Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Dia de ronda

Passa das duas da manhã. Ainda tenho mais dez minutos pra ficar olhando aquele quarteirão de merda que não tinha nada de emocionante acontecendo. Justo naquela área ninguém decidia ser contraventor, nenhum morador de rua decidia disputar um pedaço do lixo com outro. Nem mesmo um bêbado para perturbar a ordem noturna passava por aqueles lados. Eu queria que ao menos um casal de namorados se agarrasse numa parte escura da calçada, nem que fosse pra me masturbar um pouquinho e ir pra casa imaginando passar a mão na gostosa.

Lembro que vou chegar em casa e continuar sem sono até o dia amanhecer quando bateram na porta de seu vidro. É o guarda que fará a ronda no meu lugar. Acho que minha cara não é das melhores, porque o Vieira ficou bem constrangido.

Vou pro meu carro, atravesso algumas ruas e já estou quase em casa quando noto que tinha esquecido uns papéis na DP. Saco. Dou meia volta e sigo rumo ao distrito, parece que só o meu carro que guia naquela hora. Sim, sei que sou muito solitário, mas o resto do mundo faz questão de dizer isso, todo mundo combinou inclusive de não dar uma esticada na noitada.

Passo a porta e começo a ouvir uns barulhos meio estranhos pra delegacia, mas bastante familiares para outros lugares mais libidinosos. Chega o Neves, abotoando a farda, e diz, empolgado:

“Aí, cara, chegou na hora certa. Batida em boate de strip! O dono aliciava menor de idade, e a gente aproveitou pra trazer umas putinhas. Aí, já viu...” - abriu um sorriso nojento - “A carne é fraca, a autoridade é muita e o pau é grande. Madrugada, todo mundo sozinho aqui e longe de mulher, a gente ta fazendo fila com elas”.

“Caralho, vocês descem cada vez mais baixo” - eu respondo, reprovador.

“Ah, esqueci que tu é o monge da DP. Merece mesmo ficar fazendo ronda em quarteirão de condomínio de luxo” - ele diz, e por uns instantes penso que o pior é que ele está coberto de razão.

“Deixa de cagar pela boca. A sala do departamento virou motel também ou posso entrar lá?”

“Relaxa, lá ta tranqüilo”.

Passo por outras salas, acabo espiando algumas cenas. Paro exatamente numa garota. Loira de um oxigenado tão forte que dependendo da luz parecia que estava de cabelo branco. Está só de calcinha fio dental, vermelha, e pela fisionomia não parece querer o que o policial pede. Ela o empurra, mas ele é mais forte e a domina. Entreabro a porta e tiro a minha dúvida:

“Não! Eu não quero! Me larga!”

Num instinto, eu grito:

“Larga a moça!”

Ele mal vira e já sente a força do meu soco. Acerto em cheio no seu nariz, garantia de que ele ficará desacordado por algum tempo.

Vou em direção a ela, que cobre os seios com as mãos e chora copiosamente. Desabotôo a farda, e ela fica em pânico, achando que eu vou ser mais um a aproveitar dela. Talvez eu tivesse batido no colega porque ele estava dando em cima da puta que eu estava afim.

Estendo a farda e a entrego. Ela fica espantada, e eu digo.

“Veste”.

Ela cobre o corpo. Parece mais intrigada do que assustada.

“Vem. Eu não vou te fazer nada”.

Envolvo minha mão na sua cintura, e vamos juntos para o departamento. No caminho podemos ouvir os gemidos da orgia que virou o distrito naquela noite, e ela chora ainda mais. Pelos sussurros, algumas das garotas estavam gostando.

Deixo ela sentar numa cadeira. Busco um copo de água, que ela bebe entre soluços. Permaneço em silêncio, deixando que ela esvaziasse o copo. Só então abro a boca:

“Nome?”

“Ana Clara” - corrige abruptamente - “Helena!”.

“Ana Clara ou Helena?”.

“Não... É que Helena é meu nome artístico”.

“Sei”. Agora eu percebo a garota. Tem um rosto fino, de traços delicados, em perfeita harmonia com os olhos castanhos e tristes. A maneira como segura a farda não impede que eu vislumbre o volume dos seios pequenos. A calcinha não é suficiente para esconder os pêlos alourados, e as coxas firmes parecem me convidar ao prazer. Mas será que ela irá querer um policial desiludido com a profissão?

Ela levanta o rosto e começa a contar sua vida pra mim. Tinha saído de Santo Antônio de Pádua, interior do estado, onde trabalhava como vendedora de loja, para abraçar o sonho de ser atriz da Globo no Rio de Janeiro. Fez testes para novelas em várias emissoras, tentou fazer comerciais, filmes e perambulou por várias agências sem o menor sucesso. Com 22 anos e sem a menor perspectiva de vida, leu em um jornal que a boate Erotique precisava de dançarinas.

Acabou indo lá como um trabalho interino, iria dançar por um tempo. Mas o sonho de atriz ficou passo a passo mais distante, e precisava de dinheiro. Aí começou a fazer programas. Ressaltou:

“Mas eu trabalho mais tirando a roupa no palco”.

“Mora na boate mesmo?”

“Não, não. Alugo um quarto na Lapa”. Puta que pariu, e eu reclamando do meu conjugado em Copacabana.

“Meu colega me disse que a Erotique tava aliciando menores, e que algumas prostitutas estavam envolvidas nisso. Você tem alguma coisa a ver? Sabe de algum aliciamento?”.

Desespera-se.

“Não! Eu não sei de nada!” - ajoelha-se aos meus pés - “Eu já falei que não sei de nada, por favor, acredita em mim” - levanta-se novamente - “Eu juro! Não me faz nada” - e fica com o ombro no meu peito, voltando a chorar.

Levanto o rosto dela.

“Eu acredito em você”.

Helena sorri entre lágrimas e me dá um abraço de agradecimento. Não se importa que seus seios nus estejam de encontro com a minha camisa. Roço os lábios em sua testa e afago seus cabelos, dizendo que “passou”. Seguro a sua mão:

“Vou te levar pra casa”.

É fácil passar despercebido, os policiais estão entretidos com o que os corpos das outras putas oferecem. Seguimos rumo à Lapa.

Não trocamos uma palavra durante o trajeto, que dura pouco mais de 15 minutos. O silêncio é interrompido perto da Rua do Lavradio, com a voz dela:

“É aqui”.

Estaciono. Helena abre a porta do carro e anda em direção a um casarão. Fico observando seus passos, e ela anda com dificuldade, um dos saltos está quebrado. Ela se preparava para entrar quando decide virar para trás. Tira os dois saltos e vai descalça até o meu carro. Apóia os braços na porta e fala:

“Sobe...”.

Hesito. Sim, eu tava com tesão, ela era uma delícia, mas, sei lá, chorou em meus braços e agora queria me levar pro quarto dela! Coisa estranha... Helena completou:

“Pra eu te entregar a sua farda”.

Esboço um sorriso, me achando um ridículo. E vou com ela. Acompanho Helena pelos degraus da pensão, até chegarmos no primeiro andar. Seguimos pelo corredor, passamos por uma senhora gorda sentada numa cadeira perto da escada.

A moça passa a chave e temos a visão do quarto, no qual cabe somente uma cama e um armário. Heloísa fecha a porta do quarto. Um letreiro do motel que fica em frente brilha o cubículo. Ela acende a luz, vai em direção ao guarda-roupa e tira da gaveta duas peças. Estica o pescoço para fora do armário e me pergunta:

“Vem cá, você é sempre assim?”

“Assim como?”

“Com esse jeito todo envergonhado”.

Permaneço calado. Por um espelho, vejo os movimentos de Helena. Ela tira a farda e joga na cama. Em seguida, tira a calcinha e a deixa no chão. Põe um short e depois uma blusa fina. Passa o trinco na porta do armário e olha para mim.

“Ainda não me respondeu...”.

“Não respondi?”

Suspira. “Você é sempre assim, envergonhado?”.

Pausa. Trocamos um olhar. Baixo a vista.

“Não sei. Por quê?”

“Ah, os seus colegas no distrito devem ter abusado das meninas” - coloca minhas mãos nas suas costelas - “E você não. Bateu no que tentou me agarrar, me emprestou a farda e ainda me trouxe pra casa”.

E eu cada vez mais excitado olhando aquela boca linda. Mas sem pestanejar, digo:

“É vergonha sim. Vergonha na cara”.

Helena ri. A blusa não consegue esconder os bicos dos seios.

“Preciso ir” - desconverso

Eu vou em direção à porta mas sou interrompido pela mão dela no meu braço.

“Sua farda. E aqui o meu cartão. Pra quando precisar...” - dá um sorriso assanhado. Parece já estar melhor do susto.

Visto a farda e coloco o cartão num dos bolsos da calça. Ela brinca:

“Não esquece aí no bolso! Sua mulher pode achar, seu guarda!”.

“Não sou casado” - esse assunto me irrita sempre, é bom puxar outra conversa - “Você vai voltar pra boate?”.

Ela abaixa a cabeça. Volta a olhar pra mim e diz, com lamento:

“Só pra pedir as contas. Não faz mal. Agora não sou tão novinha, não falta no Rio de Janeiro sujeito que precise de garota como eu”.

Ela vai em direção à porta. Passa o trinco e a abre para mim.

“Não precisa se preocupar, tá? Com minha experiência, o meu corpo fica mais valorizado. Eu me viro”.

Balanço a cabeça positivamente. Ando pelo corredor, desço as escadas e saio da pensão em direção ao meu carro. Ouço um grito e olho para a pensão. É ela:

“Obrigada”.

Sorrio e vou para o carro, agora rumo a Copacabana. Começo aquele trajeto e a lembrança de Helena me faz ficar menos sozinho. Acho que vou passar a madrugada lendo seu cartão, recordando o corpo que vi primeiro na delegacia e depois pelo espelho do armário dela. Talvez eles me façam ficar menos só também amanhã, vão me acompanhar nos meus pensamentos durante mais uma ronda insuportavelmente chata naquele quarteirão que não acontece nada.

Mais dez minutos e já chego em casa. Estaciono o carro na garagem. Subo o elevador. Abro a porta de casa. Tomo um pouco de leite e deito na cama. Leio o cartão de Helena, ainda com o nome da boate Erotique e com um número de celular. Eu devia ter perguntado quanto ela cobra por programa. Afinal, não é todo dia que eu me sinto menos só depois de um dia de ronda.

2 comentários:

Felipe Moura disse...

Que canalha mais romântico!

A foto "rodrigueana" no Blog é divina!

Abraços!

Felipe Moura

Armindo Guimarães disse...

Canalha romântico. ehehehehe

Abraços