Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 4 de março de 2009

De um homem só

Ninguém inventou. Ninguém exagerou. Todo mundo viu. Ninguém suavizou. Depois do que fez, ele olhou para a multidão que o cercava. Pessoas de todas as idades, de todos os tipos. Recriminando, xingando, gritando. Ele olhava para tudo, mais atônito com aquela reação que despertou o seu ato do que com o ato em si.

Olhou para a arma que segurava na mão direita. Não sabia o que dizer, de que jeito ia se justificar. Dizia para si mesmo: "Não tive culpa. Eu não pude suportar. Eu não podia aguentar aquilo calado". Olhou para a mesa revirada.

Tentava reatar com ela mais uma vez. Ele tinha ido para lá cercado de esperanças, disposto a aceitar tudo o que ela ordenasse. Mesmo que, mais uma vez, ela jogasse sua honra na lama, do mesmo jeito que fizera tantas vezes. Sabia que era somente um prêmio de consolação, alguém para o qual ela recorria quando todos os homens pelos quais ela se interessava esnobavam sua companhia.

Ela chegou. Na hora de cumprimentá-lo, se esquivou quando ele quis somente beijar seu rosto. Renegava sua consideração por ele a um aperto de mão. Em outros momentos era suficiente para desmanchar com aquela cena, só que ele sabia que naquela hora ele iria até o fim. Chamou o garçom. Os dois pediram os pratos.

"Eu quis trazer você aqui porque... Ah, eu ainda acho que a gente tem muito o que viver. Juntos!", ele disse, segurando a mão dela.

Ela o olhou, com um misto de pena e constrangimento, tentando ter um pouco de piedade com o homem pelo qual sentia desprezo. Respirou fundo, e disse, pausadamente, na esperança que ele compreendesse de uma vez por todas:

"Chega! Eu já disse que não tem mais volta. Acabou! De uma vez por todas, acabou".

"Mas eu te amo!", ele dizia, mais suplicante ainda.

"Mas eu não! O amor acabou, é hora de cada um seguir a sua vida. Eu quero fazer a minha, e sem você!".

Olhou para o lado, receosa com alguns olhares que vinham das outras mesas. Pigarreou e aproveitou a chegada do garçom com os pratos para tentar esfriar a cabeça. Momento de silêncio. Os dois se serviram. Ela comia depressa, tentando não olhar para ele. Ele degustava o peixe, olhando atentamente para ela, com todo o carinho que podia sentir. E sentia. Amava, com a mesma paixão do primeiro instante em que a viu. Tentou segurar novamente a mão dela, dizendo:

"Nenhum homem vai te amar como eu".

Ela trincava os dentes, já perdendo um pouco a paciência:

"Porque você não deixa, seu cachorro!"

Ele, natural:

"Claro que não deixo... Eu cuido do que é meu! E você é toda minha".

Uma lágrima de raiva começava a rolar do rosto dela:

"Não sou, e me arrependo de um dia ter sido".

Ele tentava beijar sua mão, mas ela foi afastada com um tapa.

"Me larga! Esquece que eu existo. Me deixa ter um pouco de vida, e uma vida longe de você". - ela começava a chorar longamente, e fraquejava a ponto de ceder ao abraço que ele começava a dar.

Lembrava-se do primeiro homem que conheceu depois do fim deste namoro. E dos outros que ela tentava começar, mas que iam se afastando sempre pelo mesmo motivo. Ele aparecia nos momentos em que ela estava acompanhada na noite, ligava para a casa dela de madrugada, deixava declarações de amor na secretária eletrônica, deixava chamadas perdidas no celular. Nenhum homem aguentava conviver com esta obsessão.

Movida por todas estas lembranças, esqueceu que o restaurante estava cheio e se levantou, aos berros:

"Sai da minha vida! Eu te odeio! Eu nunca mais quero te ver, não quero saber de você!".

Ele, que mantinha a calma, começava a ficar levemente constrangido, olhando para os lados. Sorria amarelado para as pessoas que começavam a olhar com certa reprovação. Segurou o braço dela, para machucar, mas esbanjando ternura:

"Sem cena, minha criança. Você é só minha, e vai ser sempre minha".

Depois de muito tempo, ela soube ser cruel:

"Eu nunca vou ser sua. Eu fico do lado de qualquer homem, por pior que seja. Menos você. Você não é homem pra mim".

Aquela última frase doeu nele como um soco. A calma se dissipou numa irritação:

"Retire o que disse".

E ela continuava:

"Frouxo!" - e falava aos berros para humilhá-lo na frente de todos - "Eu te traio, eu te esnobo, falo que não quero mais, e você aí, retribuindo com essa merda que você chama de amor. Meu filho, isso não é amor. É falta de vergonha na cara! Não sabe ser homem suficiente com uma mulher, fica desse jeito, controlando, fingindo que "cuida do que é seu". Se fosse macho o suficiente, não precisava me trazer pra perto de você na marra, na força. E tem mais: eu dormi com muitos homens melhores que você. E todos foram DE-LI-CI-O-SOS".

Ele começava a ficar ofegante. Balançava a cabeça negativamente. Pedia para que ela parasse. Implorava, e só sabia responder "eu te amo, eu te amo". Até que não aguentou mais.

O tempo entre ele pular da cadeira e sacar a arma foi uma fração de segundos. Com os lábios trincados e os olhos vermelhos das lágrimas, não pestanejou em atirar nela. Acertou no coração, o órgão que ele mais desejava ter dela. Sentiu um alívio tão grande que se esqueceu da multidão que agora ficava ao seu redor. Ao redor daquela cena. Ele, de pé, arma em punho. Ela, com sua beleza interrompida por uma bala. Seus olhos verdes ficavam ainda mais lindos parados.

Um gerente do restaurante retirava a arma de sua mão. Dois garçons o seguravam pelos braços. Uma pessoa, pelo celular, chamava a polícia. Ele passava com os olhos por tudo o que acontecia, mas nada mais importava. Ele agora estava em paz. Tinha certeza de que o maior amor de sua vida seria, definitivamente, mulher de um homem só.

3 comentários:

Marcos Fontelles de Lima disse...

Texto forte... daqueles que começamos e queremos terminar pra ver como acaba...

Apesar de gostar mais de comédias, romances, Gostei.

De onde vc tira textos assim? inspira a vida real? os jornais?

"Há braços"

Marcos!

Armindo Guimarães disse...

O Marcos disse bem.

Mais um conto à Salafrário!

Abraços

Marcos Fontelles de Lima disse...

Vinicius,

Hoje fui a jacarepaguá pegar a assinatura da filha do escritor Haroldo Maranhão, para que ela autorizasse a gravação de um documentário sobre a vida e obra do pai dela. Vc conhece a obra do Haroldo Maranhão?? lembrei de vc lá... espero um dia correr atras da assinatura do seu filho(a)...

Agora tenho que ir a Magé pegar a assinatura do filho dele... Assim como um acervo que ficou com o filho do Haroldo Maranhão...

"Há braços"