Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Testamento

Sei que o que estou iniciando não é nenhuma obra de arte, não possui a mesma imponência de um texto de Machado de Assis, nem almeja ter a densidade de um Augusto dos Anjos. Por isso, espero que você, que por alguma obra do acaso tem em suas mãos esses escritos de um pobre otário que lhe dirige a palavra o trate apenas como um testamento. Exatamente, um testamento. Ou epitáfio, como o leitor achar melhor...

Amor... palavra simples, quatro letras, duas vogais, duas consoantes, duas sílabas, capazes de dilacerar um mísero coração e definhar um mortal apaixonado. Me lembro dela... minha amada...

Bela, desejada... Eu sei que todos os homens cobiçavam o seu corpo, o contorno de seus seios, a rigidez de suas pernas, a cintura convidativa... mas não era só isso que eu notava...

Foi nesse momento, com quase 20 anos, que eu descobri... eu era diferente. Sim! Eu era diferente de todos os outros homens no mundo... Nessa idade, eles viram a noite em festas, onde impera o êxtase absoluto, o orgasmo da liberdade momentânea... escolhem as mulheres como se não passassem de uma carne de açougue. No auge da loucura, ainda pode-se ouvir: “ – Eu vou no contra- filé da loira!” ou “ – Essa garota é um filé mignon delicioso...” Eles falam assim... eu não... Como um falso poeta, romântico inveterado, me deixo por um segundo ser seduzido por uma moça...

Era assim com ela... passava dias e noites sonhando... desenhava os traços do seu rosto, procurava de todas as maneiras encontrar a magia do brilho dos seus olhos, dormia acalantado por aquele sorriso escancarado que, embora eu soubesse que não era endereçado para mim, me contagiava com uma paz suave, doce... como era maravilhosa a sensação dela ao meu lado, sussurrando no meu ouvido, bem baixinho: “ – Eu te amo... eu te amo... eu te amo... eu te amo...”

Quando ela me fez descobrir que eu podia amar, o mais nobre e mais singelo sentimento que possa existir entre duas pessoas, também descobri o meu mortal defeito: a falta de coragem...

Durante dias... meses... anos... séculos... milênios... a amei... Sofria, não nego, afirmo enquanto puder... mas a lucidez da presença dela... o sorriso enigmático, sedutor... os olhos (de que cor eles eram? Não sei... Aliás, pouco me importava em saber... só apareciam para mim o brilho, que de tão forte seria capaz de deixar qualquer um cego...)... a boca, com os lábios carnudos, mágicos... ah, quantos homens se debateram para que lhes fosse concedido o desejo de sentir aqueles lábios apaixonantes... nenhuma fortuna compensaria aquele único instante de euforia proporcionado por aquele beijo saboroso, macio...

Tenho a certeza absoluta de que muitas pessoas que tomem conhecimento desses papéis desnecessários, cujo conteúdo prima pela ‘água com açúcar’ (e sinceramente, peço perdão a todos por não ter conseguido melhor forma, ou menos pior, de abrir o meu triste coração...), são insensíveis a esses tipos de sentimentos. Por isso, aqui coloco o seguinte aviso: se você não acredita no amor, ou afirma que ele não passa de uma simples bobagem e que ninguém sofre mais desse mal, por gentileza, rasgue esses papéis, queime-os e jogue-os no lixo, pois o relato deixado nas próximas linhas é escrito com o coração...

Preferiu continuar? Olha, não foi por falta de aviso...

Todo o tempo que a amei, fui, sem sombra de dúvida, o pior dos românticos: aquele que ama calado. Não por vontade, quem sabe por vocação... O sentimento nutrido por ela me corroia um pouco a cada dia... não conseguia mais dormir... meus pensamentos eram povoados por sua imagem, imaculada, na minha retina cansada (eu sei que esta frase não é nada original... é letra da música Lábios que beijei, mas não encontrei outra maneira de dizer isso, afinal de contas, são quase três horas da madrugada de um Domingo do mês de Junho...)...

Ah, que vontade de olhá-la, expor a ela, olhos nos olhos (título de música de Chico Buarque, mas essa ressalva não merece ser levada a sério nesse momento...), todos os meus sentimentos! Dizer com todas as letras que eu a amava... que só saberia viver enquanto ela estivesse viva... que conseguia enxergar um pouco da sua alma... seria capaz de preparar uma noite repleta de estrelas tão brilhantes quanto o sorriso dela... buscaria decifrar o enigma dos seus olhos...

E diria como era a deliciosa sensação de estar amando uma pessoa... dizer que o meu coração palpitava gritando pelo seu nome... juro, meu amor, minha querida... não, não juraria ser o maior apaixonado do mundo... mas você não tinha idéia do quanto eu ia tentar...

Eu conseguia escutar o meu coração... ele chamava, implorava pelo seu nome... as batidas pareciam música para os meus ouvidos, e eu ali, me martirizando, perguntando a razão para não conseguir forças de falar tudo o que está presente agora nessa mísera folha de papel, possuidora de uma brutal e corrosiva insensibilidade e falta de expressão, não conseguindo sequer deixar a marca da lágrima que acaba de cair do meu rosto e as tantas que já jorraram e que ainda estão por jorrar após tudo o que aconteceu...

Pensando bem... de que importa todo esse desabafo... esse desatino, essa abertura impiedosa do meu coração, dilacerado a sangue frio pela faca da covardia, da timidez, do ‘amor platônico’, segundo os historiadores e os psicólogos (seres da pior espécie, frios ao ponto de não assumirem sua loucura, seus desvarios...). Não, nenhuma dessas palavras tem mais valor...

Meu amor, quando eu me lembro daquela fatídica tarde... você saindo da Igreja, com a pureza estampada na brancura do seu vestido de noiva, na meiguice do seu sorriso, que parecia ter um brilho mais intenso naquele momento (penso nisso pois me vem à cabeça tudo o que aconteceu...), sinto exatamente o cheiro das flores que enfeitavam a sua grinalda... guardo até hoje toda aquela tarde...

Ao ver que não participava, não merecia participar da sua alegria, nunca estaria marcado na sua história, senti o tamanho da minha inutilidade... aquilo martelava na minha cabeça... não... não era possível... parecia cruel demais que para a pessoa que eu mais idolatrei em toda a minha vida... a quem entreguei a minha alma... não saberia... nunca iria saber... nem imaginaria... o quanto eu conseguia amar...
Perdão... perdão, minha amada! Não era minha intenção estar marcado dessa forma na sua história... mas quando percebi como você estava radiante, não hesitei um só momento em cravar aquele punhal no meio do seu coração... senti uma alegria inexplicável... pela primeira e última vez estaria próximo a você... eu escutava com veneração o seu coração sendo lentamente dilacerado... o sangue vermelho derramado no vestido branco me servia como bebida... bebi seu sangue e senti, enfim, o gosto inesquecível do amor... esse amor vermelho, voraz... dentre todos os homens que lhe cobiçaram, apenas eu provei a sua alma, enxerguei a sua candura, nutri toda a paz que você destilava com sua existência...

Fui julgado ontem, condenado a ser fuzilado, rotulado de psicopata, pervertido por toda a imprensa e pela sociedade... Mas a opinião deles não me importa... Só você é capaz de saber realmente como eu sou... Talvez eles não entendam esse meu testamento... estão certos... como eu ressaltei no início, não sou nenhum Machado de Assis... esse epitáfio se tornou uma singela prova do tamanho do amor que eu senti por você, e que jamais será enterrado pelas futuras gerações...

*****
Este texto teve o privilégio de, no ano de 2004, ser publicado na página eletrônica Portal Literal. Devo esta honra a um grande amigo, ídolo e (pasmem!) declarado fã, o poeta Omar Salomão - um talentoso artista da minha geração.

2 comentários:

Márcia Tristão-Bennett disse...

Muito bom tambem!

Sofremos tambem com tantas emocoes....!

beijos

Armindo Guimarães disse...

Creio que quem teve o privilégio foi o Portal Literal por ter publicado este conto.

Abraços