Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

domingo, 26 de outubro de 2008

Olhos fechados

Olá, amigos.

Depois de dedicar o post anterior a um momento do salafrário arriscar passar pela poesia, hoje apresento uma outra "vertente" salafrária. Trata-se de uma parte artística que eu gosto muito, e com a qual atualmente tenho uma ligação muito forte - o TEATRO.

Recentemente, trabalhei como ator na montagem do Sonho de uma noite de São João, aqui no Rio de Janeiro. No entanto, a primeira porta que abri quando conheci as artes cênicas foi mesmo como autor.

Abaixo, apresento um esquete que escrevi em 2004. O texto foi escrito nos moldes da minha primeira influência dramatúrgia - a literatura de Nelson Rodrigues. Quero a opinião sincera de todos vocês e, caso alguém se interesse, pode fazer uma montagem deste texto. É só entrar em contato comigo pelo e-mail:

viniciusfaustini@gmail.com

Obrigado a todos pela atenção,

Vinícius Faustini.


*****

OLHOS FECHADOS

Personagens

Beatriz – jovem, tem uma beleza frágil. É uma mulher que foi uma pessoa muito doce, mas depois do convívio com o marido, a quem amava, tornou-se amargurada. Depois de ficar cega, além de amargurada, foi se tornando cada vez mais reprimida.

Hélio – também jovem, mas seu jeito de ser e sua expressão sempre séria fazem com que aparente mais idade. Ama a esposa, mas, no decorrer dos anos, seu amor por Beatriz tornou-se obsessivo. Os ciúmes doentios fizeram com que ele ficasse rude e, pelo receio de que um dia a esposa o abandone, é capaz de cometer as maiores atrocidades.

O cenário é a sala de estar da casa de Hélio e Beatriz. Uma sala simples, tendo uma mesa com quatro cadeiras e um sofá.

Beatriz entra em cena. Usa um vestido e anda amparada por uma bengala.

BEATRIZ (chamando) – Iara! Iara! (tempo) Onde será que ela foi? (tenta novamente) Iara! Iara! IARA! (percebe passos. Vira-se de acordo com o som de onde eles vêm) Ufa, achei que você tivesse ido embora...

Entra Hélio. Usa camisa social e calça comprida.


BEATRIZ (comovida) – Quando você não está aqui me sinto tão sozinha...

HÉLIO – Ora, Beatriz. (ela se assusta) Você sabe que nunca estará só... Você tem a mim.

BEATRIZ (frustrada) – Ah, é você... Desculpe, eu estava procurando Iara. (chama) Iara!

HÉLIO (prestativo) – Algum problema, meu bem?

BEATRIZ (hesita, sempre se esquivando dele como pode. Enfim, diz) – Nada... (tempo. Diz, vacilante) É... é só com ela... (pausa. Num rompante) São problemas de casa. Hélio, querido, você pode chamar Iara pra mim, por favor?

HÉLIO (brusco) – Iara não veio.

BEATRIZ (surpresa) – Como assim não veio?

HÉLIO (categórico) – Não veio e nunca mais virá...

BEATRIZ – O que você quer dizer com ‘nunca mais virá’?

HÉLIO – Ela não trabalha mais aqui. Mandei embora aquela relapsa.

BEATRIZ (surpresa) – Relapsa? (a defende) Que absurdo, Iara sempre tão atenciosa... Prestativa. Me ajudando em tudo, me fazendo companhia.

HÉLIO – Uma incompetente...

BEATRIZ – Mentira! Vai, pode dizer, Iara foi mandada embora porque era minha amiga... Por Deus, Hélio, será que você quer sempre me ver infeliz? (chora) Eu tinha tantos amigos, tantas pessoas com quem eu convivia...
Foi você que me afastou de todo mundo. Com essa sua preocupação doentia, essa idéia fixa de que eu estava traindo você...

HÉLIO (irritado) – Não sou nenhum louco! Você e eu sabemos muito bem que todas as minhas desconfianças tinham fundamento. Se eu não fosse atento, você já teria me abandonado há muito tempo...

BEATRIZ (em cima da fala de Hélio) – Não agüento mais essa tortura!

HÉLIO – Você sempre foi a mais bonita de todas... (afaga o rosto de Beatriz) Não tem idéia do quanto a sua presença era capaz de enervar os homens. Todos só tinham olhos para você, Beatriz...

BEATRIZ – Você sabe que já não posso mais olhar pra ninguém.. Hélio... Hélio, tem piedade. Essas discussões só me fazem mal!

HÉLIO (piedoso) – Mas, meu amor. É só você confessar. Confessar que se você não estivesse cega já teria me deixado.

BEATRIZ – Não, não, Hélio... Quantas vezes eu tenho de dizer que não!
(tempo) É o cúmulo! Demitir Iara, que há anos cuidava de mim... Que mal ela poderia fazer a você?

HÉLIO – Nenhuma pessoa é digna de estar ao seu lado, meu amor... (a abraça) Só eu conheço você bem... Só eu sei te dar carinho, atenção... Beatriz, ninguém mais do que eu te ama nesse mundo!

BEATRIZ (num rompante) – Você só me faz sofrer! Não quero mais isso pra mim! (grita) Socorro! Quero ir embora daqui! (tenta apressar o passo, mesmo com a bengala) Essa sensação horrível de ser vigiada. (grita) Socorro!

HÉLIO (triunfante) – Não adianta, minha amada... Para sempre, somos um do outro. (tira a bengala das mãos dela) Você não precisa mais disso... Te prometo, Beatriz, que serei pra sempre o seu amparo. (joga a bengala)

BEATRIZ – Hélio... (tenta com o tato encontrar sua bengala) Não. Não, você não fez isso comigo. (anda alguns passos, mas Hélio a segura pelo braço) Hélio, você está indo longe demais. (se esquivando) Devolve a minha bengala... Por favor. (Hélio a aperta) Por favor, me solta...

Hélio envolve Beatriz em seus braços.

HÉLIO (sussurrando) – Primeiro confessa...

BEATRIZ (suplicante) – Me solta...

HÉLIO – Com quem você ia fugir?

BEATRIZ (tenta se desvencilhar) – Não sei do que você está falando...

HÉLIO – Confessa!

BEATRIZ – Tá me machucando...

HÉLIO – Dói mais em mim do que em você, minha querida... Mas é para o seu bem. Quem ia te afastar de mim?

BEATRIZ – Tudo bem... Eu confesso...


Hélio se surpreende e a solta. Anda alguns passos e fica de costas para ele.


HÉLIO (triunfante) – Fala...

BEATRIZ (respira fundo) – Quem te afastou de mim foi você. Você... Com as perguntas, as acusações, as desconfianças... (chora) Um dia eu amei você, Hélio... E quando eu percebi o que você realmente é, já era tarde...

HÉLIO (em deboche) – A sua cegueira não deixou!

BEATRIZ (fica de frente para ele) – Nem com o fato de eu ter ficado cega as suas desconfianças acabaram...

HÉLIO (retruca) – Mas o meu amor aumentou!

BEATRIZ – Isso não é amor...

HÉLIO (explode) – É amor sim! Um amor intenso. Que convive com o receio de um dia possa ser desprezado. Que não suporta a idéia de perder sua amada pra um sujeito qualquer que não a ama tanto quanto ele! E foi guiado por esse amor que tomei a atitude que me deixou para sempre ligado a você...

BEATRIZ – Que atitude?

HÉLIO – Beatriz... Muitos te olhavam. Todos te olhavam! E você retribuía os olhares apaixonados, os olhares de desejo. Eu via! Eu via seus olhos cheios de promessa. De namorada ansiosa por um beijo...

BEATRIZ (num lamento) – Meus olhos...

HÉLIO – Eu enxergava o brilho dos seus olhos todas as vezes que alguém te paquerava. E aquilo me deixava amargurado. Infeliz. Até que um dia eu decidi. (firme) Você nunca mais teria olhos para outro homem!

BEATRIZ (levemente comovida) – Não compreendo...

HÉLIO (calmo, obstinado em dizer) – Aproveitei quando você estava fora de casa e peguei seu colírio na mesa de cabeceira. E troquei por uma substância química tóxica de ação lenta. (sorri) Foi o dia mais pleno da minha vida... O dia no qual eu tive certeza de que eu seria, para sempre, o dono dos seus olhos.

BEATRIZ (atônita) – Você... Foi você que me fez perder a visão. Os meus olhos... (pausa) Pra quê? Pra que eu pagasse sua dúvida com a minha cegueira?

Hélio tenta abraçá-la.


BEATRIZ (num rompante) – Tire suas mãos de mim! (vai se afastando, andando para trás)

HÉLIO – Beatriz... Não adianta fugir. Agora somos só nós dois.

BEATRIZ – Nunca! Eu não quero passar a minha vida ao lado do homem que me proibiu de enxergar. Que me condenou à escuridão... Chega, Hélio... Não vou mais ficar com os olhos fechados diante das suas atrocidades. (vira-se e vai andando em direção à coxia, sempre mexendo as mãos, como se estivesse receosa de esbarrar em alguma parede)

HÉLIO – Beatriz, aonde você vai?

BEATRIZ (parada, de costas para ele) – Vou embora. (música instrumental triste)

HÉLIO (triste) – Vai me deixar aqui sozinho?

BEATRIZ (reflete antes de dizer) – Não. Você nunca esteve, nem vai estar só. Vai estar sempre acompanhado por sua cegueira. A cegueira que fechou seus olhos fingindo ser o amor. (tempo) Adeus, Hélio.

Beatriz sai de cena. Hélio caminha até o lugar onde jogou a bengala. Tira do bolso da camisa um par de óculos escuros e os coloca. Está com o olhar de frente para a platéia. Abaixa-se, sempre mantendo a direção do olhar. Vai tocando o chão até encontrar a bengala. Levanta-se. A música sobe. A luz vai descendo, até chegar à escuridão.

PANO

© Copyright. Vinícius Faustini, 2004. Todos os direitos reservados.

3 comentários:

CON disse...

Vinícius...Quer saber minha opinião sincera???
Você é muito bom!!!
Eu me envolvi sabia? Fui imaginando o cenário, os personagens e juro queria muito a continuação...rsrsrs
Você é muito inteligente, muito talentoso...Busque mesmo seu lugar amigo, você merece estar lá no topo!

Vou torcer muito por você!

beijos azuisss

James Lima disse...

"hoje apresento uma outra 'vertente' salafrária." me arrancou risos. Quanto à Sonho de uma noite de São João, vi vídeos na net, muito interessante. E essa peça aí... Demais... Você deve investir mesmo, bicho. Parabéns

Um abraço
James Lima
www.robertocarlos.vai.la

Carmen Augusta disse...

Vinicius,
muito bom!
Também fiquei envolvida, imaginando as cenas, personagens, assisti sua peça!
Parabéns!
Um abraço,
Carmen Augusta