Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

90 minutos

Tiro a camisa do armário. Assim que eu a vestir começarei a minha transformação. Passarei a ser mais um, um dos muitos que representa uma paixão, um ideal, uma sensação... Ou, em termos mais técnicos, um dos muitos a representar 11 jogadores que vão correr atrás de uma bola. Saio de casa, caminho alheio às provocações de torcedores adversários, sorrio aos que aderem e incentivam minha nova face.

É sempre assim. Todo domingo eu deixo de estar só e me torno “mais um”. Uma situação que acontece pouco a pouco. Adentro o vagão do metrô, me sento num lugar vazio, e calmamente vou esperando que o povo chegue. Passa uma estação, chegam mais dois com a mesma camisa que eu. Sorrio. Vem mais um, mais outro, mais aquele outro, até ter uma boa quantidade de pessoas que seguem o mesmo ideal que eu.

Na mudança da linha 1 para a linha 2, os primeiros gritos da torcida aparecem. A ansiedade para que venha de uma vez a baldeação do metrô fica ainda maior quando o cântico ganha mais corpo, deixa de ser formado por gritos esporádicos pelo meu time para se tornar aquela canção que a torcida e que a imprensa promoveram a hino décadas atrás.

Uma pessoa faz sinal de positivo. Retribuo beijando o escudo da minha camisa. Enfim, chega a estação onde vamos descer. Aquela multidão sorridente, esperançosa, cantando, gritando, sorrindo.

Milhares de pessoas deixarão de existir por 90 minutos (fora os acréscimos e o intervalo). Assim que passarem os ingressos pela roleta, eles vão deixar do lado de fora suas dores, suas amarguras, o aluguel que venceu, o casamento que vai mal, a penúria, as culpas e as desculpas que encontraram pra cada uma das situações que eles vivem neste momento.

Meu ingresso passa pela catraca. De uma vez por todas está de lado tudo que me incomoda nesta vida. Não preciso mais ser tímido. Deixo de lado minha figura solitária de corpo e alma. Saem de cena as preocupações habituais e as eventuais. Centenas, milhares de pessoas deixam de ser “eu” para só se referirem a elas mesmas como “nós”.

Agora a vida depende de 11 pessoas. De 22 chuteiras. Das duas mãos do goleiro, essa posição ingrata, escolhida para abafar o êxtase maior desta disputa, ele que cala uma torcida e dá o suspiro de alívio à outra. Do árbitro e de seus assistentes, que com seus erros podem sacrificar meses de trabalho, tornando um resultado injusto aos olhos do povo.

Chego à arquibancada. Estou no mesmo lugar de sempre, o mítico lugar que me faz companhia desde os primeiros jogos no estádio. Entôo os gritos que as torcidas “organizadas” cantam, a plenos pulmões e na companhia de bumbos (tocados perfeitamente ou não). Minha mente de uma vez por todas está limpa. Minhas direções estão centradas para o que vai acontecer naquele palco que tem tapete de grama.

O placar eletrônico dá seus primeiros sinais de vida. Um torcedor comenta o que o radinho de pilha denunciou. Outro lamenta a ausência de um jogador. Um velhinho diz que bons tempos eram os anteriores, que o time de hoje não é nem sombra daquele que outrora defendeu as nossas cores. Aquele que tem uma faixa na cabeça extravasa dizendo que sai preso se o resultado de hoje não for uma vitória. O de camiseta comenta que o árbitro escalado já nos prejudicou em outras oportunidades. Um leva fé, e faz as contas lendo a classificação do campeonato.

O auto-falante anuncia as escalações dos clubes. A torcida aplaude jogador por jogador, grita os nomes daqueles aos quais todos nós entregamos nosso sentimento, nossa razão de euforia, nossa vontade de matar ou de morrer, nossa vontade de extravasar sentimentos de amor e ódio. Alguns deles têm cantos próprios, e agradecem à torcida quando são homenageados pelo coral. Por um coral que, apesar de não estar com chuteiras em campo, segue atento a tudo o que acontece na partida.

Entra em campo a equipe adversária. Vaias, hostilidades, ofensas. Tudo para amedrontar aqueles que podem fazer nossa tropa cair no campo de batalha. Por mais que os analistas de futebol digam que eles sejam superiores a nós, todos eles são desprezados pela torcida. O goleiro vira mero “frangueiro”, a zaga vira “peneira”, o meio-de-campo é composto por “perebas” e o ataque é formado por um bando de “perna-de-pau”.

Vai começar o jogo. O mundo se resume às próximas horas vividas no estádio. Somos o povo! E queremos a “alegria do povo” definida no dicionário em uma palavra só: FUTEBOL. Começou. Primeira jogada mal sucedida, a torcida uníssona grita “uuuhhh”, com direito a eu fazer meu “solo” nesse coro, mandando o autor do lance ir para um lugar não muito agradável.

Eu, o contido, o educado, o gentil, o cavalheiro, me transformo. Viro o ansioso. Quero a vitória. Exijo o gol. Almejo o meu sonho de ver a minha paixão culminar na grande felicidade de ver a bola passando pela rede.

Distribuo palavrões com a zaga que deixou o jogador adversário chutar e quase fazer o gol, com o juiz que não marcou uma falta clara para nós, com o artilheiro que não faz gol há semanas e mantém o tabu depois desse chute bisonho cara a cara com o goleiro. Peço, imploro para que os representantes da minha alegria corram, batalhem, lutem, mostrem raça e principalmente pontaria nos passes e nos chutes.

O time persiste na defensiva, acuado, e dá chutões para o alto ou para onde o nariz aponta. Eu berro, com um copo de refrigerante na mão - mas, apesar de ser proibida bebida alcoólica nos estádios, continuo embriagado de vontade de voltar pra casa com a vida em paz.

Intervalo. E eu sou mais um. Em meio a todos aqueles que vestidos com a camisa das mesmas cores e com o mesmo estampado que a minha camisa tem, eu permaneço ansioso. Descontando minha raiva no ouvido dos pobres torcedores que tiveram a infeliz coincidência de ver o jogo próximo de mim.

Com eles eu não preciso ser o que sou diante dos olhares discriminativos da sociedade. Sou desbocado e falo em tons que minha voz jamais chegaria na minha rotina. Converso com eles como se fôssemos velhos conhecidos - e somos, afinal, torcer pelo mesmo time acaba fazendo com que eu tenha milhões de amigos unidos para apoiar a equipe ou para xingar quando os jogadores não conseguem ir bem durante o jogo.

Os times voltam do intervalo. Vai começar o segundo tempo. O último quadro antes do juízo final. Desse juízo que tem sua graciosidade - que nem sempre o mais forte, o superior, ou o mais favorecido financeiramente se torna o vitorioso no final.

O treinador fez boas alterações. Colocou o time mais ofensivo. Esse jogador não pode nunca ficar no banco. São os comentários que os companheiros dizem depois dos primeiros minutos de segunda etapa.

A bola cruza na nossa área. O zagueiro salva em cima da linha. Apreensão ao extremo, e medo de que todo aquele sonho vivido nas horas mais recentes caia por terra através de um pé de um jogador que não veste a mesma camisa que a nossa. O jogo permanece truncado. Boas defesas de ambos os goleiros. Um jogador nosso cai na área. Pênalti claro, mas que passa batido nos olhares do árbitro. E o coro, em uníssono, entoa outro grito: “Ladrão, ladrão”, agora com variados “solos” com ofensas à sua virilidade ou à pobre mãe do juiz.

O cronômetro vai passando. O locutor diz que o jogo está bom, uma bela partida de ambas as equipes. Milhares de pessoas de ambos os lados sofrem a agonia que passa o confronto entre 22 jogadores. Alguns deles que jogam bola, outros que brigam com a bola, outros que brigam com os outros, e até os que brigam entre eles.

O nosso camisa 10 pega a bola na intermediária. Passa pelo zagueiro e deixa o atacante cara a cara com o goleiro. Uma puxada para a direita e o arqueiro deles fica imóvel no chão. Com toda a calma, o atacante coloca a bola por cima do goleiro batido. E a palavra que tem três letras ecoa em uma das partes da torcida: GOL!

Uma palavra pequena e decisiva. Ela que define quem venceu e quem perdeu. E a poucos minutos do fim, o gol veio do nosso lado. Euforia, sorrisos, gritos, cantos de alegria e também de provocação ao adversário.

E apreensão pelos minutos finais. O juiz deu muitos minutos de acréscimo. O time tá recuado, cada vez mais acuado, praticamente tem 11 jogadores na pequena área. O zagueiro prende a bola, passa pro lateral, que consegue cavar uma falta. O jogo continua, a partida fica nervosa, um time querendo evitar o suspiro de alívio do adversário, o outro não querendo em hipótese alguma que saia de campo derrotado.

Mas não adianta. É fim de jogo. Vencemos! Os jogadores vêm para o nosso lado. Eles são nossos heróis, e vibram junto com aqueles tantos que vieram ao campo para zelar por eles, por seu bem estar e por suas boas jogadas... Na nossa torcida, só abraços, sorrisos, felicidades.

E uma ida para casa cantando, assobiando em glória. Todos ostentando a camisa que simboliza o time que saiu de campo vitorioso. Em calma todos saem do estádio. Desço a rampa do estádio. Passo pelo portão. Lá reencontro a companhia da minha solidão.

Ela vai me levar para casa. Cuidar de mim. Apresentar de novo cada nuance de meu dia-a-dia, tão difícil, tão confuso, tão triste. Tão só. Mas sabendo que no próximo domingo vou estar bem acompanhado. Lado a lado com as várias solidões que durante 90 minutos ansiarão por uma alegria repentina e por algo que amenize a ausência de felicidade no dia-a-dia.

***
Obrigado a todos os que vêm prestigiando meu "início" de blogue. Mas não se enganem: ainda há muito o que se contar no Diário de um salafrário.

4 comentários:

Márcia Tristão-Bennett disse...

Vinicius:

Muito bom! Como torci neste jogo! As emocoes que voce descreve sao muito claras e transporta mesmo o leitor para o que estah sendo lido...!

Eh uma poesia, um conto, uma estoria, o que voce escreve, e eh tudo de bom!

Parabens!

Beijos

James Lima disse...

Caramba, bicho !
Tem até esse agora? Diário de um salafrário ? rsrsrss

Olhe, confesso que fiquei arrepiado com esse texto. Você praticamente me levou pra ver o jogo com você.

É sempre bom eu aprender um pouco com esse meu professor aí...

Um abraço, padrinho !
James Lima
www.robertocarlos.vai.la

Armindo Guimarães disse...

Olá, Grande Vinícius, carago!

Apesar de ler com agrado um livro de 500 páginas como um de apenas 50, o que é certo é que sempre fui um aficionado dos contos curtos por considerar impressionante o autor conseguir em apenas 4 ou 5 páginas criar uma história que não só nos deixa presos logo no inicio da leitura como vai aumentando o suspense e a nossa curiosidade pelo final que nunca deixa de o ser por continuarmos a pensar na trama.

Foi o que me sucedeu quando li o “Acto” e o que mais uma vez aconteceu ao ler “90 minutos”. Ler, não será bem o termo, porque, na verdade, o que aconteceu foi que eu estive ao lado do Salafrário vestindo uma camisa igual à dele e torcendo pelo seu time que ele não disse qual era e nem precisava de dizer pois que é o melhor do mundo, e ai de quem venha dizer o contrário. O curioso é que no meio de tanta euforia, de tantos insultos ao árbitro, ninguém da nossa torcida notou que no meio deles estava um cara que chamava de guarda-redes ao goleiro e de ponta-de-lança ao artilheiro, dizendo lançamento em vez de arremesso, canto em vez de corner e outras palavras esquisitas.

Terminado que foi o jogo, lá fui eu caminhando rua fora ao lado do Salafrário, dando vivas ao nosso time, cantando e rindo.

Ainda bem que fui com o Salafrário ver o jogo. Adorei!

Venha o próximo, pá!

CON disse...

Viníciussssss...Menino que jogo bom!!!! Rsrsrrs
Você conseguiu me fazer estar em um estádio, torcer por um time que nem sei qual é, me angustiar, sofrer, querer mandar o juíz para um lugar pior ainda...
Você consegue o fundamental para um bom escritor...Fazer o leitor viver a estória!
Parabéns!!!
Beijos azuis