Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Ato

Última ação de impacto. Segue uma trilha musical retumbante. As luzes são apagadas todas de uma vez. Aplausos, às vezes seguidos de gritos de alegria. Basta alguns instantes para aquele que me deu a vida por pouco mais de uma hora já volte a ter a sua identidade, o seu cotidiano, seus amigos, sua família, seu carro, seu bicho de estimação, seus vícios, seus sonhos, suas alegrias, seus dissabores.

Ele recebe os amigos no camarim, ganha presentes, felicitações por mais um dia bem sucedido de crítica e público. Toma uma água, reclama que hoje está com a garganta seca por causa do ar condicionado, veste-se e vai embora.

Ele é metódico. Minhas roupas são devidamente colocadas num cabide, um eventual adereço deixado na bancada do camarim (fazendo companhia à guimba de cigarro que ele acabou de fumar para deixar de lado o estresse que sentiu nessa uma hora e meia estafante na inglória luta de entreter a platéia de um teatro lotado - se bem que isso também acontece em dias de casa vazia).

Posso ver a pessoa da limpeza recolhendo os papéis de bala esquecidos nas cadeiras. Outra pessoa varre o chão e lustra cada cadeira. Depois de um sinal de positivo para cima, alguém vai desligando as luzes do teatro passo a passo. Primeiro sai o lustre que fica imponente no teto. Em seguida, as luzes que ajudam a iluminar cada uma das laterais. Por fim, ouço as portas sendo fechadas.

Nas próximas horas permaneço trancado em um camarim. O traje, os objetos de cena, o cenário, todos me fazem companhia, espremidos no quartinho que dão para a minha história, para a minha vida. Será que sou tão desimportante a ponto de guardarem minha vida em um cubículo? Qual foi o interesse de me darem vida? Meramente fazer um bando de pessoas rirem num programinha de fim de semana, num passatempo antes da pizza?

Não tenho hora para rir. Não posso chorar quando tenho vontade. Não tenho direito a transgredir as regras, a tomar um porre, furar o sinal vermelho, matar ou morrer quando bem entender. Não posso decidir entre ser marginal ou ser herói.

É triste precisar do outro para viver. Precisar que alguém me empreste seu corpo, seus traços, seus gestos, sua voz para que eu viva ao menos por alguns momentos do dia. E para que eu viva de quinta a domingo, ou, com muita sorte, com sessões extras aos sábados.

Que horas são? Colocaram a música ambiente! Acenderam as luzes do público! As portas abriram e veio aquele burburinho de gente chegando. Do outro lado do pano, já veio o rapaz da técnica para colocar o cenário na parte de trás do palco. O contra-regra coloca meticulosamente os objetos de cena. O operador de luz ajeita os últimos retoques antes de tudo começar. O operador de som aperta o primeiro sinal.

Ele chega, já maquiado. Calmamente coloca as roupas que me caracterizam. Agora tenho uma face, alguns sinais característicos, tenho uma roupa extravagante, e estou prestes a viver novamente a situação das noites anteriores. Toca o segundo sinal.

Eu respiro fundo através da respiração dele. Ele faz exercícios de voz para que eu seja ouvido pelos espectadores que deixaram de lado suas rotinas para viverem comigo a minha história. Ele caminha até a coxia. O diretor manda colocar os anúncios dos patrocínios.

Toca um sinal. Outro. As luzes da platéia se apagam lentamente. Outro sinal. Vou voltar a viver. Por algumas horas, minha vida vai estar num tablado, significando risos ou choros naqueles que quiseram assistir à minha trajetória.

Nada melhor para um personagem do que ver toda sua vida existindo diante dos olhares curiosos que esperam abrir o pano. Já tocou a música que abre o espetáculo. Merda pra você que me interpreta, amigo. E obrigado por mais uma vez emprestar sua vida para recriar a minha história...

*****
Senhoras e senhores, este é o post de estréia do blogue Diário de um salafrário. Por favor, desliguem seus celulares e que tenhamos um bom espetáculo.

7 comentários:

Armindo Guimarães disse...

Quando acabei de ler este artigo, eu próprio já me sentia na pele de um qualquer personagem. Minto. Quem me conhece facilmente imagina que personagem eu estava interpretando ao entrar nos meandros do antes, do durante, e do depois do espectáculo.

E foi depois do show, já no camarim, na minha casa, que exclamei para mim próprio: “Fod…! Aquele gajo do Vinícius não é de Morais mas me emociona demais”.

As minhas felicitações pela criação deste blog que, a avaliar pela estreia, promete ser um show de surpresas.

Os meus ingressos já estão garantidos!

Grande abraço, pá!

Felipe Moura disse...

Bela estréia!

Que bom que fez este cantinho para seus textos Vinícius!

Abraços!

Felipe Moura
reyrobertocarlos.blogspot.com

Márcia Tristão-Bennett disse...

Vinicius!

Parabens e vamos em frente que estah com gostinho de quero mais!

De quando em quando pretende adicionar textos?

Abracos

Unknown disse...

Vinicius, vendo mais um trabalho maravilhoso seu, é que eu me sinto cada vez mais honrado e orgulhoso de ter dividido o palco do tablado com vc.

vc merece tudo de bom e mais um pouco.

abraços!

Anônimo disse...

Parabéns ao meu "compadre" por mais este blog que: promete!...
Sempre li com interesse e admiração os seus textos que são tremendamente bem escritos.
Vá em frente, a estreia foi excelente.
Auguri!!!
Um grande abraço,

Anônimo disse...

Vinicius, quero ser o primeiro a musicar uma peça sua...prometo uma trilha salafrária.
Parabens!!
Eduardo Lages

CON disse...

Parabéns amigo!!! Estréia brilhante!!!
Mérde!!!!!!!
Beijos azuisssss