Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

A plenitude da alma

Conto publicado originalmente no zine O Onanista Pós-Moderno. Mais um com influência na literatura "rodrigueana".

Como sempre costumava fazer nos fins de tarde, Edgar entrou no cemitério em busca de um enterro. Sabe-se lá por qual razão, o rapaz adorava o ritual de freqüentar cemitérios para assistir ao ‘sepultamento alheio’, como dizia, em tom de deboche, o seu colega de trabalho, Mascarenhas, um quarentão viúvo, gordo e que suava nas mãos.

Apesar de saber que era rotulado de doido, Edgar insistia em afirmar, com a soberania de um profeta, a felicidade que sentia ao acompanhar um enterro: “ – A pessoa vive, sorri, chora, e no seu último suspiro é, enfim, homenageada com um cortejo... reparem, amigos, nada comove tanto quanto um cortejo fúnebre, seja o morto um indigente ou um homem famoso... no dia em que acabarem os cortejos, o mundo apodrecerá na insensibilidade dos cadáveres que foram privados da pureza existente num enterro digno...”

Perambulou pelo cemitério até que encostou numa árvore para olhar um enterro... o defunto, um velho de 75 anos chamado Onório Palhares, esperava apenas o término do discurso declamado por Doutor Quintanilha, um advogado amigo seu (o leitor repare a aceitação do óbvio: todo defunto possui um amigo advogado...), que numa cólera incontida, declamava: “ – Onório foi um homem como poucos! Bom pai, bom marido, bom profissional, bom colega... honestidade e fidelidade foram suas principais virtudes, que ninguém jamais ousou contestar!”- e batendo no peito, tomado pela emoção, encerrou: “ – tenho orgulho de dizer que o Palhares... meu amigo... nunca teve amantes! Nunca teve amantes!”

Observando o discurso enquanto aproximava-se para seguir o cortejo, Edgar ficou emocionado com as palavras do advogado. Achava que o discurso à beira do caixão possuía um caráter sincero, terno, com o orador reunindo forças para prestar as últimas homenagens ao defunto, que muitas vezes tinha seu valor reconhecido no momento em que repousava em seu túmulo...

Após as honras e a solidariedade (diria Otto Lara Resende: “ o mineiro só é solidário no câncer”...), o caixão foi fechado e seguiu pelo cemitério... agora sim, o corpo estaria apto a descansar em paz, com seus pecados sendo perdoados e sua alma sendo purificada para ocupar uma cova recém- aberta.

Aquele parecia ser mais um enterro banal (mas com o gosto especial dos enterros, que sempre têm os amigos fervorosos, a viúva suplicante e desamparada e aqueles cachaceiros que contam piadas de papagaio...), se não fosse por aquela moça que, estando ao lado do padre durante o velório e o cortejo insistia em chorar... Não, não era a viúva, certamente... era da mesma idade que ele... seria mais uma espectadora dos enterros alheios que Edgar costumava acompanhar, mas essa era diferente, instigava o rapaz...

Era uma moça bonita, de rosto pálido, a boca com um brilhante tom rosado, loira, e estava de vestido preto com um decote convidativo e escancarado, que realçava ainda mais a perfeição do formato dos seios, transmitindo um paradoxo sedutor entre o lado sombrio do finado e a leveza provocada por aqueles seios arfantes e retocados quase expostos pelo decote... Aquela mulher deixou Edgar maravilhado: “ – Ela é o símbolo da magia que a morbidez prolifera nas pessoas... ao mesmo tempo em que choram, provocam desejos graças a um escultural par de seios e um belo decote... Todos deveriam parar o cortejo para lamber com os olhos esses seios... fartos... arfantes... enigmáticos... donos de uma pureza mórbida descomunal... nada mais mórbido que um par de seios de luto...”- pensava, ao fixar os olhos na jovem.

O corpo de Onório Palhares, apesar do desespero da viúva, que insistia em estar ao lado do marido, foi enterrado. Após o término da cerimônia, Edgar aproximou-se da jovem, e vendo as lágrimas que caíam de seu rosto, estendeu um lenço usando a tradicional frase: “ – Meus sentimentos...”

Ela agradeceu, enxugando as lágrimas, e disse ao desconhecido: “ – Eu... eu era a secretária dele...”- e desatou a chorar, sendo amparada pelo ombro de Edgar, que se excitava a cada vez que a face da jovem ganhava requintes de desespero... como ele se instigava com aquele misticismo que envolvia o luto...

Levou-a até um bar (ou, diga-se de passagem, um boteco...) onde conversaram durante horas... Edgar tentava, mas não conseguia fazer com que seus olhos deixassem de observar aquele par de seios rígidos que só não estavam com os bicos totalmente à mostra (ah, que obra de arte seriam aqueles seios nus com os bicos excitados... suspirava baixinho o rapaz)... A certa altura, tomado pelo êxtase da volúpia fúnebre propiciada pela sua morbidez, o rapaz perguntou a Clarice (esse era o nome dela):
“ – Você... dormiria com alguém para salvar a alma de alguma pessoa próxima... parente, amigo ou colega?”

Silêncio... ele completou: “ – Escute, Clarice... eu sei que você está sofrendo com a perda irreparável de seu patrão, e essa dor é intensa e nos persegue a cada instante... Olha, essa agonia pode ser dissipada pelo desejo...”- parou, enxugou as lágrimas que voltavam a cair do olho de Clarice e, pousando sua mão sobre as mãos dela, explicou: “ – o sexo, ao contrário do que os padres e os falsos puros pensam, ao se mesclarem com a nossa morbidez... sim, porque ser mórbido é uma virtude... servem para a salvação da alma... no sexo, as pessoas expulsam todos os seus sentimentos enterrados pelo receio e hipocrisia... isso ajuda os cadáveres a terem a plenitude da alma... nós devemos realizar as perversões que eles almejaram durante suas vidas... você gostava muito do seu patrão, não é?”- após a afirmativa com a cabeça dada pela moça, continuou: “ – então? Satisfaça as perversões que o doutor Palhares não pôde fazer em vida... entregue-se à fria cama por ele...”

Clarice, hipnotizada pela veracidade que Edgar aplicava às suas idéias, concordou em ir até o apartamento dele. Ao se despir, os seios da jovem adquiriam um novo realce... eles eram o instrumento da pureza de uma alma... ao entregar-se a Edgar, mesmo sendo virgem, continuou sentindo-se a mais pura das mulheres... a euforia que o sexo transmitia a ela possuía uma certa dose de generosidade... assim como o rapaz, estava a cada momento mais orgulhosa de sua morbidez... “ a purificação dos mortos...”- repetia, triunfante, enquanto cravava suas unhas nas costas de Edgar, sedenta pela doce sensação do pecado concedido...

No fim do ato, Edgar esperou Clarice dormir, levantou-se e sentiu o sabor da plenitude de sua alma... tinha praticado uma boa ação ao possuir a secretária do recém- defunto... contemplava a nudez de Clarice, vangloriando-se da pureza dos seios arfantes e nus, que havia possuído graças à sua eterna companheira, a morbidez...

Súbito, começou a sentir um cheiro de cravo- de- defunto... a cada momento o cheiro tomava o ambiente, e Edgar respirava aquele perfume alegremente, com uma confusa rajada de idéias: “ – A plenitude da alma... satisfazer as perversões deixadas pelos mortos...”- começou a cuspir sangue, a cada momento se tornava mais agonizante. Mas isso só o satisfazia, e o fazia dizer com orgulho, o orgulho de um salvador: “ – Agora posso morrer em paz... sim... porque todos seguirão o meu cortejo... minha alma está para sempre purificada... porque eu encontrei a minha salvação... morro sabendo que minhas perversões se concretizarão... porque eu sei que a morbidez será imortal... e conquistarei a minha plenitude graças aos mórbidos que estarão presentes no meu velório, acompanharão meu cortejo e assistirão ao meu enterro... é por eles que estamos salvos da insensibilidade e sordidez humana...”

2 comentários:

James Lima disse...

Valeu, bicho !
Como eu sempre tenho dito...
É por essas e outras que sou teu fã !

Valeu, professor, me ensina mais uma lição aí hehehe.

Abraços
James Lima
www.robertocarlos.vai.la

Anônimo disse...

intiresno muito, obrigado