Trilha sonora, um dos textos do livro DIÁRIO DE UM SALAFRÁRIO, na voz de Eliane Gonzaga.

sábado, 4 de outubro de 2008

Silêncio de um minuto

Criei um pouco de coragem para vê-la pela janela. Eu sabia que aqueles passos significavam os últimos dela na minha vida. Não, eu não me importava dela não olhar pra cima, talvez fosse melhor assim, eu não ia suportar um semblante de raiva ou de tristeza vindo do rosto que eu beijei, do rosto que eu amei por tanto tempo.

Atravessou a rua e seguiu, num caminho que minha vista já não a alcançaria mais. Logo meus pensamentos se dissiparam na chuva que começava a cair de uma nuvem negra, tão negra quanto a que começava a fazer parte da minha vida desde que ela foi embora.

Ela foi como todas as coisas que eu tive. Uma beleza, um lampejo de vida, que eu deixei morrer em meus braços, asfixiada por minhas próprias limitações, por meus defeitos, por meus deslizes. Uma vida inteira pela frente, jogada fora assim, impunemente, que eu passava a relembrar com todos os clichês de sujeito abandonado.

Minha vista ficou turva por uns instantes. Agora eu via a silhueta das pessoas ao longe, e em meio a elas aparecia ela a um palmo da minha frente, dizendo todas as ofensas possíveis e que eu, calado, resignado, ouvia de cabeça baixa. Tentei dizer qualquer coisa, mesmo a mais sincera das verdades - a de que eu não a mereço, nunca a mereci - mas as palavras se calaram.

Mal estar. Senti metade do meu corpo amparada pelo meu parapeito. Com dificuldade saí da janela e fui me amparar na cama, com cuidado pra não me sujar. Se bem que eu já estava sujo, com a alma apodrecida por mim mesmo.

Vi um corpo de mulher, adormecido. Rezei para que fosse ela, mas quando virei a moça, notei ser um rosto completamente diferente. Busquei seus lábios, mas eles estavam arroxeados, imóveis. Percebi sua nudez, parecia bela, apesar de tudo o que acontecera nos últimos instantes, mas não era a nudez que eu queria para mim.

Busquei apoio em sua mão, mas ela já estava estática. Fria. Com a mesma frieza que eu transmitira ao meu coração depois que a mulher que passara pela rua saiu assim, ao mesmo tempo tão calma e tão infeliz. Levantei com dificuldade, cambaleei do quarto até a sala.

Cada passo era uma dificuldade, alguns recomendariam que eu tivesse parado e descansado. Mas não. Fazia parte daquele ritual. Eu precisava daquilo. Daquele trajeto. Olhei para os discos revirados. Para os livros fora de lugar. Para os objetos quebrados tomando conta do piso da sala. Eu estava descalço, mas não fazia diferença receber aqueles cortes. Seria melhor, minha dor iria para lugares diferentes.

Apoiei os braços na parede e vi que a deixei manchada. Cheguei na cozinha, me segurando nas cadeiras e na mesa. Com as mãos trêmulas, abri a geladeira. Bebi o fim de uma latinha de cerveja. Última concessão de prazer para um momento inteiro de dor.

Procurei em meio aos produtos de limpeza e, enfim, achei o que queria. Fiz o caminho de volta. Repensando em toda minha vida. Na minha vida com ela. Nas realidades mais bonitas que tivemos. Na sensação da carícia das mãos dela arrepiando o meu corpo. No meu desejo se perdendo e se achando ao lado do desejo dela. Na voz dela, baixinho, sussurrando delícias amorosas no meu ouvido. No sabor de seus lábios quando encontravam os meus. Nas noites que passamos em claro. Nos dias que eu gostava de acordar antes dela, só para vê-la adormecida, sonhando, cansada do acalanto que tivemos durante uma noite de amor. Aquele silêncio doce, quebrado apenas nas vezes em que ela suspirava, dengosa de sono, amparada no meu ombro.

Ganhei a visão do quarto. O retrato de tudo o que eu tinha feito com nossa vida, com nossos sonhos, agora transformados nesse pensamento que eu levo comigo, cravado na minha retina. Imagens que na noite anterior me serviram como prazer, um prazer momentâneo que a sedução pode causar a fracos como eu. Mas que, no raiar do dia, se mostravam como realmente são - uma realidade podre.

O cheiro do sexo apodrecido. A nudez da garota que eu conheci não me lembro aonde e que eu desconhecia a identidade. O vermelho cor de sangue que insistia em sair do seio dela, mesmo com sua face já estática e adormecida para sempre. O vermelho que inundava o lençol e sangrava meu coração.

Ai! Enfim, comecei a doer não só no peito, não só naquela dor interna. Voltou a doer minha perna, a perna que ela fulminou por engano. O choro ou até mesmo a misericórdia que eu não mereci causaram o erro dela. Ou talvez ela quisesse que eu estivesse vivo para ver isso tudo. Ela fez o certo. Matou o objeto que despertou o desejo alheio, e me faz viver mais um pouco para refletir sobre o erro que cometi. Este erro letal para nossas vidas.

Se foi assim que ela desejou, que assim seja, meu amor. Já acendi uma vela para a moça. Ela não tem culpa pelo que eu fiz com a gente. Agora me deito ao lado dela. Com a faca, vou cortar um e depois o outro pulso. Sei que você não vai derramar mais lágrimas por mim. Mas ao menos me reserve o silêncio de um minuto.

Um comentário:

Armindo Guimarães disse...

Quanta inspiração!

Abraços, pá!