Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

domingo, 12 de outubro de 2008

Homem de papel

Tenho tudo na vida. Um teto bom, ajeitadinho e bem localizado para morar. Uma família que me apóia, com todos os meus deslizes e as minhas manias. Um sonho bonito, praticamente um ideal de vida que me fez sair do interior e partir pra cidade grande em busca de novos horizontes. Amo uma mulher que também me ama (sem pedir nada ou quase nada, como diz a música daquele cantor cubano).

A maioria de pessoas quando se refere a mim costuma me designar com elogios e com sorrisos. As pessoas sorriem pra mim, e eu invariavelmente gosto de sorrir para elas - sempre fui assim, um palhaço que acha que não deve chorar, pois tem medo de que o choro o obrigue a sair de cena e a ficar num canto esquecido.

Mal sabia eu que com o tempo ia estar na ânsia de que me esquecessem. Não. Eu não matei ninguém. Eu não dei nenhum golpe em milhões de brasileiros. Não descobriram uma conta bancária no exterior em meu nome.

Não passei por tristezas grandiloqüentes, capazes de fazer qualquer indivíduo surtar num piscar de olhos. O universo parece sim conspirar a meu favor, as coisas que faço geralmente recebem aplausos e comentários bem simpáticos ou tapinhas nas costas.

Então por quê? Alguém podia me explicar o motivo pelo qual estou aqui na calada da noite, no último andar do prédio onde eu moro, olhando para baixo, calculando quanto tempo dura daqui de cima até lá embaixo? “Você tem tudo na vida, menino, pra que ficar se lamuriando?”, falo para mim mesmo, alterando a voz, pra parecer uma figura patética, caquética, digna de deboche. Pra talvez assim eu ironizar esse momento de indecisão pelo qual eu tô passando agora.

Isso não é hora pra encontrar explicações! Quais justificativas podem ser maiores do que a ação que eu estou prestes a realizar? A quem uma pessoa que não acredita em nada precisa prestar contas depois de morto?

E vai ser aqui. Nos fundos do prédio mesmo. Os moradores já estão acostumados com os barulhos que acontecem nessa parte ingrata do prédio. No máximo o que vai acontecer é de uma pessoa gritar um “vamo parar com isso!”, e depois todos retornam suas atenções para o doce conforto de seus lares medíocres e de suas vidas medíocres.
Se bem que eu não sou ninguém pra falar de mediocridade. Um sujeito que sempre almejou ser valorizado, ser reconhecido. E agora permanece aqui, hesitante, distante de tudo o que aparentemente conquistou.

Bem... Acho que desde menino eu fui assim. Não aceito as limitações que tenho - limitações físicas, mentais e morais. Tudo o que consigo acho pouco, depois da conquista eu viro a página e já começo a ficar ansioso pra buscar a outra parte.

E aquele que era bicho do mato, o que não falava com ninguém, o que só sabia ficar num canto escondido com seus papéis e seu lápis e sua borracha se transformou num homem das letras. Ganhou concursos literários, ganhou uma vaga na faculdade, ganhou um bando de pessoas que acharam suas palavras interessantes, ganhou uma aceitação de uma editora, ganhou uma insônia bem acompanhada com seus personagens. Ganhou até um par de óculos.

E de repente me vejo aqui, oficialmente reconhecido por um grupo de pessoas que a opinião pública considera que suas opiniões valem mais do que as de outros. E me sento na ponta desse terraço descobrindo que tudo o que sonhei é ao mesmo tempo nada.

Palavras voam. Papéis ficam gastos. Livros perdem o valor e depois de um tempo são jogados em pilhas numa prateleira de um sebo. Minha namorada compreende o fato de eu ser um homem “casado com a literatura”. Mas não posso deixá-la na situação de “outra” diante desse vício tão prazeroso que persiste enquanto eu escrevo e que depois me faz tão mal quando jogo minhas idéias no lixo ao me deparar com páginas e páginas que são pura e simplesmente perda de tempo.

Preciso acabar logo com isso. Pra que tentar lembrar a todos que eu existo? Não sou nada além das minhas letras. E quando as letras não se encaixam e não formam frases coerentes e interessantes, não há motivo para que o autor delas resista. Alguns dizem que escrever “é dez por cento de inspiração e o restante de transpiração”. Cansei de transpirar somente com meus textos. É muito triste saber que sem eles não posso mais respirar.

É hora de respirar pela última vez. Respirar bem fundo, para ver se levo como recordação um pouco do cheiro de maresia que vem de mãos dadas com a brisa do mar. Ouço um carro, com medo do “pardal”, passando devagar na rua. Olho para cima e vejo a lua minguando, solitária, hoje sem estrelas. Olho para baixo, vejo poucas luzes acesas, e numa delas vejo a silhueta de uma mulher caindo devagar sobre o corpo de um homem.

Nada de clichês. Ninguém veio me socorrer com frases do tipo “não faz essa loucura”. Ainda não pus o pé sobre o parapeito, pois voltar atrás depois de tanto pensamento seria no mínimo lamentável.

Sou um homem escondido em meus livros. Em meus artigos. Em minhas crônicas. Em minhas resenhas. Mas não adianta procurar lá a justificativa do que eu vou fazer agora. Minha literatura é erótica demais pra acharem alguma tendência suicida.

Me aproximo do parapeito. Estendo os braços. Olho para frente. Penso na frase de Nelson Rodrigues: “Deus prefere os suicidas”. O homem de papel vai se desfazer na trajetória iniciada por seus pensamentos confusos que culminaram na sua ida rumo a um lixo nem um pouco glorioso para o autor.

E como um escritor que se preza, amanhã me tornarei apenas uma nota de jornal. Só um fato, descrito pela imprensa em um quarto de página e depois esquecido em meio às tragédias do dia-a-dia.

Sei que nenhuma letra vai me fazer desistir dessa idéia. Não vou tropeçar meu pensamento nas vírgulas. Nenhuma eventualidade vai me fazer ficar reticente. Senhoras e senhores, hoje vos apresento meu ponto final.

Antes do texto terminar, saibam que o último desejo deste livro aberto que encerra é ficar menos só no mar de letras que estou prestes a naufragar. Leiam as últimas linhas que ditarem sobre mim, eu compreendo que elas amanhã estejam obsoletas diante das novas notícias, e entendo também que o passar do tempo faça com que o fato fique amarelado.

Que a descida seja breve.

2 comentários:

Márcia Tristão-Bennett disse...

Vinicius:

Tambem muito bom....!!!Voce precisa fazer um livro dos seus contos....suas emocoes sao tao nitdas que eh impossivel nao ficar triste, depois rir, e assim vai!!

Obrigada pelo apoio lah no blog! Nosso maestro merece!!

Beijos Azuis!!!!

Armindo Guimarães disse...

Olá, pá!

Faço minhas as palavras da Márcia.

Tantos e bons contos merecem estar bem acondicionados num livro.

Do que estás à espera?

Grande abraço