Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Anoitecer

O dia aos poucos foi escurecendo. Eu olhava aqueles últimos raios de sol indo embora, as luzes das ruas começando a ser acesos, um a um, para que os gatos pardos da noite não começassem a agir tão cedo diante dos sujeitos de bem que ainda trafegam pelas calçadas da cidade no chamado "horário comercial".

Meu coração anoitecia mais um pouco, acostumado com a escuridão na qual se tornava minha vida, noite após noite, naufragada naquela sensação de que nunca sou nem serei nada para qualquer pessoa, em qualquer cargo que queiram que eu ocupe. Pus as mãos no parapeito. Vi a lua começando timidamente a aparecer, hoje cheia, enchendo o azul (agora azul escuro) do mar de um tom esbranquiçado. Esbocei um sorriso, mas logo uma lágrima caiu no meu rosto, a lágrima de uma incerteza de não saber se aquele brilho podia ser para mim.

Eu permanecia entretido com aquela cena quando percebi um sopro nos meus cabelos, quase perto da minha orelha. Virei para trás, era você sorrindo. Um riso de moleca, de menina, da moça que acompanhava meu sonho e agora aparecia de verdade no meu anoitecer. Você se abraçava no meu peito, quase que se escondendo de todas as pessoas, lá, abraçada a mim, como se ver você fosse uma exclusividade minha.

"Olha..." - você apontou para cima. E, aos poucos, desenhou com suas falas, uma imagem fascinante que vivemos a dois. "Olha que imagem linda! A lua, escondida nas nuvens, iluminando essa construção velha". Voltei meu olhar para você, com certa curiosidade. Sem desfitar os olhos de mim, você comentou: "Daria uma pintura, né?".

Balancei a cabeça afirmativamente. Você levantou um pouco seu corpo frágil, se apoiando no meu pescoço, e me beijou. O brilho daquela lua parecia iluminar também minha alma, e eu, com os olhos fechados, tentava dialogar com sua alma. Inicialmente com ansiedade, mas aos poucos, eu me entregava diante da doçura que seus lábios me passavam. Eu era seu. Eu sou seu.

Abri os olhos. Você já me observava, com um sorriso sincero. Novamente me abraçou, dizendo que queria ouvir as batidas do meu coração. Aos poucos, foi se desvencilhando do meu abraço, sem baixar os olhos claros que me faziam brilhar ainda mais do que aquele luar que chegava no início da noite.

Estávamos um diante do outro, agora unidos apenas pelas pontas dos nossos dedos. Você disse: "É hora da gente se despedir, mocinho". Iam sair palavras de protesto da minha boca, quando você me interrompeu. "Agora você já tem uma musa pra te acompanhar nos seus insones suspiros da madrugada. Cuida de mim...".

Novamente se aproximou, e me ofertou um doce beijo. Não sei se foi ilusão auditiva, mas por um momento escutei um dedilhar de um piano enquanto nos beijávamos. Não importava, só tornava ainda mais especial tudo aquilo que eu sentia ao seu lado.

Quando o beijo acabou, ainda procurei mais um pouco a sua boca. Você pousou os dedos em meus lábios, e disse, serenamente. "Vai, meu gato pardo. Agora sou sua musa, sua cúmplice, sua companhia para o anoitecer".

Vi você virando as costas, e não saí de onde estava até vê-la se perdendo no horizonte. Eu anoitecia, leve, sabendo que ia me perder na madrugada, pra me encontrar no seu abraço.

2 comentários:

Armindo Guimarães disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Armindo Guimarães disse...

Depois de ler o "Concerto", acabo agora de ler o "Anoitecer" e não sei porquê acho que se completam.

Mas uma excelente prosa poética!

Abração, pá!