Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

sábado, 15 de novembro de 2008

Dignidade

Nova reverência a Nelson Rodrigues - citando nomes de personagens de suas peças e de seus contos, e usando uma doença que ele usou em algumas de suas histórias. Texto também publicado no zine O Onanista Pós-Moderno.

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Osvaldo decidiu sair mais cedo do expediente naquela Segunda- feira. Estava cansado do seu trabalho em uma das muitas repartições públicas existentes no país. “ – Não, depois de Domingo ninguém vem reclamar de patrão, fazer denúncia ou o diabo. Estão todos entorpecidos pela feijoada, pelo futebol e pelo zoológico.”- pensava, rindo, debochando dos humildes que apareciam durante a semana em seu local de trabalho.

Colocou seu paletó, que serviu como escudo para encobrir a camisa ridícula listrada e empapada pelo suor azedo, e seguiu pelo corredor.

Terminou de arrumar sua mesa, seguiu o rumo do elevador (a repartição ficava num prédio velho do Centro, no 12o andar). Quando estava prestes a sair, ouviu uma voz: “ – Seu Osvaldo?” Ficou estático, com aquele ar de “lá se vai o meu fim de tarde”. Ficou na dúvida se atendia ou se não atendia a voz. “ – Seu Osvaldo?”- foi chamado de novo. Com ar de lamentação, virou-se.

Era dona Flávia, sua secretária. “ – O senhor já vai?” A dona Flávia devia ter seus quase 30 anos, mas era estritamente cadavérica. “ – O rosto dela parece um joelho!”- palavras de um colega de repartição de Osvaldo, um sujeito alto, com barriga e barba por fazer, que completava: “ – mas apesar disso, é digna de um estupro...”

“ – Preciso muito falar com o senhor...”- suplicava a moça. Osvaldo, meio a contragosto, concordou em atendê-la. Foram até a sala dele, que mandou a secretária sentar-se.

“ – Pois não?”- disse com sua inconfundível voz de araponga rouca.

“ – Seu Osvaldo, eu queria te pedir um favor... um favor assim, de pai pra filha...”- dizia a moça, constrangida.

“ – Se estiver ao meu alcance...”- respondeu o homem, não parando de olhar a magreza da mulher, que tinha os olhos esbugalhados e o nariz pontudo, ainda mais realçados pelo rosto fino e feio, com a boca cheia de dentes tortos, o corpo parecendo uma tábua (mal tinha seios...) e as pernas muito finas.

“ – Eu... eu... seu Osvaldo, eu queria pedir licença uns dias. Sabe por quê? É o meu noivo... sim, o meu noivo, ele tá com aquela doença...”

Não compreendeu e perguntou: “ – Aquela doença? Do que a senhora está falando, dona Flávia?”

Ela só sabia gemer baixinho: “ – Aquela... aquela...”

O homem pulou da cadeira, com raiva: “ – Ora, dona Flávia, francamente, a senhora está muito insolente! Eu estava aqui, pronto para ir embora, para aproveitar o resto da tarde com a minha esposa... sim, porque eu tenho esposa. Esposa, filhos... sou pai de família, prezo a dignidade das pessoas. Não sou como os outros que trabalham aqui, um bando de desocupados que querem discutir sobre a vida dos outros e rir da desgraça alheia. Escute, eu sou uma pessoa séria! Não admito que num começo de semana uma subordinada venha me interromper por conta de seus problemas particulares. Onde já se viu, uma pessoa que quer trazer assuntos pessoais para dentro de seu local de trabalho? Realmente, eu não esperava uma atitude dessas por parte da senhora!”

Ela ficou atônita, olhando para o patrão (ou colega, em repartição pública todos são colegas, todos são patrões...). Não sabia qual deveria ser sua reação. De repente, uma lágrima escorreu por seu rosto, junto com aquela vontade louca de chorar convulsivamente.

Osvaldo, a princípio, não esboçou nenhum movimento perante o choro de dona Flávia. Apenas contemplava a visão da moça chorando, com um misto de pena e nojo: “ – Quando ela chora, a face de defunta fica mais realçada... é praticamente uma aberração da Natureza...”- tirou um lenço do bolso esquerdo do paletó e entregou à moça para que ela enxugasse as lágrimas. Perguntou, como se fosse um tiro: “ – Qual é a doença do seu noivo?”

Flávia, já mais calma, soltou o nome da enfermidade do noivo como se tivesse cuspido uma comida estragada: “ – Lepra!”

Aquela palavra tomou de surpresa o Osvaldo, soava como se uma rajada de metralhadora estivesse perfurando o seu peito... esperava qualquer doença, menos a lepra... lepra... lepra... a palavra martelava em sua cabeça... lepra... seu pai havia morrido com a mesma doença... lepra... sua esposa parecia ter sintomas da mesma doença... lepra... olhava para a feiúra da secretária e vinha a imagem dela cuspindo o nome... lepra...

A secretária completou: “ – É uma doença muito triste... ele tá nos últimos dias, se definhando...”- chorou- “ – já não tem mais dedos em nenhuma das duas mãos...”- e explicou- “ – eu quis contar porque eu sei que o senhor é um homem correto, digno, puro, se eu fosse falar com algum outro da repartição eu ia virar piada... mas o senhor é diferente, não é, seu Osvaldo?”

Ele mal conseguia ouví-la, em meio aos ecos ensurdecedores que insistiam em repetir a nojenta palavra lepra... Olhou-a no fundo dos olhos... lepra estavam estampados neles... súbito passou a olhá-la de uma forma estranha. Fez a proposta:

“ – Olha, podemos fazer o seguinte... amanhã, às duas da tarde, eu pego meu carro e nós vamos ver o seu noivo... ele já foi a algum médico?”

“ – Já. O médico não deu muito tempo de vida para ele...”

“ – Pois bem. A senhora me leva até o seu noivo e nós vemos o que podemos fazer por ele, correto?”

Ela balançou a cabeça positivamente e mostrou o sorriso de dentes tortos e muito amarelados e foi para sua mesa. Osvaldo, enfim, pôde sair. Foi até sua casa atordoado... novamente a palavra lepra rondava seu pensamento... “ – Será que sou um predestinado? Só pode ser praga a minha vida estar cercada de leprosos por todos os lados...”- não conseguia dormir. Se debatia na cama, desesperado: “ – Sou eu... o próximo leproso sou eu...”- lembrava-se da figura do pai no leito de morte- “ ... ela me persegue... vai me definhar...”

Foi trabalhar no outro dia. Escutava as reclamações dos empregados sem se importar muito com o que aqueles desgraçados com a vida estavam dizendo... estava ansioso, afinal, em horas estaria frente a frente com um leproso... tentava desenhar o rapaz... sem dedos nas duas mãos...

Dona Flávia o chamou. Os dois foram até o local. A secretária mostrou o noivo... estava lá a imagem, a triste imagem do leproso... sem dedos... podre... fétido... enfaixado e ensangüentado na cama... se contorcia... se corroía... se definhava... Osvaldo olhava atentamente todos os movimentos do moço... lembrava-se da esposa... do pai...

Súbito, virou-se para Flávia, que possuía um ar de desespero ao contemplar o noivo leproso... Osvaldo olhou a secretária... olhou o noivo, gemendo na cama... deu um tapa na face da moça, que em sua feiúra se afogava em lágrimas... tomou-a pelos braços e jogou-a na cama, ao lado do rapaz...

Ele estava fora de si... arrancou rapidamente as roupas da secretária e a estuprou... na cama... na mesma cama em que estava o leproso... o rosto de Osvaldo demonstrava uma satisfação imensa... absurda... doentia... enquanto estuprava dona Flávia as vozes se confundiam em sua cabeça: “ – Lepra... digna de um estupro... lepra... digna de um estupro...”- sentia uma euforia tomando conta do seu ser... e ela estava imóvel... aceitava passivamente o seu leproso e o seu estuprador na mesma cama...

Depois do ato, a euforia de Osvaldo cedeu espaço ao arrependimento. Olhava para a secretária, magra e nua, deitada ao lado do rapaz, um leproso sem dedos. Tinha asco dele mesmo. Olhou-se no espelho, e enquanto dilacerava sua garganta com um canivete, dizia, com ar de deboche e ódio visceral ao mesmo tempo: “ – Vê aonde o seu moralismo asqueroso foi parar? O senhor não é um homem... não é um pai de família... não é um marido exemplar... nesse momento você abandonou os seus princípios... a partir de agora, você não passa de um desgraçado... mais um ser desprezível... incapaz de encontrar em seus rostos um vestígio do que seja a palavra dignidade... Não há como fugir... a sua lepra já está exposta... impregnada em todas as suas atitudes... E seu castigo será se corroer, se definhar perante todos, exibindo com ares de satisfação a sua alegria sórdida de estar condenado a ser mais um leproso...”

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