Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Laços matrimoniais

Texto antigo, um dos muitos feitos em reverência à A vida como ela é... que Nelson Rodrigues nos presenteou.

*****

O doutor Abelardo Ferreira, nomeado advogado, era conhecido em seu ambiente de trabalho por sua discrição. “ – É um santo!”- dizia o colega de trabalho, Luiz Madureira, um advogado famoso por ser um bom chave- de- cadeia. Mas ninguém podia citar nenhum argumento que pudesse incriminar o dr. Abelardo, principalmente por ele ser um homem honrado, ético, com um casamento sólido, e amplamente dedicado à filha, Adriana.

Adriana, morena de uns 23 anos, era aquela moça perfeita, que vira a cabeça de todos os homens (principalmente dos tarados de plantão e dos escritores de contos que abusam da descrição feminina) e, como nas pinturas, desde as mais detalhistas até as surreais, transmitia o brilho e a nitidez de sua beleza... Seus olhos, mágicos, enigmáticos... ah, quem não gostaria de enxergar a alma escondida naquele olhar... o rosto lindo, de traços bem desenhados... a boca portadora de beijos apaixonantes... mas a parte que mais expunha a beleza contraditória da moça eram as pernas... como poderia aquela mesma menina de finos traços possuir aquele suculento par de pernas... todos paravam para assistir a imagem de Adriana cruzando as pernas... era um evento belíssimo, inigualável... muitos filósofos de boteco defendem a tese de que não há nada mais alucinante do que ver uma mulher cruzando as pernas...

Talvez a cruzada de pernas de Adriana tivesse conquistado o seu noivo, Maurício. Ela o havia conhecido em uma festa de um amigo dele, tendo ocorrido entre os dois aquela velha e batida atração denominada ‘amor à primeira vista’ (ou, quem sabe, ‘amor à primeira cruzada de pernas’), e após mais alguns encontros, Maurício e Adriana começaram a namorar, ficando noivos sete meses depois.

A princípio, o doutor Abelardo estava numa alegria imensa, já que sua filha única, em breve, estaria casada e bem encaminhada na vida. “ – Não há relação mais sólida do que um casamento... ele é mais importante do que o amor, em si, porque amores vão e vêm, enquanto o afeto e o companheirismo se sobrepõe a todas as chuvas de verão...”- dizia, de forma apoteótica, o pai da noiva, a todos os colegas de escritório. E completava: “ – O matrimônio é a maior bênção enviada para nós...”- e dava um sorriso de satisfação, em meio ao deboche do doutor Madureira, que o achava um perfeito imbecil. “ – Diz isso mas duvido que nunca tenha traído a mulher...”- imaginava Luiz.

Abelardo, realmente, nunca tinha traído a mulher, sequer em pensamento... considerava sua esposa, a dona Laura, uma verdadeira santa, por isso, não merecia ser traída... mas tudo mudou depois daquela noite...

Certa noite, ele acordou no meio da madrugada com uma sensação de vazio... passava em sua mente a imagem de sua filha entrando amparada pelo seu braço na Igreja... ela estava radiante, com o brilho de seus olhos ofuscando o véu e a grinalda... “ – Entrego a minha filha...”- a frase repetia em seu pensamento... estava entregando a filha... sentia uma sensação dolorosa de perda, realçada ainda mais na semana antecedente à cerimônia... a filha entregue a um homem... a pureza tão doce de Adriana se sucumbiria à agressividade da noite de núpcias... “ – Todas se casam virgens... os maridos as corrompem...”

Não conseguia mais se distrair... só pensava na filha... os sentimentos se confundiam quando se lembrava dela... não agüentava mais...

Dois dias antes do casamento, esperou Adriana se preparar para descansar e foi até o quarto dela. Bateu na porta e entrou... Ela estava deitada na cama... a camisola, pequena, deixava um pouco da calcinha exposta... as pernas nuas pareciam um convite ao prazer... o sorriso de noiva cativava, e ao mesmo tempo feria a alma do pai...

Ele aproximou-se suplicante: “ – Filha... eu tenho uma coisa pra te dizer... é uma coisa da maior importância...”

Adriana interrompeu-o: “ – Viu o presente que eu ganhei de casamento? Essa camisola... uma amiga de mamãe disse que é excelente para seduzir o marido na noite de núpcias... e você, papai, o que acha?”

Parou. Olhou a camisola. Desviou o rosto daquela imagem convidativa... respirou fundo, sentou-se na cama e tentou iniciar:

“ – Adriana, eu... eu não quero o seu casamento...”

Surpresa, a moça interrompeu: “ – Ora, papai, que bobagem! Você está com medo, é natural... sou filha única... mas te juro: eu amo o Maurício... mais do que tudo!”

Gritou, com ojeriza: “ – Não!”

“ – Aconteceu alguma coisa, pai?”

Abelardo recompôs-se, e expôs todo o seu sentimento:

“ – Eu descobri, filha... eu descobri que você é tudo pra mim! Não vou sobreviver sem a tua companhia... é ela que me faz respirar, encontra um sentido para o que eu vivo...”

“ – Pai, eu entendo o seu carinho, mas...”

“ – ... nenhum homem te conhece tão bem quanto eu, que sei dos seus desejos, dos seus medos, que te viu crescer e virar uma bela moça, e que confessa o medo de saber que sairei de sua vida...”

“ – Esse seu medo vai passar, pai...”

“ – Não é medo...”- pára, respira fundo, e pronuncia, com um ar de ressentimento: “ – Amor!”

Adriana tenta reagir: “ – Amor de pai para filha...”

Abelardo olha fixamente nos olhos: “ – Não! Eu tenho por você um amor puro... o amor que você merece! Nenhum homem é digno de você... só eu...todos os outros são maníacos, pervertidos... eu não... tenho meus olhos apenas voltados para você... desde que você nasceu, nunca mais tive loucuras sexuais... o amor que eu sinto por você me basta...”

E ajoelhou-se aos pés da moça, suplicante: “ – Não me abandone, Adriana, por favor...”- e chorou de medo... o medo do vazio.
Adriana, calmamente, se inclinou, olhou o pai olhos nos olhos, e, como que por instinto, entregou seus lábios a Abelardo...

Aos poucos se sentia amparada pelo carinho do pai, que beijava o seu corpo minuciosamente, como se conhecesse cada detalhe dele... ela sorria de prazer... naquele momento se sentia amada... estava se entregando ao pai numa alegria incontida... sabia que ninguém ia amá-la daquela forma... ninguém expressaria um amor tão singelo...

Abelardo a possuía... consumava, enfim, todo o sentimento reprimido durante anos... se isentava de qualquer pecado... seria pior o martírio da falta da filha e o receio em confessar seus sentimentos... vivia intensamente cada minuto daquele ato... buscava tornar Adriana a mulher mais feliz do mundo...

Levantou-se da cama, observando atentamente a nudez da filha, linda, desprovida de qualquer vulgaridade... procurava guardar para sempre o seu maior desejo... nunca mais se amarguraria com o seu coração...

De repente, passou a ter uma série de pensamentos: “ – Amor puro... casamento... amor puro... casamento...”- as idéias se confundiam em sua cabeça... chorava ao saber que havia contrariado todos os seus princípios...

Caminhou até a cozinha, pegou uma faca, e suavemente dilacerou seus pulsos. “ – A pureza do meu amor se transformou num incesto consciente...” – lastimava: “ Que vida é essa que não permite os amores mais puros? Por que a condenação do amor de um pai pela sua filha? Ninguém jamais compreenderá o amor implícito no incesto... mas nenhuma doutrina será capaz de condenar o fato de eu ter amado Adriana mais do que pude... estou pronto para ser condenado...”

Antes de fechar os olhos, ainda esboçou um sorriso. À sua mente, surgia a imagem da filha, feliz, entrando na igreja vestida de noiva, ao som dos primeiros acordes da Marcha nupcial de Mendelssohn.

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