia começando a clarear. Chegou ao prédio e entrou pela porta dos fundos. Subiu as escadas até chegar ao seu apartamento. Ao entrar lá, viu a hora no relógio do despertador. Faltavam ainda quatro horas para o marido chegar de viagem.

Amaldiçoou o marido mais uma vez. Era ele quem tinha feito a vida dela entrar em estado terminal. Foi o descuido dele que acabou com a vida dela. Mas ela o amava muito. A ponto de não se permitir fazer nenhum mal ou dirigir nenhuma ofensa para ele.

Olhou-se no espelho de cara limpa. Sabia que depois daquela longa noite seu dia clareava, com menos ressentimento e com outros para dividirem a culpa que a carregava há tanto tempo.

4 comentários:

CON disse...

UAUUUU!!!! Amigo que demais!!! Vi a cena toda...Você tem este dom, de nos prender na leitura e nos fazer "viajar"!
Tenho orgulho em ser sua amiga...Você é o CARA!!!
Parabéns!!!
Beijos azuisss

Feer Amaral disse...

Como pode vc ser tão perfeito?
Cara, ta demais...
Que noite longa eim...
Que história mais triste.

O pior é que tem gente qe realmente pensa assim..

beijos..

Paz e Força Sempre!!

Carmen Augusta disse...

Olá Vinicius!

Como disse sua tia, bem escrito mas muito forte...Não achei assim tão forte, mas bem triste.
Triste pelo jeito que ela quis se vingar.

Meu amigo, você tem uma cabecinha de ouro...Não sei como saem tantas ideias daí de dentro...Muita sabedoria para um escritor jovem.

Parabéns!

Beijos,
Carmen Augusta

James Lima disse...

Rapaz... Eu visualizei a história todinha, num cineminha aqui... Meus parabéns, a cada dia que passa você tá mais "foda".

Abração
James Lima
www.robertocarlosbraga.com.br