Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Amor próprio

Ele foi embora logo depois de me dar um beijo. Eu, ainda com hálito de sono, pedi: “Bate a porta quando sair, amor”, como eu fazia todas as vezes que acordava para vê-lo ir embora. A última imagem que vi antes de fechar os olhos foi ele saindo da porta do meu quarto, indiferente. Como ele sempre era, em especial nas manhãs de segunda.

Acordei às onze, com aquela sensação de enfado. Três anos e meio de namoro e sempre aquela rotina de ter o meu namorado apenas aos fins de semana. “Quero subir de valor na firma, meu bem. Faço isso por nós dois”, era o que ele me dizia todas as vezes que eu pedia um pouco mais de atenção.

O compromisso já trazia em mim sinais de cansaço. E dia após dia, surgia mais em mim a sensação de que ele me queria só como troféu para exibir aos colegas de trabalho – em especial ao chefe dele, um gordo, calvo e sempre com a camisa empapada de suor, que me comia com os olhos.

Lavei o rosto e ri ao pensar: “Será que ele tá comigo apenas para impressionar o chefe e eu garantir a ele um aumento de salário ou uma promoção considerável?”. Ter uma mulher gostosa por perto deve dar regalias aos homens.

O agrado a homens com namoradas, mulheres ou amantes gostosas ao menos dá a chance de vê-las sempre alegres quando se dirigem a você. Ainda mais se elas sabem que são gostosas. E eu sei que sou.

Eu me olhava no espelho, nua esperando a banheira esquentar. E me pensava mais bonita. Não é toda mulher que pode se orgulhar de ter pouco mais de um metro e setenta, esses olhos verdes que brilham ainda mais diante do sol. Passei a mão por meus seios, médios mas naturais com muito orgulho. Senti um arrepio ao me ver tocando e meu biquinho rosado endurecendo na ponta dos meus dedos. Ai... Nossa, há muito tempo eu não me sentia assim. E suspirei ao roçar de leve meus pelinhos eriçados, loiros como os meus cabelos. Meus lábios se molhando com a minha língua, saboreando cada parte desse desejo inusitado que eu tive por mim mesma. Sim, eu já tinha sido elogiada, cantada, provada, aproveitada, mas pela primeira vez eu tinha tempo para me ver e me valorizar.

Desejando e sendo desejada ao mesmo tempo. Com muita intensidade... E me vendo deliciosa. Jovem, bonita, um tesão de mulher. Delicadamente, me encaminhei para o meu banho. Mais quente do que a temperatura da água que me banhava por inteira. E era uma parte em especial do meu corpo que mais se deixava molhar.

Que se molhava através do meu toque, do meu sonho de carícias, que há alguns minutos, alguns dias, alguns meses, alguns anos (três anos e meio) me pareciam tão distantes. E eu gemia, ria de prazer, do prazer de saber o que eu quero, de me ver como mulher.

Olhava para mim, me sentia toda deliciosa com aquela água percorrendo o meu corpo e deixando minha pele cada vez mais molhada da quentura do suor e do meu desejo. Era a primeira vez em muito tempo que eu me sentia devidamente viva, vivenciando todos os meus prazeres, meus sonhos, meus desejos. Olhava para a minha imagem refletida no espelho e dizia, com jeitinho de puta: “te quero... eu quero você... hummm”.
Mais do que nunca sabendo o que eu queria – e também o que não queria. Pedia atenção, prazer, implorava por amor, por um amor pleno. E agora enfim havia o achado. Ele estava tão perto de mim, no alcance da minha vista, da carícia das minhas mãos, da sensibilidade dos meus seios, da doçura do meu sexo. Mas nunca a tinha notado.

Perdi a noção das horas. Perdi a noção de mim. Na sensação doce de que eu havia me encontrado de uma vez por todas. Saí, me enxuguei , agora “namorando” a maciez da toalha ao deslizar na maciez da minha pele. E comecei a concretizar minha vontade de absoluta de estar sozinha. De me respeitar no direito de ficar comigo mesma.

E é claro que eu devia fazer charme. Quem não faz? Escolhi meu vestido mais decotado, justo (mas que não chegava a dar a sensação de que estava apertado em mim). Depois, retirei da gaveta uma calcinha preta, de renda.

Passei um batom e fui para a porta. Prestes a passar a mão na maçaneta, tive uma idéia repentina. Subi o vestido e, com a ponta dos dedos, tirei a calcinha. Pronto. Eu me excitava ao pensar que, em breve, ia maltratar aquele que anulou minha vida por longos anos. Nenhum homem que se preze vai imaginar que a namorada se produziu toda apenas para terminar o namoro.

Desci o elevador ao lado de uma senhora, que, de rabo de olho, suspirava um ar de reprovação para mim. Devia me achar uma prostituta. Mal ela sabia que eu estava, na verdade, me livrando dos momentos que passei prostituindo meus sonhos, minhas vontades, meu amor próprio, tudo em função da carência, do medo de ficar sozinha.

O elevador desceu os seis andares até a garagem. Tive uma fugaz, mas confesso que bem saborosa situação quando o vento ameaçou levantar meu vestido, justo quando um vizinho estava vindo em minha direção. E se ele visse que eu estava sem calcinha? A iminência de estar solteira me acordava meu lado mais erótico. E essa redescoberta do meu erotismo me deixava mais louca.

Entrei no carro e parti, rumo à firma dele. Um misto de ódio, sadismo e alívio tomava conta de mim. Eu me olhava e me revia como mulher que sou, e como mulher que mereço ser cuidada.

Subi o elevador com um sujeito não tirando os olhos do meu decote, e empinei um pouco para ele notar que eu estava sem sutiã. Dei um sorriso vulgar e saí no andar onde ele trabalhava.

Passei por todas aquelas mesas, cheias de computadores e de pessoas bitoladas em fazer mais e mais rapidamente seu serviço, com apenas uma intenção: mostrar ao chefe o quanto são ágeis, dedicados e apaixonados por trabalho. E, portanto, merecem um aumento, uma promoção, um “brilhante, meu jovem” que seja.

Fui me encaminhando, fila de computadores por fila de computadores, até, enfim, achar o meu namorado. Ou melhor, meu ex-namorado. O meu algoz, o autor daquele crime, do crime de ter tornado a minha vida uma rotina, uma repetição.

Ele quase saltou da cadeira ao me ver. Vi seu susto ser, aos poucos, tomado por um ar de desejo – um desejo que eu podia ler em seus olhos.

Sentei no canto da mesa dele, de pernas cruzadas: “Temos uma coisa séria para conversar”, Descruzei minhas pernas e subi devagar meu vestido. Ele se espantou ao me surpreender sem calcinha.

Gaguejava, e seu rosto estava vermelho de vergonha, olhando para os lados, talvez se certificando de que só ele tinha me notado. Aproximou seu rosto do meu, e perguntou, pálido: “Agora?”

“ – Sim”. Passei o dedo por seu nariz e fui descendo, descendo por seu corpo, repetindo bem baixinho... “ – Agora, agora...”. Ele cada vez mais constrangido, já notando um ou outro colega de trabalho que ficava atento à nossa conversa.

Segurou minha mão. Num impulso, tentei conduzi-la até meus seios. Ele sempre foi muito previsível, eu já sabia a reação dele. E naquela segunda-feira, ele fez como o meu roteiro maquiavélico imaginava:

“ Chega! O que é que você está pensando, hein? Não tô à disposição do seu tesão o tempo todo. Eu estou em horário de trabalho”.

Levantei a voz.

“ O que é que VOCÊ está pensando de mim, seu... Que eu sou sua putinha de luxo, que você pode dar uma ou duas trepadas em troca de você estar do meu lado quando eu acordar? Não sou tão desesperada assim, meu corpo mostra que eu mereço coisa melhor”.

Ele me puxou pelo braço, e disse, entre dentes:

“As pessoas...”.

Continuei no mesmo tom de voz:

“ As pessoas devem estar pensando que vim aqui te seduzir. Não é isso, inclusive que você pensou de mim, seu cachorro?” – fui para o corredor. E eu me sentindo cada vez mais teatral – “A namorada do sujeito vem toda produzida, bem maquiada, com cabelos soltos...” – e fui chamando mais atenção – “Com uma roupinha bem justa... Sim! Para seduzir esse gatão” – dei uma mordida na orelha dele, que não sabia para onde olhar, ou onde se esconder.

“ E, com um detalhe, mas que não vou contar pra vocês”. – pausei. Olhei para aqueles homens e aquelas mulheres (quer dizer, não dava bem para distinguir, todos eles eram idênticos!), todos atônitos diante de mim. E decidi: “Não, não vou contar”.

Olhei para um rapaz que tinha lá seus 20 anos, e disse: “Vem cá”. Ele, ainda meio atônito, me obedeceu, e foi. E, sussurrando, confessei: “Tô sem calcinha”. Quase ri ao ver aquele cara com o tesão escondido em um monte de pastas que carregava. Acho que criei uma fantasia bem erótica na cabeça do garoto.

Foi o suficiente pra deixar o meu “namoradinho” furioso. Era hilária a expressão dele, o rosto fechado pela raiva. Mas minha crueldade passou dos limites. Fiz um gesto para que ele parasse, e disse:

“ Não precisa vir até aqui, meu amor. Não é segredo pra ninguém o que vim fazer no seu trabalho. Quero que todo mundo saiba” - respirei fundo, e disse, categórica: “Tá tudo terminado entre nós”.

Aquilo pegou de surpresa. E antes que ele dissesse qualquer palavra, prossegui:

“ E antes que você novamente pergunte. É agora. Agora sim. A partir de agora, nós não temos mais nada. Acabou. Acabou”.

O andar inteiro ficou em silêncio. Olhei as expressões dos colegas de trabalho dele. Um por um. As mulheres, algumas entendendo minha crueldade e escondendo o riso, outras, mais recatadas, mas deslumbradas ao ver aquilo tudo, poucas me recriminando com o olhar (e talvez me taxando como “vagabunda” ou coisa parecida) e uma gorda tentando fingir que não via, que nada estava acontecendo.

Os homens, os mais jovens, cochichavam, pude ouvir até um “por essa tesuda eu me humilhava até o fim”, e não sabiam se riam com a proximidade de debochar do colega de trabalho (um rapaz exemplar em todas as suas atividades, e ainda por cima com uma namorada gostosona – o que ele era até aquele minuto) ou com o jeito sensual e superior que eu tinha. Os mais velhos suavam, de nervoso ou de êxtase, e permaneciam com as faces intactas, perplexas.

Perplexo como ficou ele, até o momento em que virei as costas. Mal comecei a esperar o elevador e ele chegou. Ajoelhou-se diante de mim, gritando “não”. Sem olhar para ele, ouvi toda aquela ladainha – de que eu não podia deixá-lo sozinho, de que ele estava planejando nosso futuro, de que estava perto da chance dele...

“ – Arruma outra bonequinha pra você exibir como troféu, porque eu já enchi” – ele começou a beijar meus pés – “E pára. Ficar feito um cachorrinho pidão não vai me fazer mudar de opinião. Vai, volta pro seu trabalho. O seu futuro te espera! Eu é que decidi não te esperar”.

Ele se levantou, e notei que ia dizer alguma coisa para mim, mas prontamente o interrompi:

“ – O elevador chegou. Depois deixo suas coisas que ficaram lá em casa na portaria do seu prédio, viu?”.

Ainda pude ver a cara de amargura dele antes de a porta do elevador fechar. Eu até não me sentia tão culpada mesmo ao saber que tinha deixado um homem “arruinado”.
Antes da porta fechar, ainda pude ouvir alguns coros dissonantes da situação que eu acabara de proporcionar àquela firma. Ouvi algumas vozes femininas que diziam “mas que vagabunda”, “você não merecia isso”, outras masculinas que diziam “mulher é foda”, “isso é que dá dar liberdade”.

O elevador chegou ao térreo. Peguei o carro e voltei novamente para casa. Liguei o rádio e voltei cantarolando, sorridente. Como acho que nunca havia sido antes. Estacionei o carro e subi o elevador até o meu andar.

Não resisti a voltar a me olhar no espelho do elevador. Puxei um pouco a alça do vestido e fiquei me deliciando com o bico do meu seio.

Abri a porta de casa. Desliguei meu celular. Meu computador. O telefone fixo. Fui me despindo de pé, na frente do espelho grande do meu quarto. Fiquei nua, novamente só pra mim.

Comecei a fazer as carícias que mais me excitam, me olhando e me seduzindo no meu reflexo do espelho. Hummm... Mais do que solidão. Mais do que prazer solitário. A partir daquele instante, o sentimento que me dominava era o de que eu me sentia plena para viver meu amor próprio.

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