Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Desencantamento

Digitei umas três ou quatro palavras a mais do texto. Reli o parágrafo, na tentativa de achar a seqüência da minha narrativa. Continuei achando uma merda. Sou da safra de escritores que acham que a escrita pura mesmo é fugir das cômodas palavras que vêm através do relato de um acontecimento. Beber das fontes baratas de conversas com amigos ou de alguma situação que presenciaram é trabalho pra jornalistas, e o jornalismo a todo minuto me deprime - no papel ou no computador, a safra de “escrevedores do cotidiano” perde a qualidade a cada semestre de universidade.

E eu arcava com os ônus da minha crença. Sentado em frente à tela do computador, prosseguia ali, repensando em como sairia daquela arapuca textual na qual meu conto se intrometeu. Não cabiam situações, reviravoltas, nem aquelas regrinhas que, por míseros trocados, mostram que “qualquer um” pode escrever bem.

Mesmo descrente de que iria encontrar alguma novidade pro texto - ou talvez por precisar encontrar novos rostos, nessa minha tentativa incessante de enxergar a alma das pessoas - decidi andar um pouco. Saí de casa e fui em direção ao metrô, decidido a realizar uma vontade de menino. Desde bem criança eu tinha vontade de parar em todas as estações. Para um moleque criado em Botafogo que, quando adulto, se mudou para Copacabana, ainda faltava uma trajetória inteira de rostos e de caminhos a serem percorridos.

Comecei pela primeira estação da Zona Sul. Ainda vinham alguns gatos pingados, com suas ansiedades, seus sorrisos, seus rostos sem movimentar um gesto de alegria. Aos poucos, o trem começou a realizar suas funções habituais da rotatividade dos passageiros.

E foi assim que ouvi o “próxima estação, Largo do Machado” que vi a chegada dela no meu vagão. O relance da casualidade do olhar subitamente era substituído pela primeira e fascinante impressão. Não tinha qualquer traço de maquiagem, por isso o batom avermelhado saltava em seu rosto. A beleza existia, sim, mas não chegava a ser um artigo de destaque. O corpo se escondia num vestido grande e decotado. Seus cabelos, soltos e morenos, pareciam saídos do banho.

Ela sentou-se justamente em frente aos meus olhos. Notei seus gestos, a delicadeza ao evitar que os cabelos chegassem aos seus olhos, o cruzar das pernas com a preocupação de que não deixasse a “roupa de baixo” à mostra. Eu a enxergava com carinho, desenhando carícias em uma pessoa que eu havia descoberto em meio a tantas idas e vindas do metrô, e que fulminantemente inspirara toda a minha ânsia por escrever, por dizer a ela, por falar dela, por falar com ela.

Ela me olhou. Primeiro de maneira natural, como quem nota a existência de uma pessoa na cadeira que fica diante dos seus olhos. Virou os olhos de lado, e a cabeça fez um movimento suave para a esquerda. Esboçou um sorriso, mas seus lábios tornaram a ficar sérios por alguma preocupação.

Permaneci calado sem falar com ela. Às vezes desviava o olhar, com receio de que ela se sentisse ofendida ou me achasse ousado demais para estar ali notando tão detalhadamente sua presença. Ao notar seu olhar com mais cuidado, percebi os olhos fundos, busquei dialogar com eles por alguns momentos, mas logo abaixei os olhos, por receio de que as palavras deles me revelassem algo que pudesse desfazer o fascínio iniciado na estação do Largo do Machado.

Eu comecei a criá-la em meu sonho de escritor. Nós nos olhávamos e eu arriscava desvendar alguma pista que seu olhar, seu sorriso ou seu jeito de ser pudesse me trazer. Fui seguindo o caminho para encontrá-la, para conhecê-la, para contar a história de uma moça tão doce que passou pelos meus olhos num vagão de metrô e que depois de ser apresentado a ela eu jamais iria perdê-la. Eu continuaria lá, nesse deleite de trocarmos confidências em silêncio - ou melhor, no nosso silêncio.

Ela sorriu para mim, um sorriso largo, lindo, de menina. Decidi me levantar para falar com ela, para saber se eu adivinhara o que sua alma me apresentava naqueles minutos de convivência. Fui abordá-la quando seu sorriso se tornou um sobressalto ao ouvir o comando de “próxima estação, Saens Peña”. Ela me olhou com um lamento, disse um “tchau” sem som e saiu do vagão. Só então que notei a barulheira dos diálogos das pessoas, a correria, a placa da estação, as escadas...

Fiquei ali. Sem saber dela. Sem conhecer quem era ela, do que ela gostava, com o que ela sonhava. E mais uma vez voltaria para casa, entregue a um devaneio que um dia, quem sabe, prestaria para escrever um conto.

O apito de que as portas se fechariam em instantes me despertou. Não, meu amor, eu não ia te perder. E decidi isso ao ver que seus passos não estavam no meu alcance quando, no passo anterior, ela subiu o primeiro degrau da escada.

Subi os degraus da escada com mais pressa. Ela saiu do metrô e andou calmamente. No trajeto, tive vontade de dizer alguma coisa, de contar os sentimentos que passaram como um jorro desde que a vi. Do momento que minha alma como escritor e, com o passar das estações, também de minha alma de homem, passaram a precisar dela.

Andamos algumas quadras. Ela chegou diante da porta de um prédio. Ia adentrar no portão quando, ao virar-se, notou minha presença. Sorriu. Sorrimos. Respirei fundo, ia dizer alguma coisa para ela, quando sua voz me interrompeu.

“Olha...” - mexeu rapidamente na bolsa - “eu sou casada e amo o meu marido e os meus filhos” - sacou um cartão e me entregou - “A gente pode se encontrar no lugar que você quiser, gostei de você e pelo seu olhar, percebi que ficou atraído por mim” - lamentou-se - “Sei que isso que eu faço deve ser doença, mas o que posso fazer se me sinto bem também na companhia de outros homens. Mas, olha... Alguém pode nos ver. Aqui não. Aqui não”.

Ainda pude vê-la retirando o anel da bolsa e colocando em sua mão esquerda. Guardei o cartão no bolso e fui em direção ao metrô, com o fascínio que outrora senti diante do nosso silêncio quebrado, assim, de maneira tão brutal, pelo desencantamento da fala e das esmagadoras situações corriqueiras.

3 comentários:

Anônimo disse...

Marcando presença!
Saudades!
Bjos,
Ju

Márcia Tristão-Bennett disse...

Muito bom tambem...quando eu me empolgo...voce acaba com a leitura!!!!!!!!!!!!!
Beijos

Armindo Guimarães disse...

eheheheh

Estou com a Márcia. Quando o conto está mais empulgante é que tu decides acabar com tudo.

eheheheh

Abraços