Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

domingo, 9 de novembro de 2008

Os velhinhos

Olá, amigos.

Aqui vai mais um esquete de teatro - ainda não montado. Caso alguma pessoa que esteja acessando este Diário de um salafrário no momento tenha se interessado em montar, é só entrar em contato pelo e-mail:

viniciusfaustini@gmail.com

Obrigado a todos,

Vinícius Faustini


*****

OS VELHINHOS

Personagens
EUSTÁQUIO
GERMANA



Sobe a música Os velhinhos. A luz sobe aos poucos. Eustáquio e Germana estão sentados lado a lado num banco de praça. Ele parece estar entretido em contar os pombos da praça. Ela parece insatisfeita com a situação. Na fala de Eustáquio, a música desce aos poucos.

EUSTÁQUIO – Cento e setenta e quatro... Cento e setenta e cinco... Cento e setenta e seis... Cento e setenta e sete... Cento e setenta e oito... (pausa. Abre os braços) Ah, droga, voaram de novo! (olha para Germana, infeliz) Estes pombos! Parece que eles fazem de propósito! Mas pelo menos foram muitos, cento e setenta e oito é marca de profissional! (suspira) Ah...

Germana dorme.

EUSTÁQUIO – Mas ainda não consegue superar aquele meu recorde. (saudoso) Parece que foi ontem! Manhã de vinte e três de abril de mil novecentos e oitenta e sete! Eu estava na Praça Nossa Senhora da Paz, quando contei aquele número fantástico! Foram trezentos e oitenta e cinco pombos! É, mas parece que os daqui de Copacabana não querem colaborar. Né, minha velha?

Eustáquio percebe Germana dormindo.


EUSTÁQUIO (chamando) – Germana... Germana... (grita) GERMANA!

Germana acorda assustada.

GERMANA – Que susto, Eustáquio! Assim você assusta os pombos!
EUSTÁQUIO – É? O que você queria? Eu aqui, narrando a minha maior façanha e a minha esposa... DORMINDO! É isso é que dá esse amontoado de remédios! Minha filha, remédio pra enxaqueca dá sonolência!

GERMANA – Eu não tomei remédio pra enxaqueca!

EUSTÁQUIO – Não precisa tentar me enganar. Eu te conheço. Somos casados há cinqüenta e cinco anos! Bem, deixa de bobagens... (olha para a frente. Se empolga) Olha, chegou uma nova revoada de pombos!

Germana bufa de raiva.


EUSTÁQUIO (contando) – Um... Dois... Três...
GERMANA (berra) – Chega! (e se levanta)

Eustáquio se espanta.


EUSTÁQUIO – O que foi, minha velha. Já perdeu a conta? Ora, mas você é muito desligada e...

GERMANA – Eustáquio...

EUSTÁQUIO – Não fica assim, eu volto a contar junto com você...

GERMANA – Eustáquio...

EUSTÁQUIO – Esses aí parecem que vão ficar aqui muito tempo...

GERMANA (grita) – Eustáquio!

Ele se espanta de novo.

EUSTÁQUIO – Não precisa gritar que eu não sou surdo!

GERMANA – Eustáquio. Vamos embora...

EUSTÁQUIO – Embora, Germana? Mas foi você mesma que quis vir aqui!

GERMANA – Sim... Mas eu não vim aqui pra contar pombos!

EUSTÁQUIO – Não?! Oh, meça, não me diga que veio para brincarmos de gangorra?

GERMANA – Não seja ridículo! Eu tenho uma coisa muito séria pra falar com você...

EUSTÁQUIO – Eu cochilei com a TV ligada? Desculpa!

GERMANA – Não. É que eu tomei uma decisão muito importante...

EUSTÁQUIO (levantando-se) – Eu já falei mais de mil vezes que eu NÃO VOU PRO ASILO!

GERMANA – Não é asilo coisa nenhuma. Eu trouxe a gente aqui pra dizer... (pausa) Que eu estou indo embora!

Silêncio.

EUSTÁQUIO – Ah, sim... Você vai voltar pra casa mas eu posso ficar mais um pouquinho junto com meus pombinhos...

GERMANA – Você não entendeu. Eu estou INDO EMBORA DE CASA!

EUSTÁQUIO – Ué, mas a gente não tava procurando apartamento!

GERMANA – Eustáquio... Eu quero o divórcio!

Silêncio. Eustáquio começa a rir.


EUSTÁQUIO – Germana... Oh, meça, o que é isso? Quase me mata de susto! Essa foi boa, minha velha...

GERMANA – Eu não estou brincando, Eustáquio! Estou me separando de você! (levanta-se, fica de costas para ele) Eu não volto mais pra casa contigo!

EUSTÁQUIO – Hã?

GERMANA – Há tempos que a situação lá em casa está insustentável!

EUSTÁQUIO (caindo em si) – Mas o que foi que aconteceu? Germana...

GERMANA – Quando eu me casei com você. Eu achei que minha vida ficaria completa. O tempo foi passando, nós dois juntos, são 55 anos de casados!

EUSTÁQUIO – Aonde foi que eu errei?

GERMANA – Não me obrigue a dizer isso...

EUSTÁQUIO – Germana, eu quero saber...

GERMANA – Eu vou embora.

EUSTÁQUIO – Germana! (tempo) Eu quero saber o que eu fiz de errado!

GERMANA (cedendo) – Está bem! A nossa vida tá muito rotina! De casa pro bingo, do bingo pra praça, você contando esse monte de pombos...

EUSTÁQUIO – Mas eu posso mudar! (sedutor) Que tal uma bela partida de damas?

GERMANA – Eustáquio. O nosso casamento está parado! Eu não quero minha vida monótona! Quero me divertir. Sair com minhas amigas, ir ao cinema...

EUSTÁQUIO – Anhé? E o que mais?

GERMANA – Quero esportes radicais! Acampar! Fazer trilha! Escalar o Pico da Bandeira! Andar de motocicleta! Olha, do jeito que eu tô animada, meu filho, topo até ficar no meio de um tiroteio na favela!

EUSTÁQUIO – Ah, não! Tiroteio na favela é esporte radical demais! Não conte mais comigo!

GERMANA – Eu não conto com você há décadas! E tem mais! Você foi o primeiro e único homem da minha vida...

EUSTÁQUIO – Então? Isto não te significa nada?

GERMANA – Significa... Significa é que está na hora de eu experimentar novos homens! Tô muito afim de ir pra night, conhecer altos gatos... Sarados, musculosos, bons de boca... Vou beijar homem à vera! E quando alguma amiga minha perguntar se é meu namorado, eu respondo, só pra elas babarem... (tempo) Eu estou só pegando!

EUSTÁQUIO – Pegando! Pegando! Você não pega nem mais gripe, desde aquela última campanha de vacinação.

GERMANA – Alôooou! Você está por fora, meu filho! Out! Se liga! Passei muito tempo assim, de bobeira, e agora não quero mais isso! Num tenho culpa se tu é arame liso, que não pega ninguém!

EUSTÁQUIO – Germana, que vocabulário é esse? Modos! Modos!

GERMANA – Ih, mó perrengue ficar esse tempo todo do teu lado! Tu é mó péla!

EUSTÁQUIO – Germana, pelo amor de Deus, fala no meu linguajar que não tô entendendo nada!

GERMANA – Contar pombos não tá com nada! Eu quero é chegar em casa e contar quantos gatos eu peguei na night!

EUSTÁQUIO – Mas, Germana, cinqüenta e cinco anos não podem acabar assim!

GERMANA – Olha, se tu quiser, vem comigo! A gente pode sair pra night junto, na boa, cada um na sua... Eu até te apresento umas amigas. É só você chegar nelas!

EUSTÁQUIO – Não entendi nada...

GERMANA – Ai, tu é mesmo muito arcaico, cara. Ó, não vou perder mais tempo não. FUI!

Germana sai de cena. Eustáquio se senta. Fica alguns segundos atônito, mas logo vislumbra um novo bando de pombos.

EUSTÁQUIO (feliz) – Um... Dois... Três... Quatro...


À medida que ele vai contando, a luz vai diminuindo. Toca um trecho de Agora só falta você

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