Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Concerto

Ela dedilhou algumas notas no piano. Atento, eu acompanhava suas mãos, não pela leveza com a qual seus dedos repousavam nas teclas, sim para que eu olhasse qual era o caminho que sua delicadeza percorria durante aquela melodia que me fascinava. Estava na atenção e na tensão de prosseguir a música, os olhos com movimentos rápidos entre a partitura e o piano.

Ela seguia o curso da canção, mergulhada no seu apaixonado universo, regendo aquela história que estava me contando, naquela ordem determinada por um artista que revolucionara a música clássica séculos atrás. Meus dedos permaneciam imóveis, impotentes diante da falta de musicalidade que minhas mãos têm. Minha vocação sempre foi a prosa, e decididamente aquele não era o momento de distraí-la com uma prosa banal, amena. Seu rosto esboçou um sorriso, numa nota executada a tempo, sem desafinar. Nessa hora eu a vi menina, orgulhosa com seu feito profissional. Eu a quis com mais ternura, vontade de envolver suas mãos nas minhas e de dizer o quanto a adoro.

Ela ia, voltava, com a voracidade de quem corria atrás de um sonho. Eu permanecia lá, parado, sonhando com ela, querendo apoiar suas mãos, conduzi-las pelo caminho que a partitura ordenava. Por mais que a visse ansiosa com o final da música, mais eu ansiava por existirem outras notas, outros acordes, outras ações musicais para suas mãos. Na sua música eu repousava na certeza de que poderia estar perto dela, diante dela, olhando pra ela, sorrindo pra ela, dizendo tanta coisa pra ela.

Mas já não havia tempo. A canção acabava, ainda pude ver seu riso quando apresentou as últimas notas. Mal soltou as mãos do piano e notei, com lamento, que nós não estávamos sozinhos. Os aplausos e os gritos de “bravo” tiravam a privacidade do nosso concerto. Ela foi à frente do palco, agradeceu, e partiu rumo ao camarim. Deixando na platéia o aplauso apaixonado de quem por aqueles instantes ousou sonhar em ser a partitura que ela estivesse lendo. E pra, quem sabe, trazer através dela algumas notas de um grande amor capaz de viver na delicadeza de um piano.

Um comentário:

Armindo Guimarães disse...

Caro Amigo Vinícius:

De todos os que até agora li aqui no Salafrário, este foi talvez o que mais me emocionou pela delicadeza das palavras.

Este "Concerto" em prosa é um verdadeiro poema.

Maravilha!!!

Grande abraço