Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

domingo, 14 de setembro de 2008

Tempo real

Acordou com o som tocando Onde anda você. Lembrou que iria voltar a sair na noite vazia, buscando razão para sua boemia, como sempre. Logo ele, que nunca foi boêmio... Mas não se importou tanto, o gosto fugaz dos beijos que provou não tinham sido suficientes para tirar dele o sabor da solidão.

Ligou o computador. Pôs no som o disco Vida noturna. Não ia ousar fazer letra como o Aldir, só queria ficar acompanhado de boas letras de música. Começou a digitar algumas letras no editor de texto. Sempre achou que as mulheres preferiam suas palavras à sua pessoa, e se apegava a cada frase que terminava. Debochava do botão que apaga o texto, frustrado porque não existe este recurso no mundo real.

Interfonou, e solicitou que o porteiro colocasse o jornal no elevador. Ao abrir a porta, uma senhora de idade comentou que ele estava abatido, e que devia ter mais disposição, disposição ao menos para descer e pegar o jornal na portaria. Ele agradeceu a preocupação.

Leu a primeira página, passou com os olhos as notícias do primeiro caderno. Pulou a parte de economia, leu algumas reportagens do caderno de esportes. Olhou com mais atenção a seção de cultura, que trazia uma entrevista bombástica, na qual um diretor de teatro cultuado pela classe pretensiosa da cidade dizia mais algumas babaquices que não iam acrescentar nada a coisa alguma.

Abriu a janela. Sentiu o ar que vinha pela maresia. Viu o Cristo Redentor, sempre imperando, uma presença indispensável. Lembrou da sua vida como rapaz sério, e, inusitadamente, riu. Parecia distante aquela história.

Voltou para o computador. Achou o texto horrível, mas decidiu engavetar para alguma ocasião em que a inspiração não viesse. Sempre teve temor por um bloqueio criativo, mas temia ainda mais um momento em que seus textos estivessem em “piloto automático”. No mundo do dinheiro e da obrigatoriedade em se produzir coisas novas, se sentia um obsoleto apaixonado por escrever – embora, ao terminar qualquer texto, automaticamente tivesse raiva e achasse o que escreveu extremamente descartável.

Novamente foi para a janela. Novamente sentiu o ar da maresia. Novamente viu a imponência do Cristo Redentor. E decidiu observar as pessoas que passavam. Sempre gostou de olhar os “transeuntes” (palavra que o avô dizia e que ele achou da primeira vez que era um palavrão).

Já conhecia todos os personagens de Copacabana. O bêbado da rua, que não faz nada além de andar de um lado para o outro, o idoso que aposta no jogo do bicho, o luxo da senhora que olha para a boutique ao lado do lixo de miséria da pedinte que olha para suas jóias. Jovens e nem tão jovens correndo para o trabalho, a garota até bonita com roupas minúsculas e com ar de que varou a madrugada dando prazer para algum turista... Gostava de imaginar a rotina de cada um, o que cada um deles fazia em determinadas situações.

Só não conseguiu definir aquela moça. Não parecia em nada com qualquer um de seus típicos vizinhos de vida. Trazia um encanto no modo de andar. A candura dos seus gestos se confundia com a leveza de seu rosto. Uma face tão bela e tão fina, que o fez fechar os olhos, para ver se o guardava em sua memória.

Respirou fundo, e teve um sopro de realidade: não podia mais viver sem aquele rosto. Estava fascinado por ela. Um fascínio ao primeiro instante. Sim, ela poderia não saber nunca, ele até gostava da idéia. Afinal, era um sentimento dele mesmo, um desejo, um amor que só ele poderia ter. E não precisaria explicar para ninguém. Nem para ela, que provavelmente o chamaria de louco e o desprezaria sem qualquer dó.

Despertou do devaneio e viu que a moça já se aproximava da esquina da rua. Mas o tempo dela era diferente. Os outros pedestres andavam de maneira afoita, atrasados para alguma coisa que ele e ela desconheciam. A sensação dele era de que o relógio custava a andar, com o ponteiro seguindo lentamente os passos dela.

Quanto mais a seguia com o olhar, mais sentia que ela era apenas dele. Só ele conseguia contemplar a suavidade daquela moça. Sim, não a conhecia. Mas aquele momento fazia parte apenas do mundo deles dois.

Queria que aquele momento fosse interminável. Por isso ficou nervoso quando a viu se aproximar do cruzamento. Tinha consciência de que aquela lembrança se perderia em meio ao barulho de carros e de pessoas da cidade.

Trêmulo, desceu as escadas do prédio e ganhou a rua, afoito. Por um instante, viu o tempo dela correr. Ela corria com receio de que o sinal voltasse a ficar vermelho. Ele parou, com os olhos prestes a lacrimejar. Não era mulher para uma aparição fugaz em sua vida.

Percebeu que o tempo dela voltava a ficar suave, e não hesitou em acelerar seu tempo para ficar em compasso com ela. Atravessou a rua, ignorando seu descompasso com as regras de trânsito.

Num relance, o brilho enigmático daquela moça ocupou sua visão. Ele estacou, rendido ao colorido que ela dava para sua vida apenas com uma brisa que vinha pelo seu olhar. Tentou também escutar o que ela dizia, mas o som de sua voz foi abafado por uma estridente e inoportuna buzina.

A sensação de ser empurrado, jogado, não o incomodou quando viu estrelas. Sabia que uma das estrelas seria ela. Ao abrir os olhos, viu, em meio a tantos rostos e a tantos gritos, a face dela, silenciosamente dizendo que estava tudo bem. Ele esboçou um sorriso, levando a imagem dela para sempre, no momento em que fechou os olhos pela última vez.

5 comentários:

Anônimo disse...

Nobre colega Vinicius,

Parabéns por todos os textos. A criatividade e a maneira fácil de se expressar são dons de pouco e você os tem.

Um grande abraço

Anônimo disse...

Nobre colega Vinicius,

Esqueci de nominar o post anteior.

Um abraço,

Carmen Augusta disse...

Vinicius,
tenho lido seus textos, todos muito bons.
Você escreve muito bem, e tem o dom de nos levar junto ao que está narrando,o que é muito bom.
Parabéns!
Um abraço,
Carmen Augusta

Armindo Guimarães disse...

Aqui acontece de tudo.
Primeiro vesti a pele de um personagem, depois fui ao futebol e vibrei no meio da torcida, e Desta vez tive um sopro de realidade que me valeu um sorriso e uma imagem.
A imagem dela.
Esse salafrário mete-me em cada uma!
Abraços

CON disse...

Vinícius, parabéns!!! Você é de uma inteligência admirável...Mas eu sou suspeita para ficar aqui falando de você, porque sou sua fã, rsrsrs
Sempre gostei dos seus comentários, da sua maneira de colocar as palavras.
Tudo de bom amigo!!!
Beijos azuis