Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Insônia

Sonhou com ela de novo. Acordou desesperado, mas ao olhar pros lados já se lembrou que ela foi embora alguns dias atrás. Olhou o relógio que marcava três e pouco da manhã e lamentou que iria ficar novamente com insônia. Seus horários permaneciam confusos desde o tempo em que estava com ela. De início gostava de ter essa falta de sono, podia vê-la adormecida, suspirando de sono e de sonhos. Quando muito, dava um jeito de fazer com que ela se abraçasse ao seu pescoço, para ouvir seu ressonar mais de perto.

Agora a madrugada era um suplício. Com o silêncio dela, vinha a lembrança deixada na cabeceira. A flor num copo de geléia e o bilhete à sua frente. “É melhor eu ir embora. Não fica triste comigo”. Criou coragem pra sair da cama, não queria mais recordar aquela cena. Ela já tinha ido embora mesmo, não seria a lembrança da cena que alteraria o desfecho que ela escreveu para a situação.

Olhou pela janela. Viu a rua adormecida. Não tinha nada de relevante acontecendo. Lamentou o mal de estar sozinho na hora de trocar o dia pela noite: esse marasmo ao qual a rotina castiga a melhor parte do dia.

Olhou para dentro de casa. Viu os livros empilhados, alguns discos em cima da caixa de som, a televisão e o aparelho de DVD. Pensou em ver um filme ou ouvir uma música, mas se lembrou que estava sob o efeito da “lei do silêncio”, e nenhum dos vizinhos precisava compartilhar a sua solidão.

Ligou a lâmpada de cabeceira. Escreveu algumas palavras. Logo percebeu que estava escrevendo destinado a ela, e riscou tudo, pois não queria que a sua arte de autor fosse mera reprodutora dos casos que aconteciam em sua vida.

Foi até a cozinha. Encheu o copo de água. Bebeu calmamente. Olhou para a pia. Viu o espaço dos talheres. Pegou uma faca de pão e colocou na direção do seu pulso esquerdo. Tremeu um pouco, mas falou para si mesmo: “sim”. Estava prestes a se cortar definitivamente quando jogou a faca para o outro lado. Teve medo de morrer. Não por alguma covardia. No último segundo no limiar da vida com a morte, pensou que ninguém ia notar sua ausência.

Abriu a gaveta. Viu uma foto dela. Ela sorrindo, abraçada a uma árvore. Sua discriminação auditiva recordou o riso dela. Leve, suave, dizendo: “tira uma foto minha aqui, vai, amor”. E ela abriu o sorriso, com um ar de criança. Jogou a foto para um lado.

Veio outra foto. Dos dois. Ela com a máquina na mão. Os rostos lado a lado. Sorrisos. “A gente vai ficar com cara amassada”, ela advertia. A lembrança que vinha de leve no seu coração, como uma brisa passando por seus cabelos.

Deixou a foto cair no chão. Achou uma dos dois no Corcovado, ambos suados da caminhada que fizeram até chegar ao pé do Cristo Redentor. “Promessa” de agradecimento pelo primeiro ano de namoro comemorado naquele dia. Ela se lembrava que os dois selaram o primeiro beijo por volta das três da tarde, num encontro marcado uns dias depois de se conhecerem naquela festa. Os dois saíram de lá de baixo por volta da uma e meia da tarde num sol escaldante, às vezes amenizado pela grande quantidade de árvores do trajeto. Em algumas delas o casal parou pra se beijar. Um abraço bem doce, uns sussurros de amor no ouvido, beijos bem quentes e a vontade louca de esquecer o mundo pra que ficassem lado a lado, somente sentindo um ao outro, esquecendo os carros e as pessoas que caminhavam por lá. Mas a promessa era chegar pelo menos até as três lá em cima. As tentações deixadas de lado por um momento especial a dois. Promessa cumprida para os próximos anos se lembrarem. E os dois conseguiram chegar lá em cima, fascinados como dois turistas em lua-de-mel. A cidade ficava pequena diante do amor dos dois.

Afagou o rosto dela na fotografia, e chorou. Sofreu na certeza de que ela já fora embora, mas persistia nas suas noites de insônia. Ela se instalava, parecia uma companheira fiel e sedenta do seu sono. Das suas lembranças. Do seu remorso.

Achou indigno o que estava prestes a fazer, mas aquilo era um rito de passagem. Um dos passos mais decisivos pro sepultamento dela em seu coração. Foi até a cozinha. Pegou um palito de fósforo, jogou sobre as fotografias e as viu serem tragadas pelo fogo, lentamente.

Uma tristeza subiu por todo o sangue. E o pior de tudo é que ela posava de mulher misericordiosa que foi embora deixando apenas um bilhete de despedida para evitar que o namoradinho sofresse, ou para que visse o sujeito que ela dispensava chorando diante dos seus olhos. Ou, na verdade, poupando-se de qualquer possibilidade de ceder ou recomeçar.

Ligou o computador. Abriu mais um arquivo de fotos dela. Ela sorrindo, de calcinha e sutiã, na cama deles. Ela de costas, com o bumbum empinado e colocando o dedo na boca com ar de safada. Ela inteiramente nua, com as pernas abertas e os dedos próximos aos seus pêlos pubianos. Ela olhando pra câmera com a boca em seu pau. Ela com os seios de fora. O bumbum dela em close. Uma, duas, inúmeras, várias. O sabor da intimidade com ela ainda estava na sua boca, mais do que nunca ele lutava para tirar de vez o gosto dela, antes que o que sentia apodrecesse sua alma.

Só enterraria de uma vez o amor que ainda insistia em ficar no seu coração depois daquele passo. Do ódio. De não ter em hipótese alguma chance de voltarem a ser amigos. Aquele amor era muito belo pra um dia retroceder em uma amizade. Se era o fim, aquele relacionamento devia acabar por completo.

Colocou todas as fotos íntimas numa pasta especial. Fotos dela nua ou em todas as posições sexuais que a câmera havia flagrado dos dias de desejo que seus corpos sentiram. Não se preocupou em embaçar o rosto dela, aquilo ficaria mais sórdido ainda. Mandou o e-mail para o endereço de contato de uma conhecida página eletrônica pornográfica. Em breve, tarados de todo o mundo ficariam cúmplices da intimidade deles.

Desligou o computador. Bebeu um copo de água. E voltou a dormir, com a consciência plena de que não mais teria a companhia dela nas noites de insônia.

Um comentário:

Armindo Guimarães disse...

Mais um conto com um fim completamente inesperado.

Um fim à Vinícius.

Abraços