Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Pedagogia corintiana

Olá, amigos.

Este é mais um texto que escrevi para teatro. Trata-se de um monólogo que já apresentei no teatro O Tablado e também em um bar em Vila Velha, no Espírito Santo. Baseado no conto Antena ligada, de Lourenço Diáfera, este texto é narrado por um pai que torce para o Corínthians e tem, digamos, algumas rixas com o colégio no qual o filho é educado. Tudo em função do esporte bretão.

Espero que vocês gostem. O Diário de um salafrário novamente abre espaço para o teatro - agora na vertente do monólogo. Gosto muito de fazer este texto porque acho hilário o sotaque paulistano, e acabo carregando bastante nele.


PEDAGOGIA CORINTIANA

O ator entra em cena, com uma calça comprida e uma camisa do Corinthians.

E aí meu, firmeza? Sabe esse negócio de não basta ser pai tem que participar? Então! Eu não quero que o meu garoto cresça e fique reclamando que fui um pai ausente! Por isso, decidi ajudar o meu filho gavião-da-fiel a passar com louvor nas provas finais do colégio. Eu só não ia esperar que justo a escola, uma instituição que ensina o caminho do saber fosse ensinar o meu filho a ter raiva de mim.

Eu explico. Outro dia, meu filho chegou em casa e disse pra mim: “Papai, meu professor mandou fazer um trabalho sobre Sócrates”. Aí eu pensei: é hora de um legítimo gavião-da-fiel mostrar na escola que sabe tudo sobre a história do Corinthians!

Foram duas semanas de aulas intensivas sobre Sócrates, na qual ensinei ao garoto a importância do Doutor na história do Timão. Não satisfeito com meus ensinamentos, ainda pus o meu filho pra ler meus arquivos da revista Placar. Não é por nada não, mas o trabalho ficou uma beleza, até o Sócrates ia autorizar como biografia dele!

Mas o professor não entendeu. E meu menino tirou zero. Ah, audácia com o meu filho gavião-da-fiel sempre aplicado nos estudos. Em todo caso, fui levar um papo com o professor. Ele foi logo botando banca, dizendo que eu tava enganado e que o trabalho era sobre o Sócrates que tomou cicuta.

Ah, meu, nessas horas é que o sangue sobe à cabeça. Bati na mesa e falei: “O senhor tá insinuando que o Doutor jogava dopado?” O cara até tentou mudar de assunto, dizendo que era o Sócrates da Grécia, mas eu continuei firme: “O Sócrates jogou no futebol italiano, não tem nenhuma passagem por time grego!” E o cara teimava, dizia que queria o Sócrates que se opôs à democracia ateniense. Aí eu dei o braço a torcer, o senhor tá certo, o Doutor defendeu mesmo foi a Democracia Corintiana!

O professor falou até bonito, um negócio de “só sei que nada sei”. Na verdade ele não sabia de nada, mas fiquei quieto. Até porque, ele disse que ia dar mais uma chance pro meu filhão. Passou um trabalho sobre Casa Grande & Senzala. Mas não deu nenhuma indicação sobre o Casagrande ou o Senzala.

Eu nunca tinha ouvido falar no tal do Senzala, nem sabia que ele tinha feito dupla de ataque com o Casagrande, que eu me lembre o Casagrande jogava com o Ataliba. E olha que eu sei da história do meu Timão! Mesmo assim tranqüilizei o menino: “olha, filhão, já que o professor ta de marcação contigo, vamos fazer o melhor possível e mostrar que a gente sabe das coisas”. Vamos falar tudo que a gente sabe sobre o Casagrande, aí pensa comigo: dez pro Casagrande, zero para o Senzala, média cinco, passou! Meu filho ficou todo empolgado.

Aí o garoto tirou zero de novo. Aí me caiu a ficha: o tal do Senzala devia ser um centroavantezinho qualquer que jogou no Palmeiras mas foi ofuscado pelo grande talento do Casagrande! Tava na cara, o professor era palmeirense, porco safado! Foi um custo, mas ele ficou de dar um novo trabalho para o meu filho passar de ano.

Mas desta vez ele deu logo um jeito de mostrar as garras, professor safado! Mandou o garoto fazer um trabalho completo sobre o Guarani. Não, olha que sujeito sacana. Como ia ficar muito na cara mandar o moleque fazer um trabalho sobre o Palmeiras, deu pro garoto a tarefa de falar sobre o alviverde de Campinas.

Não me fiz de rogado, arranjei tudo sobre o Guarani, até foto e escalação completa do time campeão brasileiro de 1978 e fiz ainda melhor. Liguei pro meu amigo campineiro Antônio Contente e ele me mandou bonitinha uma camisa nove autografada pelo Careca. Não é por me gabar não, mas o trabalho escolar ficou um luxo, digno de aprovação com louvor e honrarias! Mas aí deu zebra. O cara deu outro zero e não devolveu a camisa nove autografada.

Desta vez, não me segurei. Fui falar com o professor e já mandei esta “que sacanagem é essa da vossa senhoria com o meu garoto gavião-da-fiel? Eu perco meu tempo ajudando meu filho a contar tudo da história do time do Brinco de Ouro da Princesa e o garoto ganha cartão vermelho?” Além de questionar se eu tinha feito o trabalho pro meu filho, o sujeito teve a audácia de me dizer que eu não conhecia nada do Guarani!

O pior é que ele tinha razão. Mas, como é que eu, um gavião-da-fiel legítimo ia saber que o Guarani tinha uma dupla de área chamada Peri e Ceci? E que com esta mudança de treinadores, como é que eu ia saber que o técnico atual era um tal de José de Alencar?

Ah, não pensei duas vezes. Tirei o garoto da escola, não deixei nem ele terminar as provas finais. Vocês hão de convir, né? Por mais que o garoto tenha de repetir o ano, eu não podia deixar meu moleque gavião-da-fiel ir pra outra série sabendo tudo errado! Mudei o garoto de escola, agora ele tá estudando numa escola do lado do Parque São Jorge, eu tenho certeza que ele vai ser um gavião-da-fiel bem diplomado. E vai agradecer a mim por não ter se submetido àquele professor palmeirense da outra escola.

Não basta ser pai, tem que participar e passar pros filhos toda a história do meu Timão. Vou deixar o moleque virar parmeirense por causa de professor? Ih, meu, dá licença!

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