Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Cuida de mim

“ E na ânsia desesperada por encontrar o seu amado, Cecília disse...”- Augusto parou de escrever, a seqüência do conto não chegava. Repetia: - Ela disse... ela disse...- e se perguntou: - Mas ela disse o quê?

Releu o que tinha escrito até o momento e, insatisfeito com o texto e rasgou as folhas. Gritava no apartamento:

– Que grande escritor você saiu, Augusto! Mais de três horas rascunhando feito um louco e não sai uma linha que preste!

Acendeu um cigarro e debruçou-se na janela do seu conjugado na Rua Santa Clara, esquina com a Nossa Senhora de Copacabana. Sorriu ao apreciar a imagem da praia, que expunha sua beleza de Princesinha do Mar para os boêmios que lotavam as boates e os bares da orla. Em seguida, observou o movimento da esquina, na qual, àquela hora, passavam pouquíssimos carros. Esticou o olhar para a sua direita e olhou o Cristo Redentor, no alto, de braços abertos, com um brilho intenso que contrastava com a escuridão da madrugada.

Já não pensava mais em Cecília, a personagem do conto que tinha acabado de abandonar. Queria por um instante esquecer no piano as bobagens de amor que iria dizer, feito Tom Jobim nos versos de Lígia, e deixar de lado o teor apaixonado dos seus textos. Desde que tinha se separado da esposa, também Lígia, como na canção do Tom, suas leves histórias de amor cederam espaço para a escrita pesada das tramas de amor não correspondido. Dois anos depois do fim do casamento, Augusto não suportava mais a melancolia das suas palavras e, naquela madrugada, decidiu acabar com a tristeza e com a solidão que o dominava cada vez que finalizava um conto.

Arrumou-se rapidamente, pegou o elevador, e saiu do prédio em direção à Avenida Atlântica. Foi caminhando pelo calçadão e, aos poucos, voltou a saborear a companhia da sua solidão. Sentou-se no banco do Posto Seis, ao lado da estátua do Carlos Drummond de Andrade. Ria enquanto a brisa passava por seu rosto, e cantarolava Eu e a brisa, do Johnny Alf. Estava tão displicente que mal percebeu a moça que havia sentado ao seu lado.

– Copacabana me acalma...- balbuciou a mulher, com a voz de quem estava chorando.

Augusto olhou para ela, que estava de perfil. Admirou o rosto jovem e triste, com os olhos brilhando. Suas lágrimas eram refletidas pelo nada romântico brilho do posto de luz, e respondeu:

– É, me acalma também... Sabe, eu queria ter a mesma sorte do Drummond, que fica aqui o dia inteiro sentado, com um livro nas mãos, olhando os vários tipos... De dia, os banhistas, os camelôs, os gringos indo pra praia. E de noite, os mendigos, as prostitutas... Copacabana nunca dorme. Sofre de insônia, como eu...

Ela olhou para seu rosto, e abriu um sorriso.

– Você tem um sorriso lindo... Não devia chorar.- disse Augusto.

A moça afagou seu rosto, e disse, num suspiro:

– Diz isso, mas o que sabe sobre mim?

Augusto sorriu:

– Não sei nem seu nome...

– Aline.

Ele estendeu a mão, cumprimentando:

– Prazer, meu nome é Augusto... Me conta, o que te faz chorar?

Aline olhou para o mar e começou a contar:

– Eu... eu comecei a sair com um homem, um amigo da coluna social.- riu triste.- Bem, eu o conhecia de vista, coisa de duas ou três festas, sabe?- Augusto balançou a cabeça afirmativamente. Ela seguiu- Um dia, numa festa aí no Copacabana Palace, a gente se apresentou e marcou encontro. Foi o primeiro de muitos, em um mês. Até que...- interrompeu e chorou.

Augusto segurou sua mão e disse:

– Se não quiser mais falar, eu entendo...

– Não, agora eu vou até o fim. Aí eu descobri que ele tinha negócios com uma casa noturna de São Paulo, que tinha acompanhantes de luxo.- a voz embargou.- E descobri que ele ia me levar pra ser uma dessas.

Tentando conter o espanto, Augusto perguntou:

– Faz muito tempo que aconteceu isso?

– Dois meses. E ele só me persegue, me manda cartas, mensagens por telefone, fala que eu vou ganhar muito dinheiro, que sou garota de dois mil reais pra cima, que não adianta eu fugir, que ele vai me levar pra São Paulo.- as lágrimas recomeçaram a cair de seus olhos castanhos. E enfim, desabafou:- Não agüento mais!

Num rompante, levantou-se e foi andando em direção ao mar, andando a passos largos na areia. Augusto gritou:

– Aline, espera!

Ela não lhe deu ouvidos, continuou no rumo do mar, que àquela hora tinha poucas ondas. Estava prestes a mergulhar, quando Augusto segurou seu braço:

– O que você vai fazer?

– O que eu devia ter feito há dois meses! Entrar nesse mar, pra nunca mais voltar.- sorria, radiante.- Esquecer o meu preço, esquecer a alta sociedade e esquecer que eu existi! Me solta!

– Não, você não vai a lugar nenhum.- disse, puxando Aline para a areia.- Isso não é motivo pra você querer acabar com a sua vida...

Ela retrucou, numa raiva desesperada:

– Não importa se eu tenho ou não motivo. Importa é que eu não vou sofrer nunca mais!- se desvencilhou do braço dele, mas tropeçou num buraco e caiu na areia.

Augusto a segurou pelos braços. Ela se debatia, decidida:

– Me larga! Por piedade, me deixa morrer, acabar com isso...

– Escuta aqui... Eu tenho mais motivos que você pra querer me atirar nesse mar. Há dois anos sou divorciado e não esqueço a minha mulher, sou um escritor fracassado, incapaz de escrever um texto decente, fumo, bebo e peno pra sustentar o aluguel de um conjugado na Santa Clara. Acha pouco?

Aline respondeu, furiosa:

– Não pense que suas palavras me comovem, escritor. Por mais que você me conte dos seus fracassos, nada me convence a mudar de idéia. Augusto, você mal me conhece, por que insiste tanto em me segurar?

Ele suspirou e, por fim, confessou:

– Acontece que eu...- baixou a cabeça por alguns segundos, e confessou.- Eu me apaixonei por você.

Ela parou de se debater e olhou, atônita. Ele continuou:

– E eu não posso deixar que a primeira paixão que eu consigo sentir, depois de dois anos atormentado pela lembrança da Lígia, se perca num mar.

A moça disse, com ironia:

– Não sou digna do coração de um escritor.

– Eu te amo e quero te amar!- ele implorava.

– Você e os riquinhos depravados que disseram que eu valho dois mil reais.- revidou Aline, ácida.

Augusto gritou, por fim:

– Eu te amo!

Estavam frente a frente. E ela o encarava, desafiadora:

– Ama? Então prova...

Augusto segurou sua mão, olhou para os seus olhos, e disse:

– Olha... eu posso até tentar iludir com palavras, mas, ele não mente...- e colocou a mão dela para sentir seu coração.

Aline se desarmou. Não pensava mais em se jogar no mar. Diante do gesto de Augusto, havia esquecido todas as mágoas. Abraçou-o, e os dois deram um beijo longo e romântico.

– Nunca nenhum homem fez isso por mim...- ela balbuciou, comovida. Seus cabelos eram quase que afagados pela brisa.

Os dois se deitaram na areia, entregues à paixão, e se amaram, entre sussurros, carinhos e beijos desprovidos de qualquer vulgaridade. E ficaram ali, abraçados, contemplando a madrugada, até serem vencidos pelo sono.

Quando Augusto acordou, surpreendido pelos fracos raios de sol, não viu mais o rosto de Aline. Por um momento, pensou que tinha sido apenas um vulto feliz de mulher, como na música do Caetano Veloso.

Seu pensamento logo foi desmentido quando ele encontrou ao seu lado os sapatos dela e um bilhete:

Augusto,
Despeço-me, antes que você abra os olhos, e todo o amor alimentado durante a nossa noite seja esfarelado por um bocejo. Deixo para você as minhas sinceras palavras, e os meus sapatos.Cuida de mim...
Da sua apaixonada,
Aline.



Augusto levantou-se, e foi andando pelo calçadão. Leve.

*****
Este conto eu escrevi para o concurso de contos do caderno Prosa & Verso, do jornal O Globo.

4 comentários:

CON disse...

Demais!!!!!Pode ter certeza que serei visita constante, rsrsrs
Beijos azuis

Armindo Guimarães disse...

Como disse a Con: Demais!
Abração, pá!

Carmen Augusta disse...

Lindo!!!!
Não conheço o Rio, não conheço Copacabana, mas estive lá...
Um abraço.

Márcia Tristão-Bennett disse...

Vinicius...

Que conto...eu estou sem palavras para te dizer como voce escreve seus contos bem...eu soh faltei entrar pelo computador para tentar virar a pagina...

Voce eh danado!!!!!!

Beijos azuis