Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Agônico

Um jorro de imagens desgovernadas passa sobre minha cabeça. Em um lapso de lucidez, aponto a arma e dou um tiro certeiro no braço dele. Por mais que eu saiba que estou perto da morte, não consigo desistir de lutar. É o meu sangue, é minha honra!

Recordo toda a ação. Ele cospe no meu rosto, talvez esperando o momento certo do exorcismo, das chagas que eu trouxe para a vida dele. Que horas eram quando ele entrou aqui? Não me lembro exatamente. Só lembro que acordei de um cochilo com a campainha estridente e irritante. Tentei vencer o importuno pelo cansaço, mas ele insistia, sabia que eu estava aqui.

Levantei e fui em direção à porta, o barulho da campainha latejava na minha cabeça. À medida que ele tocava, a minha azia e aquele gosto de ovo podre subiam na minha boca. Foi o café. Eu sei que não posso tomar café, mas ele me ajuda a ficar ligado.

Abri a porta. Era ele (estou cuspindo muito sangue, acho que não vou conseguir mais me levantar). A princípio, não me esbocei nenhuma reação, tive tempo de apenas acompanhar o trajeto da bala que atingiu o meu baço. Caí no chão. Senti os braços dele me puxando. Eu estava com os olhos abertos quando ele algemou meu braço direito e minha perna esquerda na mesa.

Procurei me manter respirando, enquanto ele revirava os papéis. Eu sei, eu sei o que ele quer... Todos os textos que escrevi sobre ele. Faz tempo que ele ameaçava me apagar. Mandava eu desmentir tudo o que disse sobre ele, mas eu me mantive lá, firme, priorizando a nobre obrigação de informar a população. É mal dos escritores, morrem para não se submeterem à chantagem da bala (ai, a dor é muito forte, acho que a bala me perfurou mais fundo do que eu imaginava).

Denunciei, desbaratei! E não me arrependo de nada. Não sei como conseguir me livrar das algemas. O desgraçado não contava que eu também tivesse uma arma (será que ele já foi? ou está espreitando, vai espiar até ter a certeza de que eu morri).

Não, não. Ele ainda está aqui. Se arrastando, por conta do tiro que eu acertei no seu braço. Estou cada vez mais zonzo. Vou morrer. Estou morrendo. Em meio aos meus escritos, barbaramente assassinados por um bandido que odeia escritores. Dou um tiro que estraçalha a janela.

O barulho cambaleante dos passos dele pára de ecoar na minha cabeça. Ele se deu por satisfeito. Não deve ter encontrado os originais (estão bem guardados, numa gaveta trancafiada). Agora sim, eu posso morrer.

A noite está bonita... O brilho da lua contrasta com a escuridão do meu apartamento. É... para um escritor que não vale nada, até que não é um fim tão mau. De certa forma, condiz com as agonias e os desvarios que povoaram minha vida e escreveram meus textos.

Engraçado... Um escritor sempre narra sua própria morte no decorrer da sua obra. Eu só não contava que terminasse assassinado pelo meu próprio personagem. O sonho de um criador é morrer apunhalado por sua criatura! E eu tive esse privilégio. Agora tenho certeza de que, mesmo que me levem pra uma cova de indigentes, tive a companhia fiel da minha criação, a única pessoa que compactou com minha definhação, a única pessoa que justificou os meus delírios.

O brilho da lua foi ofuscado pelo cenário das trevas. Ou é uma nuvem ou... Ou definitivamente, acabou meu estado agônico.

2 comentários:

Márcia Tristão-Bennett disse...

ai meu Deus, que agonia!!!!!!!!!!!!!!

De onde voce tira todas estas ideias, Santa Maria!!!



Bom!!!!!!!!!!



ABracos

Armindo Guimarães disse...

Estou como disse a Márcia: impressionante!

Belo texto.

Grande abraço